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Violência como Categoria Análise

No documento FALE AGORA OU CALE-SE PARA SEMPRE: (páginas 76-82)

3. A TEMÁTICA: VIOLÊNCIA, GÊNERO E ECONOMIA

3.1 Violência como Categoria Análise

Quando se pensa na infração legal caracterizada por crime como ato de infringir um código de conduta, a violência logo é subentendida no imaginário popular como expressão criminal. Debert e Gregori (2008) orientam o cuidado com a dualidade entre violência e crime funcionalizada pela legislação que trata sobre violência doméstica e familiar no Brasil, por exemplo. No entanto, a ideia que concebemos de crimes com e sem violência é amparada na estrutura penal brasileira e como se fundamenta as classificações de crimes; resumidamente, recortamos para o entendimento dos delitos com violência (como roubos e agressões) e sem violência (como furtos)68. O que permite ir além na reflexão é a existência de violência sem crime69.

Violência poderia basicamente representar a manifestação da dor causada entre seres. É a ação empregada, seja física ou subjetiva, contra algo ou alguém, como conceitua o dicionário70. No entanto, ao considerar a possibilidade de manifestação de violência sem crime, imediatamente a questão poderia solicitar exemplos que corroborassem a afirmação ou invalidassem a problemática. Neste momento faz-se necessário ancorar-se na história, para buscar entender estruturas, conjunturas e processos e a partir de então reconstituir acontecimentos com o propósito de justamente entender essa questão. Conquanto, não seja o

68 Afinal, o Código Penal Lei nº 2.848/1940 indica no seu art. 1º que não existe indicação de crime sem que haja, anteriormente ao ato, uma lei que o defina como tal.

69 Essa questão foi feita ao autor desta dissertação anos atrás e que até hoje, enquanto dedica-se à escrita destas linhas, ajuda constantemente centrar o olhar do caráter histórico que envolve as relações humanas neste tema.

70 Para mais informações acesse: <https://www.google.com/search?rlz=1C1NHXL_pt-BRBR914BR914&ei=FJkyX9nLA9vA5OUP3dOWqAE&q=violencia+&oq=violencia+&gs_lcp=CgZwc3ktYW IQAzIECAAQQzIFCAAQsQMyBQgAELEDMgIIADICCAAyAggAMgUIABCxAzICCAAyBQgAELEDMgU IABCxAzoECAAQR1DmEFisEmC2FGgAcAF4AIABlAGIAZkCkgEDMC4ymAEAoAEBqgEHZ3dzLXdpesA BAQ&sclient=psy-ab&ved=0ahUKEwjZpamCnZPrAhVbILkGHd2pBRUQ4dUDCAw&uact=5>. Acesso em 10 set 2020.

propósito desta pesquisa esgotar a discussão neste campo; muito pelo contrário, é a partir da manifestação da violência expressa contra as mulheres, e sustentada como crimes pela estrutura legal do Estado que se pretende retomar para o caminho em que a subjugação feminina era vista como consequência de sua natureza biológica. Nem sempre o entendimento da violência é semelhante ao considerar contextos e momentos específicos e, sua compreensão no seu devido tempo é algo imprescindível para a História Econômica: tempo e espaço. Um determinado fato aconteceu ou está acontecendo em um determinado espaço geográfico, social, cultural, político, biológico e econômico e que responde a um tempo, cujas manifestações correspondem a um conflito de influências internas e externas. Assim, ao considerar a violência como um fenômeno histórico, pretende-se dizer que ela se transforma conforme a sociedade, suas crenças, suas estruturas e as relações de poder.

Porto (2000) ajuda entender violência como um conceito flexível justamente por, em cada sociedade, se considerar formas diferentes de sua manifestação e o ínterim da questão está nos contornos socioculturais que as sociedades constroem nos diferentes períodos do tempo.

Por se considerar um conceito histórico, isto é, dinâmico, a violência que pode assustar as populações da cidade e do campo de hoje, com variações de significados e símbolos que se diferem de tempos precedentes e que muitas vezes podiam se enquadrar como “naturais”, noutros contextos e momentos talvez não. Neste sentido, não cabe juízo de valor aos “tempos”, pois seria um grande risco anacrônico; o caminho é mais válido pela busca do entendimento do presente, não exatamente como uma função linear do pretérito, mas como parte de processos históricos de construção, transmutação e reprodução das manifestações que possam ter

“validado” de alguma maneira a reprodução da violência.

Na difícil tarefa de conceituar este fenômeno, Saffioti (2011) alinhavou no conhecimento popular um conceito que é evocado e permeia ainda nos tempos atuais o entendimento no tocante às questões de gênero: validar a existência da violência a partir das experiências palpáveis deixando de lado as modalidades violentas que atingem a subjetividade do sujeito, indica a autora. Existe uma diferença entre a sensação da violência (sentir-se inseguro em determinada localidade) e de fato existirem ocorrências criminais registradas que validem diferenças entre uma zona mais ou menos violenta que outra (MIRAGLIA, 2011). A narrativa que se aproveitou do discurso da burguesia nas vilas operárias paulistas, como apontou Rago (2014), dizia que a moradia do pobre era antro das propagações das mais variadas mazelas que neles se podiam creditar. Como ainda afirmou Miraglia (2011, p. 324); olhando os homicídios na capital paulista em meados da última década de 1900 e primeira década de 2000,

“a violência [...] é uma ferramenta poderosa de reprodução de desigualdades”. Assim, a autora

problematiza o fenômeno pela via da sustentação, ou precisamente colocando, reprodução da segregação no próprio espaço urbano: olhar a violência não somente como resultado de um estrato populacional economicamente pobre, mas de maneira dialética, também como a condição de pobreza pode ser explicada pela existência da violência no contexto. Como ferramenta para a autora, a violência também pode ser articulada como mecanismo de controle e manutenção de assimetrias.

Sendo a violência de gênero um conceito amplo, por um lado ela encontra-se no campo do gênero, manifestado pela dualidade dos papéis historicamente destinados ao homem e impostos à mulher; por outro, imprime tensões nos moldes econômicos expressando experiências violentas vividas por mulheres por decidirem trabalhar, tensões em torno da renda seja por sua escassez, seja pela existência (muitas vezes a mínima possível oriunda de programas de transferência de renda), e também voltada a tensões em torno de propriedades, os bens compartilhados entre vítimas e algozes. Torna-se de grande necessidade para falar do feminicídio, embutir a violência doméstica e familiar por serem conceitos próximos e quando em forma de retroalimentação um corrobora ao outro. Especificamos através do marco legal no Brasil pela Lei nº 13.104/2015, tipificado como um crime cometido contra a mulher pela condição do gênero feminino em um contexto de menosprezo e por razões de violência doméstica. Em outras palavras, um crime que como lastro motivador se manifesta o ódio, na consideração de superioridade e na rejeição do sujeito. A recente sanção da Lei do Feminicídio está ligada diretamente com a história de luta e resistência feminina manifestada pelos avanços, debates e persistência dos movimentos feministas ao longo da história. Como ainda aponta Debert e Gregori (2008), se por um lado o movimento feminista em 1960 ecoava as noções de violência contra a mulher, na década de 1990 a pauta ampliava o entendimento do termo para violência de gênero, baseado na preocupação em não serem acusadas de essencialismo – sobre as fases históricas do Movimento Feminista, exploraremos na próxima subseção.

Conforme apontou Beauvoir (1970), historicamente os fatos são (im)postos para estabelecer à mulher o mesmo destino: o da subordinação, da subjugação. Não exatamente um destino que a coloca em segundo plano, como uma espécie de segunda opção; uma complementação do homem tão somente pois de certa forma poderia levar ao entendimento que ela teria autonomia (independência). Mas a autora conta que a experiência da mulher foi (e ainda é em larga medida) diferente: ela foi posta nos diferentes tempos da história como um objeto. De outra maneira, a mulher se tornou construção de um ideário de jeitos e afetos minuciosamente gestados daquele que tomou não só o primeiro lugar, mas também todos os

espaços de controle, relegando a ela o campo que aprouve seu subjugador especificar:

irrelevante. A autora coloca de forma incisiva o que buscamos indicar:

Por que as mulheres não contestam a soberania do macho? Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como inessencial; não é o Outro que definindo-se como Outro define o Um; ele é posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa submissão na mulher? (p.12; grifo nosso).

Por esta via rígida que se fortaleceu ao longo do século XX mecanismos que sustentam a prerrogativa de que a mulher é inferior ao homem e como tal, deve-se manter sob a condição da autoridade masculina. Cesare Lombroso, higienista e criminologista italiano cunhou, no início do século XX, uma forma que se tornou na época uma narrativa de como ver a mulher em seu âmbito social, justificado pela análise médico-biológica, na qual as mulheres seriam semelhantes a muitas fêmeas do reino animal: mais robustas e complexas em sua formação, mas seriam superadas pelo macho dado o crescimento natural. Assim, ele concluiu seu pensamento indicando que esta precocidade da superioridade (que logo é perdida) justificava a inferiorização da mulher por ser comum esta sucessão entre raças inferiores (LOMBROSO &

FERRERO, 2017). A antropologia criminal deste período se fundou, como afirmou Rago (2014), sustentando a diferença biológica entre criminosos, prostitutas e anarquistas com a maior parte das pessoas consideradas “normais”. Para a autora, essa diferença encontrada nos estudos científicos fazia parte da elaboração de uma convenção que justificava a diferenciação entre a dita anormalidade e a normalidade. Conglomerava preceitos que visavam higienizar a sociedade descartando indivíduos considerados “impuros” para integrar a vida social. Nesta proposta, mulheres que fossem consideradas indevidas, como as prostitutas, deveriam ser controladas a fim de não manchar o ambiente. Para a autora, essa política de ação estigmatizava essas mulheres como desvirtuadas dos valores dominantes, portanto, fadadas ao papel de ameaças sociais; por outro lado, se construía a imagem do que deveria ser a mulher: “honesta, casada e boa mãe, laboriosa, fiel e dessexualizada.” (p. 122). A biologia das espécies humanas foi usada como artifício, entre outros mecanismos, para sustentar a ideia de inferioridade feminina em detrimento da masculina e, na sociedade, a dualidade dos sexos com a construção de papéis definidos para homem e mulher.

Vieira (2013) amplia a visão da subordinação ao apontar a posição da mulher no contexto urbano na capital baiana Salvador, da década de 1930 a 1950, em que o uso do espaço estava condicionado à condição de classe e raça. No período colonial para autora, enquanto encerravam as mulheres das classes mais abastadas dentro das residências, as mulheres negras não provavam dessa mesma realidade: os serviços domésticos necessariamente eram efetuados

nas áreas públicas da cidade como resultado da precariedade dos serviços dessa ordem. Os caminhos percorridos por mulheres eram justificados pelas intersecções socioeconômicas que as marcavam de maneira a delimitar seus universos pelas condições de vida que possuíam; a autora apontou como determinadas regiões da cidade eram caracterizadas pelos recortes de classe e de raça71. Assim, qualitativamente, a vida das mulheres forjava-se de maneiras diferentes não sendo possível desconsiderar classe e raça. Ainda no início do século XX, por exemplo, nas vilas operárias paulistas, Rago (2014, p. 89) também apontou que o âmbito privado se reservava à mulher esposa do trabalhador fabril como um reduto longe e livre do

“anátema do pecado”. Este posicionamento para a autora condicionava o confinamento e a alienação da mulher no processo produtivo corroborando a idealização do trabalho por parte do homem e desqualificando a força de trabalho das mulheres.

O modelo radicado no lar, em contraponto ao público, tem na figura de Maria, mãe de Jesus, um arquétipo de mulher a ser seguida em oposição a Eva – que na tradição judaico-cristã é a primeira mulher a ser criada. Ela foi apontada por Vilhena (2009, p. 73) como uma mulher exemplo “para todas as mães humanas a ponto de poderem até sentir-se culpadas se dedicarem tempo exclusivo a seu próprio cuidado”. Esse modelo, útil e disponível ao capital, resultou em uma desvalorização da profissionalização da mulher por considerá-la somente como resposta da extensão e necessidades da família, expressa na figura do marido e no cuidado com os filhos (BEAUVOIR, 1970; RAGO, 2014).

A religião figura como reposta às aflições concretas da vida, vivenciadas no campo da subjetividade humana, conforme indicaram Fry & Howe (1975). Para os autores, o “sofrimento e aflição são genéricos a todas as sociedades e cada sociedade desenvolve formas institucionais para seu controle e resolução” (p. 75). Respostas ao cotidiano de indivíduos que se organizam na sociedade em busca de simbologias que de alguma forma possam criar e objetivar sentido na vida. Desta necessidade humana de respostas à aflição, a violência de gênero abrange uma categoria de demanda a ser respondida e resolvida no campo da espiritualidade por parte da população brasileira que professa algum tipo de crença (VILHENA, 2009). A experiência humana, especificamente de mulheres em seu dia a dia é o que Vilhena (2009, p. 87) aponta como uma “religiosidade [que] dá sentido à situação de caos em que vive.

Através de sua adesão religiosa, cria-se um imaginário que possibilita desejos reais: uma vida sem violências”. Um processo ainda apontado pela autora que considera “adestrar a mulher”

71 Um exemplo trazido é a Cidade Alta e Cidade Baixa em Salvador: sendo a primeira destinada a homens envolvidos na política e mulheres da classe alta que pouco trafegavam para algumas compras, e a segunda como expressão do comércio popular, era ocupada massivamente tanto por homens como mulheres.

(p. 124) como parte de uma narrativa civilizatória oriunda da classe dominante de maneira que imputasse a elas a “domesticação da mulher no sentido de torná-la responsável pela casa, família, o casamento e a procriação” (p. 124). Este caminho tem na habitação do pobre o desejo de controle e ação por parte dos higienistas, médicos e da burguesia; um processo de disciplinarização dos corpos de maneira a gerar uma gestão e consequentemente um controle dos atos na vida cotidiana – cada corpo sendo alocado em lugares específicos (RAGO, 2014).

De uma maneira geral, a cultura imprime e exprime comportamentos que respondem a um tempo. As músicas, por exemplo, podem relevar o imaginário de um momento; de acordo com o Jornal Itapicuru Notícias em matéria publicada por Costa (2019) em 07 de outubro de 2019, diz que “um homem foi preso em flagrante por tentar agredir a companheira com uma faca após ter ouvido a música ‘Desça daí, seu corno’”. Diante do temor pelo crivo social em ser traído, a figura masculina respondeu com a atitude mais condizente ante a sua construção social: a violência, corroborando com a ideia de legalidade da mulher como propriedade do marido. Caso semelhante aconteceu no conto da Maria Chiquinha, escrito e musicalizado por Geysa Bôscoli e Guilerme Figueiredo, quando uma geração de brasileiros acostumou-se a ensinar as crianças a cantiga que em um trecho conta que, por ciúmes e desconfiança em ter sido traído, Genaro (personagem da trama) promete que “eu vou te cortar a cabeça, Maria Chiquinha [...] O resto? Pode deixar que eu aproveito”.

Para Landes (2002) em sua etnografia da Bahia de 1930, um dos primeiros desafios na cidade de Salvador foi encontrar um lugar para morar. A autora indicou que não havia muitas opções disponíveis para mulheres solteiras que apresentassem tal demanda. Desde sua chegada, ela foi orientada constantemente dos procedimentos que deveria ter por ser uma mulher desacompanhada a trafegar pela cidade; fazia parte disso o fato de não frequentar cinemas, por exemplo, devido à possibilidade de sofrer abordagens grosseiras masculinas.

Dessa maneira, a luta feminista na Bahia também alvorou pela liberdade da mulher no acesso à educação. Um nome que integrou o movimento baiano foi Henriqueta Martins Caetano. Segundo Passos (1992), o trabalho político desta mulher visava permitir atuação feminina em três vertentes: assistência social, economia doméstica e cultural. Nascida na cidade Feira de Santana em 1886, Henriqueta M. Caetano foi educada em casa se destacando desde cedo pela sua busca, nada convencional à época, por mais conhecimento e participação ativa.

Continuou seus estudos na Europa e de lá, ataviada com todas as efervescentes discussões feministas, retornou ao Brasil com o intuito de estabelecer em Salvador um espaço de abrigo e desenvolvimento de meninas para a vida adulta. Em 1923, Dona Henriqueta fundou a Escola Comercial Feminina com o intuito de:

proporcionar à mulher, formação profissional e moral mais consistente, capaz de proporcionar-lhes condições de garantir a sua própria subsistência. A preocupação maior era com as moças solteiras, para que elas não se vissem obrigadas ao casamento, se não o desejassem, nem a viverem às custas de parentes ou por ‘meios indignos’. 72 (p. 29-30).

A visão deste movimento feminista baiano era fundamentar uma educação a partir de valores cristãos católicos de maneira que tangenciasse a liberdade da mulher na escolha pelo casamento calcado nos preceitos do que deveria ser a mulher em seu âmbito público. De acordo com Passos (1992, p. 35) essa educação baseava-se na autonegação do sujeito que representava por sua vez “disposição a servir, na abnegação, na renúncia dos projetos e sonhos pessoais em prol da realização do outro, principalmente, do marido e dos filhos. O contrário, seria entendido como desvio e erro moral”. Mesmo diante de um exacerbado conservadorismo na sociedade baiana das primeiras décadas do século XX como aponta a autora, o feminismo de Dona Henriqueta naqueles anos considerava a profissionalização uma saída para a independência da mulher pela via financeira, contudo sem firmar grandes alterações na situação das mulheres que continuavam responsabilizadas pela esfera dos cuidados no lar, delimitado nos embates da jornada dupla de trabalho. O movimento marcou o período inclusive pelo movimento de meninas e mulheres não só da capital baiana, como também pelo recrutamento de internadas oriundas dos municípios do interior da Bahia.

Do meando entre conceituar violência e levantar fatos que permitam reconstituir alguns traços da temática no estado e consequentemente na região, as estatísticas apresentadas na seção 2 fazem muito mais sentido ao convergir com essa discussão teórica e a partir deste momento, se colocam como um prelúdio do que vem a ser um histórico das tensões econômicas que foram encontradas nos documentos oficiais.

No documento FALE AGORA OU CALE-SE PARA SEMPRE: (páginas 76-82)