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A história do herói Makunaima

No documento Letras em fronteiras - UERR Edições (páginas 70-74)

Uiramutã, que para alguns abriga ‘a casa de Makunaima’, o Monte Roraima, que é de grande carga espiritual, também conhecido como a ‘mãe de todas as águas’, fonte de águas cristalinas onde estão presentes os índios Makusi, do Brasil e os Pemón, da Venezuela. Conta-se que

nas terras de Roraima havia uma montanha muito alta onde um lago cristalino era expectador do triste amor entre o Sol e a Lua e que, por motivos óbvios, nunca os dois apaixonados conseguiam se encontrar para vivenciar aquele amor. Quando o Sol subia no horizonte, a lua já descia para se pôr. E vice-versa. Por milhões e milhões de anos foi assim. Até que um dia, a natureza preparou um eclipse para que os dois se encontrassem nalmente. O plano deu certo. A Lua e o Sol se cruzaram no céu. As franjas de luz do sol ao redor da lua se espelharam nas águas do lago cristalino da montanha e fecundaram suas águas fazendo nascer Macunaíma, o alegre curumim12 do Monte Roraima. Com o passar do tempo, Macunaíma cresceu e se transformou num guerreiro entre os índios Makusi. Bem próximo do Monte Roraima havia uma árvore chamada de "Árvore de Todos os Frutos" porque dela brotavam ao mesmo tempo bananas, abacaxis, tucumãs, açaís e todas as outras deliciosas frutas que existem. Apenas Macunaíma tinha autoridade para colher as frutas e dividi-las entre os seus de forma igualitária. Mas nem tudo poderia ser tão perfeito. Passadas algumas luas, a ambição e a inveja tomariam conta de alguns corações na tribo. Alguns índios mais afoitos subiram na árvore, derrubaram-lhe todos os frutos e quebraram vários galhos para plantar e fazer nascer mais árvores iguais àquela. A grande “Árvore de Todos os Frutos” morreu e Macunaíma teve de castigar os culpados. O herói lançou fogo sobre toda a oresta e fez com que as árvores virassem pedra. A tribo entrou em caos e seus habitantes tiveram que fugir. Conta-se que, até hoje, o espírito de Macunaíma vive no Monte Roraima a chorar pela morte da “Árvore de todos os frutos” (REIS, 2006, p. 4).

Para os indígenas velhos ou novos não se discute o amor do Sol e da Lua, elementos personi cados na narrativa, pois a história de um amor humanamente impossível fez nascer um herói, o curumim Makunaima, fecundado num eclipse que uniu o Sol e Lua. Outras passagens da narrativa deixam claro o poder do herói de transformar coisas e de se transformar. O herói transformou as árvores em pedras após a morte da Árvore de Todos os Frutos; o curumim - como representação da natureza humana - virou guerreiro protetor da ora e da fauna com indubitáveis poderes intrínsecos de autoridade, como o de colher as frutas; ou ainda castigar aqueles que desobedeceram às suas ordens, transformado em pedras as outras árvores da

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12 Curumim, do tupi, variante nasalada de curumi, kuru'mi (NASCENTES, 1966, p. 225). Menino, rapaz novo ou jovem (HOUAISS, 2009).

oresta, fazendo-os fugir ou morrer de fome.

Para Frikel (1971, p. 139, apud RIVIÉRE, 1995, p. 192), “o corpo humano é simplesmente um meio de manifestação, uma espécie de

“vestimenta” que se recebe na hora do nascimento e se deixa ao morrer”. Nessa visão, o homem transcende, é imortal e o corpo é apenas uma roupa. Nesse sentido, Reis (2006) traz outro aspecto importante, quando se refere ao espírito de Makunaima que, segundo ele, vive no Monte Roraima.

Corroborando, o mito de Makunaima se apresenta em várias versões, mas, para nós Makusi, chamamos Kunaimã e é apresentado como ‘do bem’, diz o informante S.D (2018), índio da etnia Makusi, professor e falante dessa língua. Para esse povo, o herói vive na Pedra Pintada, outro ponto turístico de Roraima, que guarda forte valor cultural, conforme a narração concedida em entrevista em maio 2018:

Kunaimã nasceu na água, lá tem muitos lagos, e depois cou no monte do Marirari, serra do Surumu. É lho do Sol com a Lua. Depois se transformou em gente e quando cou grande veio para a Pedra Pintada.

Lá pegou esse nome de Makuná. Ele é coisa bom, como os Ingaricó chama de “capõ”, que cuida, que é bom, Makuná. Alguns dizem que os três (Makunain, Insikiran e Anikê) são irmãos, mas no meu Makusi/

Serumã, Anikê e Insikiran são lhos de Makunaima e nasceram na Pedra Pintada, tomaram conta para fazer arte. Eles subiram para o norte e nessa subida zeram o rio Cotingo e o rio Iren. Tem uma no Baixo Cotingo, que é a casa de Anikê e Insikiran. Continuaram a subir rumo norte e encontraram o Monte Roraima e a árvore que chamaram de Roraimã (Roro = cajuí, imã = grande, que é cajueiro grande). Então esse Roraimã dava várias frutas (banana, manga, cana, auroza13 (que é de folha), cheiro verde, muitas frutas). E o que zeram? Cortaram a árvore. Eles queriam ser donos da árvore. Acho que quem cortou foi Insikiran, que era mais danado ainda. Essa árvore jorrou água que correu pelos rios Cotingo e Maú, e, na época, tinha muitos peixes. E todos os peixes saiu. Esse peixe que vem pra cá, foi depois que eles colocaram (Anikê e Insikiran). A árvore era grande, não se sabe o tamanho, espalhou fruto para todo lado, inclusive lá perto tem banana, cana, auroza, tudo veio dessa árvore. Das folhas que caíram mais longe, que o vento levou, veio o alface, a cebola, o cheiro verde, tudo [...] Makunaima estava ensinando os dois a ser pajé, mas tinham que saber muito. Aí, Makunaima disse que para deixar eles aqui, tinha que fazer uma prova com eles. Então, ele trouxe uma cobra grande, uma serpente que eles (os irmãos) tinha que conseguir prender.

Tentaram a primeira vez, mas a cobra saiu, aí o pai falou “vocês ainda não estão pronto! Vocês têm que aprender ser mais pajé! Mais forte!”. E foi

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13 Auroza, tipo de raminho, que se assemelha ao ‘cheiro verde’, utilizado como condimento na culinária indígena (SOBRAL, 2018).

Monte Roraima, onde mora Anikê e Insikiran, naquela região. O Makunaima foi embora, ele não morreu. Uns dizem que ele morreu, mas para meu povo ele não morreu, um dia ele vai voltar. Não se sabe quando.

A “vestimenta” de humano assumida por Makunaima está expressa na fala de S. D. (2018) quando diz que ele se transformou em gente, con rmando que o espírito sobrepuja a roupa de humano e tem a capacidade de domínio sobre a árvore, os rios e os peixes. Ficam nítidas semelhanças e diferenças entre as duas narrativas apresentadas. O fato de que o Makunaima é do bem, que protege a região contra qualquer mal e que nasceu do casal Sol e Lua são informações semelhantes nos textos.

No entanto, as diferenças chegam a ser nítidas. A mais evidente e assegurada por S. D. (2018) está relacionada aos irmãos Anikê e Insikiran, que aparecem, no primeiro, como irmãos de Makunaima e, no segundo, como lhos desse; o lugar de moradia do herói, que para S. D. (2018), nos primeiros anos da vida do herói, era a Pedra Pintada e assegura que ele não mora no Monte Roraima, diferente do primeiro texto; o corte da árvore de todos os frutos, que no segundo texto tem o nome de Roraimî, deu-se pelos próprios lhos de Makunaima, que eram muito danados, assim como a ausência de exploradores que cortaram a árvore no primeiro texto.

A crença no mito é tão forte que o informante atribui ao seu povo a fonte primária de sua narrativa, assumindo, por exemplo, que uns dizem que

ele morreu, mas para meu povo ele não morreu, um dia ele vai voltar, não se sabe quando.

Outro elemento que se destaca são os símbolos que representam outros mitos como a Pedra Pintada e a Cobra Grande, mas que não serão abordados neste trabalho, uma vez que o foco é a relação mito-toponímica da região de Uiramutã. Apreciando de modo comparativo os elementos das duas narrativas, não se esgota e tampouco há profundidade teórica acerca do tema porque se trata apenas de uma amostra que ilustra a vivacidade de Makunaima em Roraima.

Muitos e excelentes trabalhos de ordens literária e cientí ca são desenvolvidos no estado cuja essência está no personagem que é o herói roraimense Makunaima. Alguns desses trabalhos, citados a seguir, ilustrarão o texto e como os demais fazem apologia a Makunaima: Meu Avô Makunaima, coleção composta por 15 telas de Jaider Esbell; do mesmo autor a obra Terreiro de Makunaima – Mitos, lendas e estórias em vivências, livro premiado pela Bolsa Funarte/MinC de Criação Literária; lmes e documentários como A Vitória dos Netos de Makunaima - Raposa Serra do Sol, de Ivonio Solon;

desenhos e animações como o 3º e 4º DD Makunaima, de Natasha Gonçalves,

esse atividade acadêmica do curso de Design Digital e o homônimo Macunaíma, de Mário de Andrade e Koch-Grunberg, o mais clássico.

Das narrativas aqui expostas sobre a presença de Makunaima em Roraima, seguem dois destes recentes trabalhos sobre o mito, inclusive de formação acadêmico-pedagógica. O primeiro é uma produção de fanzine desenvolvida em um curso de pós-graduação Lato Sensu em que Silva (2018), utilizando a língua espanhola, cria uma história embasada no herói Makunaima.

Figura 2: Fanzine - atividade da Pós-graduação em Letras da UERR.

Fonte: a autora, 2018.

E o segundo, uma produção pedagógica do escritor cordelista Zezé Maku, é a obra O reino de Makunaima e sua che a da fauna, composta de alguns mitos conhecidos no Estado, entre eles o de Makunaima, narrado em três idiomas: português, espanhol e inglês. Nesse trabalho, observa-se uma narrativa em prosa e versos, que é apresentada em peça teatral pelo autor.

Figura 3: Produção pedagógico-cultural.

Fonte: obra de Zezé Maku.

O que se apresentou sumariamente neste texto não esgota a vasta produção acerca do mito, visto que a motivação é intensa. Até o pseudônimo

“Zezé Maku” faz referência ao personagem, assim como a identidade dos indígenas que hoje se dizem netos do herói comprova que, com várias versões, Makunaima é a história mais viva entre todas de Roraima. Ainda sobre a força do Mito, esse teve seu nome cristalizado no topônimo de uma comunidade visitada e será analisado neste trabalho.

No documento Letras em fronteiras - UERR Edições (páginas 70-74)