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O patrimônio industrial na cidade de São Paulo

IMÓVEIS TOMBADOS: ENDEREÇO T

5.3 Uso museal

Outra forma identificada de apropriação desse patrimônio é a criação de museus, geralmente com a temática industrial e tecnológica, muitos em antigas áreas ou edificações industriais. Não deixa de ser uma variação da forma de apropriação apresentada anteriormente já que também envolve a mudança da função original. Porém, a proposta pedagógica e cultural deste programa é mais evidente e vincula-se estritamente ao cumprimento de uma função social muito relevante às práticas patrimoniais. Além do que, o uso museal se relaciona diretamente ao próprio processo da compreensão do significado e da valorização do patrimônio industrial, especialmente a partir da década de 1960 3. Desse modo, é comum

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Ainda no século XVIII, é possível identificar iniciativas cuja preocupação é a exposição de material tecnológico, como a criação do “Conservatoire des Arts et Métiers”, em Paris em 1794, primeiro museu relacionado ao tema cujo acervo consistia em demonstrar as máquinas inventadas (VICHNEWSKI, 2004, p.19 e DAUMAS, 1980, p.431). No século XIX essas iniciativas intensificaram-se, na Great Exhibition de 1851 em Londres, máquinas dos primórdios da Revolução Industrial foram apresentadas ao público devido à compreensão de que eram tecnicamente importantes e posteriormente constituíram o acervo inicial do Science Museum criado em 1857 (COSSONS,1978, p.22). Esse crescente interesse embasou a criação de museus em alguns países como

observar diversos tipos de patrimônio cultural convertidos para as mais diferentes modalidades museais.

Conforme aponta Jeudy sobre museus relacionados ao patrimônio industrial:

Prosseguindo nossa caminhada, vemos erguer-se um edifício inteiramente reconstituído, bem limpo, bem distinto dos terrenos vazios, porque parece ocupado. É o museu. Sabemos que, ao entrar nele, não experimentaremos as mesmas emoções. Aprenderemos coisas, veremos que ali tudo está correto, em ordem, que as máquinas parecem prontas para funcionar, e que nenhum detalhe escapou à reconstituição do que foi o local de trabalho. Terminaremos até sabendo “como tudo se passou”. Como não apreciar essa ordem do museu? Ele preenche bem sua função: é a evocação maquinal do que foi. Os últimos operários ainda vivos na ocasião de sua criação talvez tenham se revoltado, dizendo que foram tratados como mortos e, sobretudo alegando o tratamento “excessivamente cor-de-rosa” dispensado às suas “memórias operárias”. Terminaram cedendo. Era o museu ou o esquecimento. (JEUDY, 2005, p. 25-26)

Existem os mais diferentes tipos de museus, de caráter industrial e tecnológico em diversos países, ou ainda, museus populares com recriações de ambientes industriais e domésticos, coleções a céu aberto representadas pelos edifícios e artefatos em áreas que tiveram importância na evolução industrial (BUCHANAN, 1974, p.58). A conservação em museus de remanescentes industriais foi amplamente discutida por diversos autores no âmbito do campo disciplinar da arqueologia industrial; para Buchanan e Cossons existem, a princípio, duas formas básicas de preservação desses artefatos: in situ ou no museu (COSSONS, 1978, p.28 e BUCHANAN, 1974, p.53). As críticas se configuram, basicamente, na reunião de objetos diversificados de modo a não esclarecer exatamente sobre a abrangência dos processos produtivos.

Cossons salienta que, do ponto de vista da conservação dos artefatos, a condição do museu como edifício é diferente da condição do museu enquanto instituição organizacional. Para o autor é necessário observar que as exibições não sejam destruídas com o objetivo de adaptá-las em detrimento à integridade do material. Mesmo assim, Cossons reconhece que alguns museus providenciais responderam à demanda da conservação industrial com

o Museo de Fábrica de Saint-Etienne e o Museo Histórico de los Tecidos, de Lyon (SANTACREU SOLER

apud VICHNEWSKI, 2004, p.20). Outra iniciativa a ser destacada nesta trajetória é a criação em 1891 do museu Skansen, em Estocolmo pelo sociólogo Arthur Hazelier, com construções reproduzindo várias edificações típicas

da Suécia como granjas, moinhos, etc. (LÓPES GARCIA, 1992 e AGUILAR, 2001 apud VICHNEWSKI, 2004, p.19).

departamentos que coletam maquinários, se concentrando nas contribuições do desenvolvimento da engenharia e tecnologia (COSSONS, 1978, p.23 e 28).

Maurice Daumas comenta sobre a multiplicação e desenvolvimento de vários museus científicos e técnicos depois da Segunda Guerra Mundial em diversos países. Porém, em sua asserção, muitos atuaram sem o conhecimento do campo de estudo da arqueologia industrial, o que foi prejudicial para a efetiva preservação do material (DAUMAS, 1980, p.435). Daumas também chama atenção para evitar a mescla de objetos de diferentes épocas, pois há uma tendência em utilizar os locais disponíveis para agregar objetos técnicos antigos com o objetivo de restituir um ambiente que evoque a época dos trabalhos. Convém, porém, determinar qual época foi mais representativa para ajuntar um material homogêneo que a possa ilustrar. O caráter técnico dessa indústria deve estar enquadrado pela evolução de seu ambiente cultural, sociológico, econômico e por sua história.

É interessante observar que em muitas dessas exposições seja dos processos produtivos, seja da máquina isolada, a função é um aspecto determinante, que pode ser ilustrado através do caso do Museu do Pão - Ilópolis (RS) – (apresentado no capítulo dois) onde a pequena produção de farinha do moinho compõe o acervo documental. Ver o processo em funcionamento tal qual era, ou a máquina em funcionamento, é, muitas vezes, uma parte fundamental do processo de cognição do patrimônio industrial.

Porém, há o problema de incorrer em uma compreensão parcial da totalidade do processo, ou das condições sócio-espaciais que geravam a execução daquela atividade. O pesquisador Ulpiano B. de Menezes relaciona esse aspecto ao analisar o patrimônio industrial e seu eventual “uso museológico”:

[...] Atente-se, por exemplo, para um caso simples, como a operação de máquinas antigas como simulacro de contexto: é preciso ter em conta que a informação assim gerada é parcial e orientada, pois dela estarão excluídos ou mascarados dados relevantes, como a natureza social do tempo e formas de operação, a divisão técnica e social do trabalho, a corporalidade (enquanto parte de um sistema cultural na relação homem-máquina), os conteúdos do imaginário na ótica dos fabricantes, proprietários, administradores, operários, familiares, etc., as significações espaciais e uma infinidade de outros aspectos. Os simulacros e encenações não recuperam tais dados, antes os deformam. (MENEZES, 1986, p.72-73).

Através do caso Ironbridge Gorge Museum 4 é possível compreender o aspecto do uso, que além da dimensão museal, pode fazer parte da intervenção na medida em que pode promover parte da sustentabilidade econômica do projeto. Toda a região de Ironbridge era antes devotada à siderurgia, e na década de 1960 passava por um processo de decadência, além de estar ameaçada pelo desenvolvimento da nova cidade de Telford. Em 1967 foi constituída em Ironbridge uma fundação para tentar preservar os edifícios históricos. Na década de 1970, a cidade foi restaurada pela Companhia de Desenvolvimento de Telford, graças a fundos estatais, sendo estruturada para fins turísticos, provendo economicamente a atividade metalúrgica da região. Nas antigas usinas, passaram a funcionar oficinas com material transferido de uma antiga usina de Bolton (Lancashire) , última com a produção de ferro “doce” na Inglaterra e fechada em 1976. A partir de 1982 passou-se a produzir ferro através de técnicas tradicionais, atuando como ateliês de restauração não só para a fundição, mas também a serviço de organizações e particulares (KÜHL, 2005, p.106-107).

Nos itens tombados ou em estudo pelo CONPRESP pode ser identificado somente um caso nessa categoria que é a intervenção no Complexo da Figueira dos Balões da Comgás, conhecido como Complexo do Gasômetro que fazia parte de um conjunto em que se fabricava, armazenava e distribuía gás canalizado para a cidade de São Paulo.

A Companhia de Gás de São Paulo (COMGÁS) 5 reativou em 2008 essa sede no Brás, onde voltou a funcionar como Centro Operacional da Região Metropolitana, função que teve entre 1890 e 1972. O conjunto de 24 mil m2 com edificações como os balões que armazenavam o gás e outros prédios de diversos períodos que distribuíam esse produto, passou por um processo de restauraçãoem que parte das estruturas (balões) e a antiga casa dos compressores foram destinados a um espaço expositivo. Nesse espaço se encontra a exposição permanente “Memória do Gás: o futuro sempre presente” em que é apresentada a documentação referente à memória da utilização do gás canalizado como fonte de energia na cidade desde sua implantação no século XIX até hoje.

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No âmbito da preservação in situ, a importância da criação do Ironbridge Gorge Museum em 1968, é praticamente uma unanimidade. De acordo com Cossons, esse projeto difere dos demais museus até então relacionados com o tema tecnologia e engenharia por se estabelecer no local todo um conjunto de edifícios, fornos e maquinários de extrema importância para a Revolução Industrial inglesa (COSSONS, 1978, p.33-34). Além de seu conteúdo, a importância da criação do Ironbridge Gorge Museum também se vincula ao processo da própria compreensão da significância do patrimônio industrial e de sua valorização enquanto herança cultural durante a década de 1960, representando um marco definitivo para a preservação desse patrimônio.

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Informações mais detalhadas a respeito da história do complexo e do processo de restauração podem ser encontradas no livro Complexo do Gasômetro – a energia de São Paulo, (2008) desenvolvido por Hugo Segawa, Luís Antônio Magnani (responsável pelo projeto de restauração) e Roseli Baratella.

Fig. 52 A: Complexo do Gasômetro – APT 19/91 e ZEPEC

26/04. Planta das áreas abertas à exposição. Fonte: <http://www.comgas.com.br>

Acesso em: 01 Dez. 2010

Fig. 52 B: Sala dos Compressores, exposição.

Fonte: Catálogo “Memória do Gás – o futuro sempre presente”

Fig. 52 C: Balão N o1, painéis expositivos.

Fonte: Catálogo “Memória do Gás – o futuro

sempre presente” Fig. 52 D: Complexo do Gasômetro – APT 19/91 e ZEPEC 26/04. Fonte: Revista AU, N. 168, Março 2008, p.12.