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5.3 PRÁTICAS NO USO DA FERRAMENTA

5.3.1 Uso focado em vendas

A primeira forma de uso percebida é o uso desenvolvido de cima para baixo, proposto diretamente pela diretoria, com forma institucional. Isto é, a percepção de que o uso, pelo Shiva seria/é como bem apontou Fabrícia “focado nas vendas”. Sendo que se deve ter em mente que no cotidiano este uso “institucional”, composto por práticas, não são da organização, são construídas pelas pessoas, inseridas em um contexto comum (MANTERE; SILLINCE, 2006). Outro recorte de entrevista que fortalece esse argumento do foco8 em vendas é que, os vendedores, por exemplo:

usam muito para consulta, consultam preço, produto, estoque. Muito para consulta, orçamento aqui a gente faz muito orçamento para venda (VÂNIA).

Visto por outro lado, descreve-se que o Shiva foi escolhido pelo interesse de um grupo por uma ferramenta estratégica. Logo, os vendedores, como praticantes de estratégias, deveriam fazer usos estratégicos da ferramenta e não somente “vender”. Essa ideia é distorcida na organização ao passo que, por exemplo, Célia aponta que a estratégia da organização é voltada para vendas, e em suas palavras “a nossa estratégia é [...] fazer vender, né?”. Assim, de acordo com essa percepção, se os vendedores “só” venderem estarão cumprindo com sua função.

No entanto, apesar de ser uma empresa que atua em varejo e atacado, cuja fonte de rendimentos é a venda, essa percepção do “uso focado em vendas” tornou-se mais claro a partir do novo sistema. O que por sua vez causou um “afastamento” do possível uso estratégico pelos vendedores. Isso ocorre, pois como pode ser visto no recorte de entrevista a seguir, os diretores influenciam o uso específico em vendas, tanto direta quanto indiretamente. Segundo Fabrícia os diretores

[...] têm mais uma cultura de analisar as vendas, venda, venda, venda, venda, não olham o entorno disso, tipo a inadimplência, é uma coisa que agente não olha mensalmente (FABRÍCIA).

Seguindo os argumentos de Ward (1988) e Fischer (2000), a estratégia é permeada pela família, numa articulação entre organizações. Deste modo, uma vez que os

8 Note que este foco não refere-se a uma estratégia, ou teoria como o “foco” das estratégias

genéricas de Porter. Ver: PORTER, Michael, E. Competitive Strategy: techiniques for analyzing industries and competitors. EUA, New York; The Free Press, 1998.

sócios têm essa “cultura” do foco em vendas, como apresentado por Fabrícia, foi possível repassar essas leituras à ferramenta.

Esse argumento também foi manifestado por Guilherme, que em uma das reuniões do sistema apontou as demandas dos gerentes por informações; caso não estivessem ligadas ao foco da empresa que é vendas, entrariam numa longa fila de espera, o que por sua vez limita o uso de outros painéis. Ainda nesse sentido

[...] o sistema dá muito dado, ah por exemplo, cliente que comprou, não comprou nos últimos seis meses, consegue analisar se foi feito uma de devolução, depreende identificar o motivo ele consegue fazer uma analise geográfica das vendas deles, para qual região ele tá vendendo mais. Entretanto, os vendedores não usam a ferramenta ‘porque não é disponibilizado para eles’ (FABRÍCIA).

Desse recorte da entrevista percebe-se que há múltiplos painéis e relatórios dentro do sistema que possibilitariam usos mais estratégicos para os vendedores, porém, esta “cultura de vendas” parece legitimar um uso da ferramenta por parte deles que ignora esse potencial. Isso fica mais claro a partir da compreensão de que, o que Fabrícia chama de “cultura dos diretores” se evidencia a partir do fato de que um dos poucos relatórios que o sistema antigo tinha, era o acompanhamento das vendas. Assim, as vendas eram pontuadas e cristalizadas como um indicador importante, com o qual, conjuntamente com o feeling, traçava-se a estratégia da empresa.

Mais ainda, o cerceamento dos usos estratégicos da ferramenta pelos vendedores, também fica amarrada à falta de treinamentos, pois muitos relatos do diário de campo e entrevistas apontam o desconhecimento dos painéis que permitiam esse uso dentro do sistema. Quando perguntados sobre usos mais proativos, tanto no sentido de pedir mais informações ou perguntar como determinado painel funciona, os vendedores afirmavam que não faziam isso.

Assim, temos um uso da ferramenta que, a despeito dos seus múltiplos potenciais, o transforma em algo alinhado com a cultura de vendas, e que afasta o vendedor da possibilidade de analisar informações, para então direcioná-lo para usos “operacionais”. Nas observações, foi identificado o desenvolvimento de práticas específicas relacionadas com esse uso. Por exemplo, foi observado em uma das lojas que um vendedor com um cliente, queria dar um desconto que parecia ser “grande”, pois este seria superior ao limite de desconto pré-aprovado, uma margem para negociar que os vendedores possuem. Caso este seja ultrapassado, o sistema

trava o desconto e um aviso no sistema é lançado para que um gestor9 ou diretor “libere” o desconto. Diante do valor do desconto, o vendedor ligou para uma gestora, e não ao gerente da loja, para pedir o desconto, e em seu discurso falou que “a diretora [comercial] estava ocupada atendendo um cliente, e por isso não poderia liberar o pedido”. Contudo, o vendedor nem chegou a entrar em contato com a diretora, pois o próprio pesquisador havia encontrado com ela na escada. Portanto, o vendedor “jogou” com a gestora para tentar conseguir um maior desconto para seu cliente.

Essa prática não é isolada, ela é socialmente compartilhada por outros vendedores. Fabrícia comentou que outro vendedor, anteriormente, havia pedido um desconto para uma venda, e ao conferir o painel da ferramenta, ela auferiu que aquela venda traria um prejuízo, pois quase zerava o valor de um produto. Nesta ocasião apontou que:

[fico] assustada. Esses vendedores ‘jogam verde’ e mesmo sem eu ter

autorizado o desconto ela fechou a venda [...] parece que eles jogam contra a [Alfa] em favor do cliente (FABRÍCIA).

Desse recorte de entrevista e os argumentos pontuados é possível associar essa atitude dos vendedores à “cultura” do foco em vendas; uma vez que eles possuem no seu ambiente, fatores construídos que os levam a fechar vendas, quase que “a qualquer custo”, motivados pelo seu contexto de trabalho. Essa análise vai ao encontro do proposto por Fernandes e Zanelli (2006) uma vez que é possível perceber que essa cultura da família é um fator que tende a influenciar e criar forma valores, normas, e padrões esperados de comportamento.

Outra questão que surge desta liberação de pedidos é o tempo gasto com a operação. Em várias ocasiões, em reuniões, foi possível perceber que os gestores e diretores ficaram boa parte do tempo analisando pedidos de liberação de desconto. Quando indagados, apareceram duas justificativas, a primeira, em relação a um problema na métrica do sistema de verificar o limite pré-liberado, e segundo os vendedores, por conta da proximidade dos diretores e gestores, burlam a hierarquia de se dirigirem primeiramente aos seus gerentes, para conseguir descontos maiores.

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Os gestores podem liberar descontos mesmo que o conjunto de produtos no orçamento do cliente não contenha produtos de sua gestão. A exemplo, um gestor de refrigeração pode autorizar descontos em móveis.

Dessa forma, pode-se dizer que há uma leitura subjetiva, compartilhada, sobre o fator transformador de práticas e da ferramenta que é a construção social dos sócios sobre a ênfase às vendas. Em outras palavras, as metas e prêmios dos vendedores, as cobranças de resultado dos gestores e gerentes são todos vinculados ao faturamento de vendas, unicamente. Além disso, há fatores implícitos como o que já foram apresentados de “cultura de vendas” reforçados por comentários da diretoria, que como verificam essa informação regularmente; acabam por fazer comentários também recorrentes para os vendedores e gerentes como: “você vendeu tanto, devolveu tanto” (VÂNIA). O Quadro 10, a seguir, organiza estes argumentos.

Quadro 10 - Foco em vendas

Noesis (como) Noema (o que) Redução (motivo)

Fenômeno “Cultura” dos sócios/da

empresa

Análise feita somente por vendas

Imposição, implícita e explicita, para foco em vendas Fonte: Desenvolvido pelo Autor