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4 A REPRESENTAÇÃO SOBRE O LETRAMENTO E A ESTRUTURA

4.2 Os posicionamentos do grupo acerca do ensino do letramento

4.2.1 Letramento como “linha de partida”

4.2.1.1 Valorizando os conhecimentos prévios das crianças

O cenário em que os conhecimentos prévios são valorizados pode ser reforçado quando os professores apresentaram, em suas elocuções, a importância de contextualizar as práticas de escrita e considerar as impressões e vivências que as crianças levavam para a sala de aula a respeito do mundo, ou seja, seus conhecimentos/leituras de mundo. Ao exporem seus posicionamentos acerca da temática em questão, os professores dizem da funcionalidade acerca do letramento e do modo como ele deve ser ensinado, os quais se materializam na valorização e ampliação desse letramento como sendo os saberes que as próprias crianças já conseguiram construir anteriormente. Nessa perspectiva, podemos perceber, com clareza, o discurso pedagógico recorrente de que é preciso “dar voz” à criança e valorizar o que ela já sabe. Traços dessas construções podem ser exemplificadas pelo seguinte trecho:

80 “Todo educando, com as interações do meio, juntamente com seu primeiro convívio, que é a família, traz para a escola seus próprios conhecimentos e os professores

ampliam os saberes trazidos através do conhecimento de mundo.”(P6) (grifo nosso)

Este posicionamento traz em sua essência um viés da formação destes professores, que ratificam ser importante considerar “os saberes dos educandos” (P5) para a elaboração e execução de uma proposta didática de alfabetização. Essas colocações denotam uma forte presença do legado do educador Paulo Freire na construção de suas concepções pedagógicas. Os termos “educando”, “saberes” e “conhecimento de mundo” podem ser facilmente encontrados nos textos desse autor, os quais são disseminados em ambientes de formação de professores, seja ela inicial ou continuada.

Considerando que todos os sujeitos participantes do estudo tinham até 30 anos de docência, podemos inferir que o legado de Freire tem uma presença residual na formação desses professores. Justificamos essa afirmação considerando as relações que identificamos entre palavras e frases trazidas pelos entrevistados e as concepções oriundas da obra de Paulo Freire (1986), conforme aponta o seguinte trecho:

A ampliação dos saberes é feita através de interações e intervenções com intuito de

aprofundar a aprendizagem respeitando o que o aluno já sabe. Tudo isso me

retrata o grande educador Paulo Freire, quando fala na ampliação do conhecimento. (P6) (grifo nosso)

Para consolidar essa inferência, retomamos a importância dada aos conhecimentos prévios para o processo de ensino e aprendizagem da escrita sob o prisma do educador pernambucano. Paulo Freire (1978), baseado em uma perspectiva antropológica de cultura, difundiu entre os educadores a concepção de um processo de alfabetização que pudesse oferecer aos estudantes mecanismos para exercer um papel crítico e ativo em sua realidade social, ou seja, que pudessem interferir em seus meios, produzindo cultura. Diante disso, a ideia dicotômica de cultura erudita e popular trazida tão fortemente pela pedagogia tradicional, por exemplo, perderia o sentido e a escola abriria espaço para aquilo que é produzido pelos seus sujeitos em suas comunidades, ou seja, abriria espaço para suas “culturas”.

Nessa perspectiva, o processo de aprendizagem da escrita também deveria ser permeado pelas produções culturais dos alfabetizandos. Para Freire (1992, p. 85),

[...] não podemos deixar de lado, desprezado como algo imprestável, o que educandos, sejam crianças chegando à escola ou jovens e adultos a centros de educação popular, trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática na prática social de que fazem parte.

81 deveriam ser consideradas, por essa instituição, como algo valioso e propulsor de significados. Em aparente consonância com esses pressupostos, os professores destacaram que o ensino do letramento sempre partia da perspectiva de valorização do que as crianças traziam de “seus mundinhos de leitura” (P2).

Parece-nos interessante destacar que, apesar da unanimidade evidenciada pelas falas acerca da importância dos conhecimentos prévios desses aprendizes para o ambiente escolar, um possível paradoxo pode ser observado nesses posicionamentos. Tal contradição reside no fato de que os conhecimentos de mundo ocupavam um “lugar de partida”, mas não se consolidavam nos processos de ensino da escrita cotidianos, ou seja, nos relatos não foram observados indícios que apontassem a presença do repertório cultural das crianças como fator de significação. Entendemos, portanto, que esses professores ainda carregam consigo uma perspectiva de hierarquização das práticas culturais das crianças. Esse ponto de vista é um legado predominante em sociedades pós-colonizadas, como a brasileira (ARAÚJO; PEREZ, 2011), e é observado, de forma recorrente, no comportamento dos indivíduos tanto na escola como na própria sociedade.

Essa contradição com o aporte trazido pela representação de letramento como sendo o conhecimento de mundo freireano fica evidente quando os professores reafirmam que algumas crianças chegam no ciclo de alfabetização “zeradas” e outras, que vêm da educação infantil “não deixam de ter uma bagagem” (P3). Para eles, a ampliação dessa “bagagem” ou conhecimento “começa na sala de aula, no dia a dia com o professor trabalhando com essas crianças” (P4). Com isso, ratificamos a percepção de que, possivelmente, a fragilidade de apropriação dos pressupostos teóricos que orientam tal concepção, impossibilita a real ocupação das culturas desses estudantes neste processo de aprendizagem da escrita. Apesar dos docentes compreenderem a necessidade de considerar o conhecimento de mundo das crianças, durante essa transposição para as práticas em sala de aula.

Essa ilusória valorização dos conhecimentos/leituras de mundo dos alfabetizandos aponta o possível distanciamento dos conceitos de alfabetização e letramento, quando percebemos que os saberes diferenciados sobre mundo, sobre a escrita e sobre a palavra – a sua “palavramundo” (ARAÚJO; PEREZ, 2011) não ocupam o lugar de protagonismo nas práticas pedagógicas. Isso se justifica porque, levando em conta o elemento que organiza a RS, conhecimento/leitura de mundo, como um ponto de partida e não como parte-todo de um único processo, a consequente dissociabilidade entre letramento e alfabetização explicaria o afastamento da evocação alfabetização resultante da reflexão suscitada pelo “questionamento”.

82 de posição é uma afirmação verdadeira, então podemos concluir que o posicionamento dos professores, de que o letramento valoriza o conhecimento prévio das crianças, está orientado pela crença legítima de que as crianças já vêm com “essa leitura de mundo” e que “a partir disso é que se começa a fazer as intervenções” (P7), para que aprendam a escrita.

Sobre essas intervenções para aprendizagem da leitura da escrita, a partir do letramento, discutiremos em seguida.