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O curso de Letras e o ensino de português: há espaço para outras abordagens

No documento Letras em fronteiras - UERR Edições (páginas 154-158)

Até aqui, as informações apresentadas sobre as duas subáreas da linguística, a tipologia e a semântica formal, moldaram a minha percepção sobre como abordar as questões de língua na sala de aula, mesmo porque antes

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5 Para mais informações sobre metodologia em coleta de dados semânticos, conferir o artigo de Sanchez-Mendes (2014).

de ser pesquisadora, é com a sala de aula o meu compromisso pro ssional.

Mesmo partindo de percepções distintas sobre a língua, ambas, tipologia e semântica, utilizam dados de línguas naturais para embasar suas hipóteses.

O que pretendo demonstrar aqui é que trabalhar a linguística com base em dados de línguas naturais, sejam elas as línguas indígenas ou mesmo o português brasileiro, pode oferecer aos alunos a oportunidade real de construir um arcabouço teórico válido para o ensino de linguística na graduação em Letras. Isso porque ao abordar disciplinas como fonologia, morfologia e sintaxe na graduação, ao utilizar o português ou outras línguas naturais como língua de análise, é importante deixar que os alunos construam a sua compreensão da língua a partir do seu conhecimento sobre ela, ou seja, lidando com a própria intuição de falantes nativos, quando for o caso.

Um trabalho realizado desta forma tem como objetivo transformar o aluno em investigador da sua própria língua a partir de problemas que ele mesmo vai identi car ao dar-se conta de dados linguísticos que antes passavam despercebidos. Neste sentido, conhecimentos sobre tipologia ou sobre julgamentos de gramaticalidade e aceitabilidade são cruciais para mostrar aos alunos como eles podem testar seus dados a partir de hipóteses formuladas, tendo em mente que sempre há um modelo teórico subjacente a uma abordagem de pesquisa.

Não quero aqui, no entanto, parecer tendenciosa e dizer que as abordagens por mim descritas são as melhores ou as mais e cazes para trazer questões empíricas sobre a língua para a sala de aula. Antes, descrevi o que fez sentido no meu percurso com pesquisadora e, principalmente, como professora de ensino superior, carreira esta que me faz olhar para os conhecimentos que adquiro com olhar prático, sempre pensando em como aquele tema pode ganhar a dimensão de uma sala de aula. Assim, ao responder à pergunta do título, assumo que me tornei linguista pela curiosidade de entender como a língua nos leva tão longe, mesmo sem sair do lugar. Seja pelo caminho das línguas indígenas ou do português brasileiro, é possível encontrar assuntos inexplorados em qualquer língua natural. Além de tudo, perceber todo esse movimento linguístico ao redor e não desejar fazer parte dele é quase impossível.

Também acredito que uma abordagem que perpasse por questões translinguísticas e que uni quem distintas áreas da linguística é fundamental para preparar pro ssionais para as escolas de Roraima, que sobrevivem em um contexto multilíngue no qual resistem línguas indígenas, além do inglês guianense, do espanhol venezuelano e do crioulo haitiano. Um professor que saiba olhar para essas línguas e ver nelas, não um empecilho, mas ferramentas para discutir questões de fonética, fonologia, morfologia, sintaxe e semântica em uma sala de aula, com certeza será um professor bem-sucedido em sua missão de trabalhar questões de língua, para além do ensino tradicional da gramática.

Ser professora de línguas indígenas para indígenas é um trabalho para o qual me acredito preparada, mesmo com todos os desa os, pois o público está sempre ávido por discutir dados que lhes causam tanta curiosidade. Para os professores indígenas, conhecer sobre sua língua lhes dará ferramentas para uma sala de aula rica e interessante. Ser professora de línguas indígenas para alunos não-indígenas, no entanto, é desa ador pois, mesmo em um estado com relevante população indígena, é necessário car a rmando a necessidade de se conhecer e, acima de tudo, de se entender sobre o funcionamento de outras línguas para que possamos, também, compreender a nossa. Franchetto (2020, p. 32) menciona que há uma “falsa liberdade de escolha linguística na academia”, isso porque achamos que, além da nossa própria língua, nos bastaria um pouquinho de inglês para que possamos entender alguma coisa a nossa volta.

De fato, ainda há poucos professores engajados com a diversidade linguística brasileira e dispostos tornar esta diversidade verdadeiramente objeto de estudo e discussão na sala de aula, não apenas a partir do ensino de gramática, mas também de outras áreas do estudo da linguagem. Na contracultura de um monolinguismo no ensino é que este texto vem advogar, defendendo o reconhecimento de diferentes línguas não apenas em loso as e políticas de ensino, mas principalmente em ações que façam os atores multilíngues da sala de aula, os alunos indígenas e estrangeiros protagonistas do seu conhecimento.

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No documento Letras em fronteiras - UERR Edições (páginas 154-158)