• Nenhum resultado encontrado

Diálogo entre Linguagem, Memória e Mito

No documento Letras em fronteiras - UERR Edições (páginas 65-68)

identitárias, os mitos, a história, a geogra a e especialmente a língua podem permanecer preservados. O mundo para os indígenas é a representação de conceitos e valores espirituais e culturais. Portanto, compreender a cultura é reconhecer tradições que se projetam na língua de um povo. Como a rma Dick (2007), o homem “cristaliza” conceitos como forma de registro do léxico social de uma língua, através do seu patrimônio cultural passado de geração a geração no ato de dar “nomes” a coisas, ideias e sentimentos.

Em Roraima, acrescenta-se ao panorama supracitado o contexto geopolítico da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS) do qual a sede do município do Uiramutã foi subtraída. Importa lembrar que o Governo Federal, ao homologar a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, por meio do Decreto s/n, de 15 de abril de 2005, gerou importantes iniciativas para políticas indigenista e ambientalista. Muitos foram os con itos, as oitivas e discussões envolvendo política e legislação sobre o assunto que de diferentes formas têm impactado forte e diretamente a vida dos indígenas e não indígenas locais (FALEIRO, 2015).

indivíduo faz parte ou não de um grupo podem estar nos estratos linguísticos, na cultura e na memória de seus entes. Assim, de memória coletiva, pode-se dizer que é um processo consciente, que se constrói e se (re) constrói incessantemente no curso da história.

Uma das formas de manter memória coletiva é através do ato de recontar histórias, pois “o narrador carrega consigo os valores culturais e sociais de seu tempo e através da língua externa as ações do passado, relacionando-as e interpretando-as” (ARAÚJO, 2014). Nesse sentido, Cox e Assis Peterson (2007, p. 29-30) a rmam que “conhecer uma cultura é como conhecer uma língua. Ambas são realidades mentais. Descrever uma cultura é como descrever uma língua”. Portanto, para as autoras, conhecer uma língua não é apenas conhecer uma organização de pessoas ou de emoções, mas a organização de tudo isso a partir de uma realidade mental.

A conversa entre a Antropologia e a Linguística prossegue no início do século XX com os estudos do antropólogo Lévi-Strauss (1967), para quem os elementos da linguística e da cultura são basicamente o mesmo fenômeno em realidades diferentes, cujas ações inconscientes levam o homem à interpretação de signos. Com isso, ca entendido que não é possível estudar os elementos da primeira, desconsiderando os da segunda, sob pena de obter-se um resultado não condizente com a realidade.

Continuando as conceptualizações relevantes a este trabalho, para Max Müller (1876, apud CASSIRER, 2011, p. 19), a Mitologia, “no mais elevado sentido da palavra, signi ca o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento, isto em todas as esferas da atividade espiritual”. Nesse diálogo, o poder se concretiza através da linguagem que busca uma imagem subjetiva a partir do conhecimento arquivado na memória, relacionando-a com o presente.

Para Cassirer (2011, p. 24), o homem tem tentado renovar e interpretar “a mitologia da alma ou da natureza, do sol, da lua ou das tormentas, como mitologia, simplesmente”, mas se esquece de que a informação mítica não pode ser ndada, recortada em um objeto, o que se apreende desse conhecimento pode ser diferente da percepção empírica ou mesmo da explicação cientí ca. Uma interpretação equivocada pode se dar pela essência humana de formalizar conceitos; é importante, pois, car atento quando a pesquisa envolve línguas diferentes, povos e culturas diferentes, como demonstra Cassirer (2011, p. 50), embasado em Humboldt:

o modo de denotar que é o sustentáculo de toda formação verbal ou linguística, imprime (...) um caráter espiritual típico, seja um modo especial de conceber e apreender. Por isso a diversidade entre as várias línguas não é uma questão de sons e signos distintos, mas sim de diferentes perspectivas do mundo (grifo nosso).

Por diferentes pontos de vista também passam as interpretações de mitos, de modo especial o passar adiante as tradicionais histórias faz com essas recebam contribuições nas próprias narrativas e também em suas estruturas.

Para Fargetti (2006), o mito assim como a língua está em constante transformação, considerando que narrador e ouvintes nem sempre são os mesmos, e são também diferentes as situações do contar. Certamente, não apresentam sempre as mesmas mitologias, nem o mesmo sistema de referências para culturas diferentes, ainda que se possam talvez identi car estruturas comuns, o que faz surgir as suas derivações. Contudo,

muitos linguistas (em especial, gerativistas) também buscam universais, mas, do mesmo modo que análises aprofundadas das mais diversas línguas trazem um diálogo para as teorias, os mitos, acreditamos, na língua em que foram contados (e complementados por outras informações) podem trazer questões às estruturas propostas (ou mesmo questionar a possibilidade de existência de tais estruturas) (FARGETTI, 2006, p.

107).

Nesse sentido, é perfeitamente possível identi car em mitos o signi cado a eles atribuído, aceito e reconhecido pelas comunidades de povos indígenas. Em estudos linguísticos dessa natureza é possível recuperar nomes tradicionais do lugar a partir das narrativas dos informantes.

Em suas culturas são respeitados seres que se transformam, como homens em animais, pessoas em elementos da natureza e que convivem entre os humanos. Para Riviére (1995, p. 192), “os povos nativos da Amazônia vivem num mundo altamente transformacional, onde as aparências enganam (ou como dizemos em inglês, what you see is not necessarily what you get)”. O autor justi ca-se dizendo que “as aparências enganam no sentido de que podem ser colocadas ou retiradas como uma roupa, que esconde a realidade, que encobre”. A sustentação desse e de outros conceitos valorosos se dá pela narrativa oral dentro do mundo indígena.

O mito tem a capacidade de revelar a procedência das coisas, de explicar fatos da cultura de um povo por meio de suas narrativas orais (natureza do mito) que levam à representação metafórica, simbólica e imagética como forma de identi cação de posição social no grupo ou de distinção de ideologias. As tradições, por exemplo, do uso de pinturas corporais indicam alegria ou tristeza, expressam sentimentos; de adornos como penas e das cores são determinantes em algumas etnias e estão ligadas a rituais; as ações dos personagens quase sempre mostram a transformação, o poder, o domínio desses sobre determinada coisa (RIVIÉRE, 1995).

Excepcionalmente para este trabalho, não é possível aprofundar-se nessa questão antropológica, uma vez que a nalidade é buscar a relação mito- toponímia a partir de elementos da cultura presentes nas narrativas.

O topônimo carrega consigo informações sócio-

No documento Letras em fronteiras - UERR Edições (páginas 65-68)