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Usos, atividades e intervenções arquitetônicas

1. O CENTRO HISTÓRICO DE OLINDA

2.2 O Conjunto Arquitetônico Civil Patrimonial e as Legislações de Proteção

2.2.1 Usos, atividades e intervenções arquitetônicas

A adequação de edificações históricas e culturais a novos programas de necessidades é um desafio que se apresenta permanentemente no campo da conservação e está relacionada com

gostos pessoais decorrentes de um modismo incorporado facilmente por agentes sociais envolvidos com bens patrimoniais. A conservação de um imóvel de valor cultural está vinculada à sua correta utilização e à sua participação no cotidiano de um lugar. A Carta de Burra (1999) define como uso compatível o que respeita o significado cultural de um sítio, não implicando nenhum impacto ou um impacto mínimo sobre esse significado. É importante a compreensão pelos agentes sociais da relação intrínseca entre usos, atividades e valores dos bens patrimoniais e dos danos que dela podem resultar, uma vez que grande parte das transformações físicas promovidas em imóveis civis patrimoniais objetiva atribuir- lhes novo uso.

No ano 2000, em seu estudo sobre as transformações promovidas nos espaços de habitação do sítio histórico de Olinda, Moreira (2006) aplicou pesquisa em 3305 imóveis e verificou que o uso habitacional se conservava em 88,17% deles. Do total de entrevistados, 88% concordaram que a predominância do uso habitacional deveria conservar-se e que só deveria ser permitida a instalação de comércio e prestação de serviços de pequeno porte. A pesquisa identificou que, do total de imóveis em que foram executadas intervenções arquitetônicas entre 1982 e 1999, o maior percentual, 37, 27%, correspondeu a imóveis localizados no Setor Residencial Rigoroso. Evidenciada a relevância do seu caráter residencial, a conservação da morfologia e da tipologia dos imóveis de interesse histórico-arquitetônico que compõem este setor implica na permanência dessa qualificação.

O conflito de valores inerente a áreas históricas com vitalidade foi analisado por Vieira (2006: 17) que julgou que a prática preservacionista contemporânea nas cidades brasileiras tem enfatizado demasiadamente o valor econômico das suas áreas patrimoniais em detrimento dos valores culturais, os quais foram motivo para o reconhecimento de seu valor patrimonial. Hidaka (2000: 7) entende que a não aplicabilidade de uma prática de priorização da questão da permanência dos valores culturais se dá, muitas vezes, pela busca desenfreada por um desenvolvimento econômico desejado e afirma que isso ocorre porque muitas sociedades se apropriam de valores exógenos à sua realidade e necessidades. A conservação integrada do conjunto arquitetônico civil patrimonial do CHO requer que valores econômicos desempenhem função complementar aos valores culturais.

Na escala de valores atribuídos ao CHO, a ênfase aos valores socioeconômicos se faz representar na quantidade de intervenções arquitetônicas promovidas no SRR para abrigar

usos e atividades contemporâneas que têm caráter efêmero e são ditados por gostos e modas. A consequente e progressiva diminuição de imóveis com uso habitacional pode passar a interferir nos valores e no senso de pertencimento dos moradores, bem como na conservação integrada do sítio. Muitas intervenções arquitetônicas são promovidas para dotar os imóveis de conforto ambiental e esse contexto sinaliza para a associação dos valores socioculturais a novos significados.

Moreira (2006: 17) entende que a pressão por mudanças imposta pela população sobre a cidade é uma consequência da dinâmica da vida moderna e atribui as mudanças impressas no conjunto arquitetônico civil patrimonial do CHO à implantação de novos usos, sendo a conciliação da conservação com as expectativas dos moradores um desafio para os gestores do Centro Histórico de Olinda. O autor (2006: 123 - 124) identificou que a adaptação do imóvel civil patrimonial ao estilo de vida dos moradores é a principal causa de transformação das tipologias que ocorre através da implantação de novos usos e atividades e da adoção de soluções arquitetônicas contemporâneas. O autor ressalta ainda que a substituição do uso residencial por novo uso/atividade vem comprometendo a vida cotidiana no sítio e promovendo intervenções de adaptação dos imóveis que destroem sua tipologia original. E identificou que, mesmo o uso residencial e também o uso misto que têm relação direta com a conservação sustentável do sítio e com a permanência da qualidade de vida de sua população têm provocado alterações físicas no ordenamento espacial interno e nas características morfológicas externas dos imóveis civis patrimoniais produzindo novos tipos arquitetônicos, comprometendo a integridade das suas estruturas físico-espaciais e, consequentemente, o transporte da significância cultural.

Considerando o binômio - transformações arquitetônicas e implantação de novos programas e funções em imóveis civis patrimoniais, Francisco de Gracia (1992: 129) recorda que a forma sobrevive às funções e que os conteúdos sociais da arquitetura, equivalentes aos próprios significados funcionais, caem na obsolescência muito antes dos objetos que podem encarnar diversos significados simultaneamente. Rossi (2001: 16) ressalta que um edifício pode conter muitas funções independentes de sua forma, mas é essa forma que estrutura o edifício e que fica impressa em nossa memória. São os atributos físico-espaciais que compõem a forma do edifício e que transportam os diversos significados que desempenham o papel de instrumentos de memória para sujeitos que mantêm laços com esse edifício.

Discorrendo sobre o tema, Lemos salienta que, em geral, a implantação de novos programas exige adaptações ou intervenções arquitetônicas e ressalta que as alterações programáticas são uma fatalidade cultural, uma vez que os programas se encontram em permanente transformação decorrente da variação das demandas sociais ou provocada por novos fatos sociais advindos da evolução da civilização. E foi em razão do reconhecimento da fatalidade das alterações programáticas que ocorrem em um imóvel ao longo do tempo que a Carta de Veneza recomendou a preservação das sucessivas intervenções delas decorrentes. Lemos propõe ainda uma reflexão sobre programas, usos e costumes que se encontram em contínua mudança abrigados em imóveis caracterizados por uma rigidez que caracteriza a configuração físico-espacial de imóveis históricos e que tem relação com sua condição de integridade e com características e processos que transmitem seus valores. Atributos que contribuem na percepção da integridade dos imóveis devem ser conservados, a exemplo do programa arquitetônico e dos espaços internos determinantes para a permanência do caráter do edifício. Jokilehto (2006) refere-se à integridade como a "identificação da condição funcional e histórica do local", que corrobora a reflexão ora desenvolvida sobre usos e atividades no CHO.

Princípios da conservação integrada foram incorporados no instrumento normativo municipal que estabeleceu critérios para implantação de usos e atividades nos setores do Conjunto Monumental. O conjunto arquitetônico do Setor Residencial Rigoroso foi caracterizado como sendo constituído por edificações com tipologia e morfologia conservadas, devendo os usos permitidos se adequar à sua configuração, respeitando sua integridade física e arquitetônica e a preservação das relações de vizinhança no conjunto. Em quase duas décadas de vigência da lei características volumétricas de imóveis do SRR e sua implantação no terreno foram alteradas, seus materiais de revestimento externo e elementos compositivos suprimidos e/ou substituídos, resultado da adoção de novos padrões funcionais. O uso misto (residência/serviços), a atividade de pousada, de restaurante ou de comércio, novas destinações funcionais a imóveis do SRR geraram a ampliação da área construída com anexos construídos nos quintais. O instrumento normativo federal admite adaptações físicas nos imóveis patrimoniais para dotá-los de melhores condições de habitabilidade 68

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Qualidade de habitável, possibilidade de ser habitado (Dicionário Aurélio Eletrônico).

e conforto ambiental, as quais devem resguardar a manutenção das suas características morfológicas, seu ordenamento e relações espaciais internas tradicionais. O instrumento normativo municipal pondera princípios contemporâneos de conservação, mas

os procedimentos de gestão adotados não têm sido eficientes no controle dos processos de transformação promovidos no conjunto arquitetônico civil patrimonial.

Entre os valores associados ao conjunto arquitetônico civil patrimonial do CHO sobrepõem- se os valores de uso/funcional e o econômico, situação atestada pelo número de imóveis de uso habitacional que são substituídos por atividades comerciais e de serviços. Interesses econômicos e aspectos ideológicos que envolvem a proteção do patrimônio são componentes do ideário da conservação contemporânea, mas a ênfase no enfoque econômico da conservação do sítio pode passar a afetar sua significância cultural. Vieira (2006: 79 - 80) salienta a importância da garantia da manutenção do uso residencial e da busca pelo equilíbrio das funções sociais, econômicas e culturais que constituem a diversidade funcional ou social e que contribui para asseverar a vitalidade do sítio. Nesse sentido, Pereira (2007) chama a atenção para que gestores e conservadores se preparem para entender as necessidades sociais atuais e atuem de forma a evitar que as gerações futuras sejam prejudicadas em sua capacidade de utilização e compreensão do legado cultural.

O valor social desempenha importante papel no fortalecimento da identidade do CHO e sua permanência depende da implantação de usos e atividades que estabeleçam relação compatível com a configuração dos imóveis civis patrimoniais e não interfiram na conservação da significância cultural do sítio. Os procedimentos adotados no licenciamento de usos e atividades devem ter caráter mais abrangente para garantir a permanência dos significados e valores contemplados na Declaração de Significância Cultural do sítio. A inexistência de valoração social pode comprometer o sentimento de pertencimento e a qualidade de vida69