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Utilização de arquivo-referência

3.2 Oportunidades para aprender

3.2.1 Utilização de arquivo-referência

Uma prática cotidiana nos escritórios pesquisados é a utilização de arquivo-referência para orientar a realização de novas atividades (sobretudo dos iniciantes). Praticamente todos os estagiários e arquitetos juniores, ao serem solicitados para a realização de novas atividades, recebiam material para servir de referência. Denominado nos escritórios como “arquivo-referência” é o exemplo de um projeto (arquivo digital) utilizado como demonstração, que muda conforme o tipo de projeto corrente. Geralmente, esse modelo é enviado pelo líder ou coordenador do projeto para o executante da tarefa ver como o projeto foi resolvido e tê-lo como referência.

Ao receber o arquivo-referência, o estagiário ou arquiteto júnior tenta entender o que aconteceu naquela situação – qual era o contexto e quais foram as soluções dadas – e, com base nele, desenvolve as soluções para o próprio projeto. Esse foi o caso de Gisele (arquiteta sênior e líder de equipe do Escritório C), que passou informações à Solange (arquiteta júnior) sobre o cálculo de áreas permeáveis e impermeáveis de um projeto. Solicitando que Solange dividisse essa tarefa com a estagiária, Gisele enviou- lhe um arquivo-referência para que ela observasse como foram feitos os cálculos, as tabelas e os desenhos.

Esse contexto, que torna possível ao iniciante desvelar caminhos na produção de projetos, é completamente distinto de uma situação formal de ensino, quando o mestre/professor tenta transmitir ao aluno determinado conhecimento/informação. Ao receber o arquivo-referência, o estagiário ou arquiteto júnior está sendo engajado no conjunto de atividades do escritório para a produção do projeto. O fato de ser uma situação nova não cria, portanto, um contexto distinto (onde ele deve primeiro aprender

para depois executar). Ele aprende como parte do processo, e o modelo funciona como guia que traz a marca das práticas dos veteranos.

Para Aroldo (arquiteto master e diretor de arquitetura no Escritório C), o arquivo- referência tem a ver com a memória (com o know-how) da empresa; não se trata simplesmente de uma cópia:

Para mim a referência é de certa maneira quando você faz memória. Uma coisa é você repetir uma tarefa, aprender com a repetição e ficar fera naquilo, e não entender que ela é simplesmente uma repetição pela repetição; ela é uma evolução e um aprendizado, dependendo da lupa que você puser. A outra coisa é você fazer memória, assim como

você tem um arquivo e um portfólio e um trabalho assim, é como se você tendo que fazer uma ação nova se você fosse no álbum de retrato e olhasse, por exemplo, como foi que meu avô lidou com isso, quer dizer, olha como foi interessante a solução, a referência, o portfólio nos traz experiências que podem ser incorporadas e melhoradas, se ela for, mesmo as experiências olha, não faça isso.

[...] Quando você vai a uma referência você vai com esse olhar de poder aprender às vezes até com a maneira que você fez mesmo. [...] O foco da referência tem para mim essa questão, ele não é uma cópia, se você

não avalia com crítica você corre o risco de mecanizar uma ação

(grifos nossos).

O uso cotidiano do arquivo-referência nos escritórios funciona como um tipo de prática que estabelece diálogo com as práticas/modelos dos mais habilidosos/experientes. É, portanto, um vestígio dos veteranos e é também um tipo/modo de mostrar. Assim, os arquivos-referência guiam as ações dos iniciantes em atividades antes não experimentadas sem que tenham de ser retiradas de contexto de produção dos projetos, o que torna difícil perceber essa atividade como aprendizagem.

Em determinado dia da observação, Arildo (estagiário do Escritório C) estava fazendo uma compatibilização de projeto estrutural com o de arquitetura e, assim que me sentei ao lado dele, logo ele disse: Eu aprendo muito vendo os projetos, desenhos, a forma de

representar, as soluções que o arquiteto deu para o projeto, os locais onde vai o shaft, os banheiros acessíveis. À medida que falava, abria alguns arquivos-referência de

desenhos no computador – os quais continham esses exemplos – e me mostrava. Conforme relata Gisele (arquiteta sênior e líder de equipe no Escritório C), o arquivo- referência ajuda quem vai executar a tarefa a raciocinar sobre o projeto:

Na referência, por mais que ele esteja claro ali, ele vai perguntar: ‘Mas por que colocaram isso aqui? Por que tem sempre essa informação?’ Vai ter sempre um porquê; porque não tem ninguém para falar, ele vai

ter que raciocinar em cima daquela referência para poder traduzir aquele mesmo pensamento que o desenho está trazendo. Acho que a referência é fantástica. Não é uma cópia, o projeto é outro. Ela tem

de raciocinar; por mais que a gente passou a referência, não pode copiar aquela referência e passar para cá, ela tem que entender a

referência, entender o porquê de estar aquela referência daquela forma e traduzir esse porquê para o projeto que está fazendo (grifos

nossos).

É importante notar que na argumentação das pessoas é recorrente a afirmação de que o arquivo-referência não pode ser entendido como cópia. Nesse caso, trata-se de uma “tradução” de uma referência para o novo contexto (como argumentam alguns arquitetos: é repetição, mas não é cópia). A cada nova ação ocorre novos ajustes de percepção. Ao ver a referência e tentar realizar a tarefa daquela maneira, o iniciante percorre o caminho dos veteranos, redescobre e pode decidir sobre como caminhar no novo projeto (e isso é aprender). Assim, o arquivo-referência funciona como pista para os iniciantes e não como camisa-de-força. Isso é o que revela também a narrativa de Renata (estagiária no Escritório C), que relata sobre o arquivo-referência como duplamente importante: para ver como a pessoa resolveu o projeto e para manter o padrão da empresa:

Eu acho que esses arquivos de referência são essenciais porque a gente vê como que a outra pessoa trabalha. E a gente tem que

entregar uma coisa padronizada para o cliente. Não pode ser... Foi eu que fiz então vai ser diferente do que a Gisele fez, não. Tem que ser tudo padronizado. Padrão da empresa exatamente. Então é essencial eu ver o trabalho dela. Ela já fez um corte, então deixa eu ver como ela fez o corte. Os veios que ela colocou no corte. O que ela considerou de acabamento, pra eu colocar igual no meu. Aí nos próximos que eu for fazer, eu vou repetir essas coisas que eu vi na referência (grifos nossos).

A escolha de quais arquivos utilizar como referência é feita, obviamente, pelos mais experientes e, embora a recomendação da empresa seja a de buscar as referências sempre nas fontes seguras, ou seja, nos manuais, na prática, em muitos casos, isso não ocorre. Os arquitetos passam aos estagiários e arquitetos juniores projetos que eles mesmos já fizeram para servirem de referência.

É importante salientar, entretanto, que quase nunca o arquivo-referência vinha sem algum tipo de orientação. Em alguns poucos casos, a pessoa que ia fazer a atividade recebia o arquivo sem uma explicação sobre o que deveria ser observado naquele projeto:

Nesse sentido eu acho que é importante dar referência, mas mostrar o motivo por que ela está se referenciando para aquele problema. E se isso não for contado, quem recebeu tem a obrigação de

fazer uma análise e checar de onde veio a referência. [...] Nesse

sentido, ela vai contribuir para o crescimento do projeto (AROLDO,

arquiteto master e diretor de arquitetura, Escritório C, grifos nossos). Afirmando que a referência é utilizada por todos na empresa, Roberto (estagiário no Escritório C) aborda sua recorrência no cotidiano: Todo mundo tem algum arquivo-

referência para poder consultar em relação a material, a detalhe, principalmente detalhe. A gente usa isso muito em detalhamento, referência de material, de fixação.

Pode-se relacionar a prática do arquivo-referência, com o que Grasseni (2007a) considera sobre “dispositivos mediadores” para o treinamento visual. E é pela prática de ver essas referências ao longo do desenvolvimento dos projetos que o arquiteto iniciante “treina sua visão” em relação ao que pode ser considerado um “bom projeto” ou às “boas soluções de projeto” pela empresa.

Segundo Grasseni (2007a, p. 8) “a visão não é tratada como metáfora para alguma coisa mais, mas como um processo real que caracteriza a vida cotidiana em diferentes comunidades de prática” (tradução nossa). Segundo ela, “a visão é um importante meio sensorial e cognitivo, dentre outros, por meio dos quais os modos de conhecer são aprendidos e podem ser investigados” (GRASSENI, 2007a, p. 213, tradução nossa). Ver, portanto, implica a busca ativa de informação no ambiente, e tal capacidade é o resultado de uma visão habilidosa (skilled vision), que é somente obtida por meio de aprendizagem.

Essa prática do arquivo-referência, ou seja, de observar o arquivo e, com base nele, executar a atividade, não é como aprender uma dança, por exemplo, ver um movimento

de outra pessoa, a posição do braço, da perna e tentar repeti-lo, ou executar alguma tarefa mediante uma instrução verbal. Trata-se de uma representação gráfica91. Ao ver o projeto, a pessoa o compreende, embora não tenha acompanhado o fazer, o processo. Essa prática é uma forma específica de instrução desse campo (como também das artes plásticas, do design e da música). Conforme afirma Ingold (2007, p. 300), essas informações visuais são um tipo de notação:

Para descrever coisas, nós usamos linhas de vários tipos que codificam informação sobre o mundo ou instruções para ação, elas convencionalmente compreendem uma notação. A fala é notada em palavra escrita e a música em uma notação especializada que transmite instruções para o artista como e o que tocar. A notação da arquitetura passa orientações para a construção (tradução nossa).

Para decodificar e entender essa notação, há um treinamento que precede esse momento. No caso dos escritórios pesquisados, o estagiário começa a aprender a “ver um projeto” nas disciplinas de projeto e de desenho na faculdade. Por isso, para começar a fazer o estágio, conforme relatado, ele deve ter noções básicas de projeto de arquitetura, as quais começam a ser desenvolvidas na escola e aprimoradas na prática cotidiana nos escritórios. Isso não significa, entretanto, que esse é o único modo de aprender a decodificar projetos92.

Aroldo (arquiteto master e diretor de arquitetura) comentou sobre a importância da referência visual para o projeto arquitetônico:

A experiência registrada visual é importante, e outra, digo que além do desenho é a obra (construção). É o que o Ivo (arquiteto master e diretor- técnico) tenta fazer com as pessoas e levá-las até lá (na obra): ‘Olha,

você fez uma casa de máquinas, olha como ela funciona, olha como é essa correia, como isso aqui acontece, olha o telhado, olha a

                                                                                                               

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Busquei na arquitetura e em outros campos alguma referência que me ajudasse a entender esse fenômeno. Encontrei três autores que tratam da visualidade, mas especificamente não contribuem para a compreensão da aprendizagem dessa prática. São eles: Bonsiepe (1997 e 2011), que propõe a visualidade como uma das virtudes para o design; Mitrovic (2013), que também argumenta sobre a importância da visualidade; e Stafford (1996, p. 23), que afirma: “A tendência geral à visualização tem profundas consequências intelectuais e práticas para as ciências humanas, ciências exatas, biologia e ciências sociais – na verdade, para todas as formas de ensino, de cima a baixo”.

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Eu mesmo pude experimentar, sem passar pelo curso de formação em arquitetura, uma ampliação de minha compreensão da linguagem do projeto arquitetônico. Se esse não é o objeto/foco dessa investigação, pelo menos mostra outros percursos possíveis de aprendizagem.

portinha de entrada nela, olha a ventilação cruzada’, ou seja, mais

que o 2D você tem a obra, e mais que a perspectiva você tem a obra. Eu acho que essa referência visual é muito enriquecedora (grifos nossos). Nesse caso, o arquivo conjuga explicação, como também mostrar/sentir por meio da experiência de observar as soluções de projeto executadas na obra.

Nessas práticas de ver como a pessoa fez ou mesmo de ver o desenho pronto e, com base nele, entender o que e como foi feito, os iniciantes começam também a “educar sua atenção” (INGOLD, 2010) para se tornarem praticantes habilidosos. Grasseni (2007b, p. 211) argumenta que “esses modelos são importantes principalmente para os novatos na aprendizagem da prática profissional, onde o papel de referência é fundamental”.

Além de ser uma prática recorrente para os iniciantes, vale destacar que o arquivo- referência também tem sua importância para os arquitetos mais experientes, conforme afirma Wagner (arquiteto pleno do Escritório C):

Você está oferecendo de presente, de bandeja para o cara um repertório e estimulando-o a pensar; está dando o ponto de partida para ele pensar; isso também é feito no projeto, ninguém reinventa a roda. Num projeto novo você tem uma referência de outro para você começar o processo.

Outros “dispositivos mediadores” nesses escritórios são os próprios projetos (o portfólio)93 das empresas. Especificamente no Escritório C, há mais dois: o Manual de

Arquitetura e o Manual de Desenho Técnico, disponíveis na rede interna para todos os

funcionários da empresa.