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A NARRATIVA BÍBLICA E O STOP MOTION ANIMATION: ADAPTAÇÃO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 105-112)

Quando se reflete sobre a Bíblia, o livro mais controverso que existe, e neste caso específico sobre a criação de Adão e Eva, vem-nos à mente a questionada

―veracidade‖ da narrativa: alguns a consideram um relato sagrado, inspirado por Deus, outros a consideram mito, lenda ou folclore, tal como descreve Robert Alter:

(...) da operação de modalidade da prosa de ficção nas narrativas bíblicas, (...) de examinar uma passagem chamada história primeva, a criação de Eva (Gênese 2) (...) o relato das origens, com suas figuras humanas generalizadas, sua divindade (...), já foi classificado de várias maneiras pelos comentadores modernos, seja como mito, como lenda ou como folclore, e tende a nos parecer distinto do que nos vem à mente quando se fala de ficção artisticamente concebida. (ALTER, 2007, p. 51)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 8, 2012.

Quer leiamos a narrativa bíblica como relato inspirado por Deus ou como mito ou lenda, ela dá origem a várias criações artísticas, haja vista o número de pinturas da Virgem Maria e do menino Jesus através dos séculos. O mesmo acontece em relação à criação e queda de Adão e Eva. Dezenas de pintores, contratados pela igreja ou não, dedicaram-se a passar para a linguagem visual a versão bíblica da criação da humanidade.

Na contemporaneidade, o stop motion L‟Animateur, de Nick Hilligoss, é uma reescritura audiovisual da criação e queda de Adão e Eva. Stop motion animation é uma técnica de filmagem na qual o animador fotografa os objetos, geralmente a partir do mesmo ponto, um a um, quadro a quadro, à medida que muda sutilmente de lugar ou altera a expressão dos bonecos ou objetos moldáveis, criando assim a ilusão de movimento. Quando o curta-metragem ou o filme é projetado com 24 fotogramas (24 fotos, neste caso) por segundo, os espectadores têm a ilusão que os bonecos estão se movimentando. Tal ilusão ocorre devido à persistência retiniana, pois a retina, excitada pela luz, envia impulsos ao cérebro, que são interpretados como imagem pelo córtex cerebral. Mesmo após a luz ser retirada, esse estímulo continua por algumas frações de segundos, até a retina se adaptar novamente. Enquanto isso ocorre, os estímulos chegam ao cérebro, que continua percebendo a imagem vinda da fonte de luz, formando a permanência retiniana. Então, se neste intervalo de permanência for sobreposta uma nova imagem, tem-se a ilusão de movimento no stop motion. Tais animações podem ser criadas a partir de pecinhas de montar, recortes, bonecos de brinquedo, massinhas, objetos, arames, bolinhas de lã, etc.; portanto, o stop motion pode ser entendido como uma produção de movimento parado, que faz uso das sequências de diferentes fotografias do mesmo objeto inanimado para simular movimento ou ação. O stop motion L‟Animateur é, portanto, uma recriação bastante peculiar da narrativa bíblica e estabelece com ela como uma relação de intermidialidade.

Irina Rajewsky, em seu artigo Intermidialidade, intertextualidade e remediação: uma perspectiva literária sobre a intermidialidade, distingue três categorias de intermidialidade: 1) intermidialidade no sentido mais restrito de transposição intermidiática, por exemplo, adaptações cinematográficas, romantizações, etc.; 2) intermidialidade no sentido mais restrito de combinação de mídias (ópera, filme, teatro, performance, manuscritos com iluminuras, instalações em computador ou de arte sonora, quadrinhos etc.); e 3) intermidialidade no sentido mais restrito de referências intermidiáticas (referências, em um texto literário, a um filme, através da evocação ou da imitação de certas técnicas cinematográficas como tomadas em zoom, dissolvências, fades e edição de montagem; outros exemplos incluem a chamada musicalização da literatura, a transposition d‟art, a ecfrase, referências em filmes a pinturas ou em pinturas à fotografia e assim por diante) (RJEWSKY, 2005, p. 52-53). Neste trabalho interessa-nos principalmente a primeira e a terceira modalidades de intermidialidade.

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Segundo Rajewski, a intermidialidade no sentido de transposição intermidiática

(...) tem a ver com o modo de criação de um produto, isto é, com a transformação de um determinado produto de mídia (um texto, um filme, etc.) ou de seu substrato em outra mídia. Essa categoria é uma concepção de intermidialidade ―genética‖, voltada para a produção; o texto ou o filme ―originais‖ são a ―fonte‖ do novo produto de mídia, cuja formação é baseada num processo de transformação específico da mídia e obrigatoriamente intermidiático. (RAJEWSKY, 2005, p. 52)

Portanto, de acordo com Rajewsky, L‟Animateur é uma adaptação no sentido mais restrito de transposição intermidiática, onde a narrativa bíblica é a ―fonte‖

do desenho animado. Podemos ainda acrescentar que o desenho animado é uma adaptação ―paródica‖ (no sentido tradicional do termo) da narrativa bíblica pelo viés irônico, cômico, divertido com que o texto bíblico é retrabalhado.

Em L‟Animateur a referência intermidiática se realiza através do uso do afresco A criação de Adão da Capela Sistina no stop motion. Resta examinar de que maneira essa pintura aumenta a complexidade da leitura do texto e se agrega significado à interpretação da animação.

Em relação às referências intermidiáticas, Rajewsky acrescenta que elas

(...) devem então ser compreendidas como estratégias de constituição de sentido que contribuem para a significação total do produto: este usa seus próprios meios, seja para se referir a uma obra individual específica produzida em outra mídia (...), seja para se referir a um sistema midiático específico (...), ou a outra mídia enquanto sistema.

Esse produto, então, se constitui parcial ou totalmente em relação à obra, sistema, ou subsistema a que se refere. (RAJEWSKY, 2005, p.

53)

Hilligoss, ao adaptar a criação de Adão e Eva, expressa uma visão contemporânea, irônica, ambígua e banal do livro de Gênesis (Capítulos 2 e 3), utilizando a linguagem peculiar do stop motion. Com foco na criação e queda da humanidade, L‟animateur faz alusão aos animadores que manipulam suas ―marionetes‖, dentre eles o próprio Hilligoss. No curta, o animador – a princípio um ponto de luz e depois um ser extremamente peculiar, com traços caricatos, mistura de arlequim e bobo da corte, com pelo menos onze guizos espalhados pelo chapéu e roupa, portando um ―cetro‖ rústico

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que usa como cajado e carregando às costas uma grande caixa de madeira com alças de mochila – pousa na superfície de um corpo celeste pedregoso, com algumas plantas, poças d‘água e répteis.

Figura 1 – O animador caminha na superfície de um corpo celeste.

Disponível em: <http://vimeo.com/10341245>.

Nesse corpo celeste, o animador monta seu palco (uma mistura de realejo com palco mambembe, constituído por uma caixa com pernas que se desdobram, duas bandas laterais que se abrem para a apresentação e uma banda frontal que serve de chão para o palco) e dá início à sua criação/representação. Sobre esse palco exíguo ele encenará a criação e a queda do primeiro casal bíblico, diante de uma plateia de grandes ―répteis‖ semelhantes a sapos, mas com pernas longas, que dançam ao som de música medieval.

Assim como Deus na narrativa bíblica, Hilligoss é quem cria e dá vida a suas personagens, contudo introduz modificações na sua animação, e o ato criativo, banal e repetitivo remove a aura sagrada que possa pairar sobre o texto bíblico. Em um segundo desdobramento, Hilligoss cria a figura do animador/criador que vai de corpo celeste a corpo celeste na infindável missão de criar um homem e uma mulher para depois expulsá-los da cena. Temos, portanto, Deus, o criador onisciente, onipotente e onipresente da Bíblia; Hilligoss o criador de suas personagens, aparentemente onisciente e onipotente como Deus; e o animador na stop motion animation que é também um criador, desta vez incansável e infatigável em sua missão de criar/recriar o homem e a mulher e expulsá-los do cenário. Sua expressão final nesse corpo celeste – o esfregar das mãos, como se estivesse retirando algum resíduo que ali ficou – parece dizer:

―Missão cumprida. Tá na hora de me mandar!‖, remetendo à ideia do Deus ausente, indiferente à sua criação, comum entre pensadores do século XIX.

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Figura 2 – No final do stop motion, o animador caminha na superfície de outro corpo celeste.

Disponível em: <http://vimeo.com/10341245>.

Como não poderia deixar de ser, o stop motion animation recria o texto bíblico, portanto, aproximando-se e afastando-se dele à medida que avança em sua adaptação. Como elemento de proximidade, temos principalmente o tema desenvolvido:

a criação e queda do primeiro casal. Relacionado a esse, temos ainda o uso de uma costela de Adão para criar Eva; a culpa do casal ao comer o fruto da árvore do conhecimento, a consciência de estarem despidos após comer o fruto; a tentativa de cobrir a nudez e a mortalidade como consequência do ato e a expulsão do paraíso.

Como elementos de distanciamento temos vários, destacando-se o cenário dos acontecimentos; a aparência do criador/animador; a existência de uma plateia; a ingenuidade, para dizer o mínimo, de Adão; a criação de Eva como um recurso para conseguir o resultado almejado; o abrandamento da culpa de Eva ao morder a maçã involuntariamente e a compulsão do criador/animador em voar de corpo celeste a corpo celeste para criar um casal e expulsá-los da cena.

No capítulo 1 de Gênesis, no último dia da criação é relatado que

―Criou, pois Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou‖ (BÍBLIA SAGRADA, 1974, Gênesis, 1:27), dando a entender que a criação do homem e da mulher foram pelo menos consecutivas e possivelmente criadas do mesmo material. No Capítulo 2 do mesmo livro, Deus proíbe Adão de comer da árvore do conhecimento. Nada é dito sobre a presença de Eva durante a advertência e proibição.

―Ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda árvore do jardim podes comer livremente; mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.‖ (BÍBLIA SAGRADA, 1974, Gênesis, 2:16-17).

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Somente após esta advertência, temos o subtítulo: ―Como Deus formou a mulher‖, iniciando o relato como um acontecimento posterior: ―Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só...‖ (BÍBLIA SAGRADA, 1974, Gênesis, 2:18), mas Eva, mesmo tendo sido criada ―depois‖ da proibição, a conhece, pois diz à serpente que podem comer de todas as árvores com exceção da árvore que está no meio do jardim, pois se o fizerem morrerão (BÍBLIA SAGRADA, 1974, Gênesis, 3:2-3).

Afirmação esta contestada pela serpente, como bem sabemos.

Em L‟Animateur, Hilligoss, depois de montar o seu cenário, joga terra no chão do palco e, ao estralar os dedos, mostra ao espectador (curiosos nativos que formam a plateia local) que está pronto para iniciar o show. Essa característica de espetáculo é o primeiro distanciamento que temos entre o stop motion e a narrativa bíblica. Com o passar das estações (movidas pela manivela do aparato), visto através do vitral no fundo do palco, Adão é formado, como se fosse uma planta cultivada, pela ação da natureza sobre a terra. O animador, atento às ações de Adão, ao vê-lo tão só e alienado, sem ―se dar conta‖ que o fruto da macieira não é bola para brincar, demonstra certa decepção e irritação, pois o homem não consegue captar o propósito de sua gênese, e o faz dormir. Enquanto Adão dorme, o animador retira um pedacinho de barro, supostamente uma das costelas do homem, e cria Eva. Adão e Eva são manipulados pelo animador até a expulsão do ―paraíso‖, causada, como no hipotexto bíblico, pelo fato de provarem o fruto proibido; no caso da animação, do fruto da única árvore do cenário.

Não existe, no entanto, nenhuma indicação que o animador tenha advertido o casal que não poderiam comer ―a maçã‖. Ele espera que comam o fruto, e fica frustrado quando Adão não o faz. Ao contrário da narrativa bíblica, no entanto, Eva não escolhe comer o fruto, convencida pela serpente. Ao informar à serpente na Bíblia que não podem comer o fruto da árvore do conhecimento, esta contesta: ―Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que comerdes desse fruto vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal. Então, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer (...) tomou do seu fruto, comeu e deu a seu marido e ele também comeu.‖ (BÍBLIA SAGRADA, 1974, Gênesis, 3:4-6).

Em L‟Animateur, a serpente, criada do cetro do animador e enviada ao palco com um propósito definido, passa uma rasteira em Adão e Eva, depois de quebrar o galho da macieira e colocar a maçã na frente da boca de Eva, que desvia o rosto. Quando o casal tropeça no chão do palco, Eva cai com a boca aberta sobre a maçã, mordendo involuntariamente a fruta. Depois de sentir o sabor da maçã, Eva dá uma segunda mordida e só então tem uma espécie de convulsão e seu corpo, formado por pedaços de barro, adquire a forma humana. Assim, a culpa de Eva parece ser atenuada por três motivos: primeiro porque não há indicação que ela sabia que não poderia comer o fruto da árvore, segundo porque não há outro fruto para comer, terceiro porque sua primeira mordida foi involuntária, causada pela rasteira da serpente. O sabor da fruta faz com que dê outra mordida. Assim seu ―pecado‖, que não carrega o sentido de uma decisão deliberada, insere-a em um esquema planejado e que deve ser levado a cabo pelo animador.

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Figura 5 – Eva leva a maçã à boca para a segunda mordida.

Disponível em: <http://vimeo.com/10341245>.

A seguir, Eva bate com a mão no topo da cabeça de Adão, o maxilar dele cai e a boca se abre involuntariamente. Eva então enfia a maçã na boca aberta de Adão e o mesmo acontece com ele: ao ingerir um pedaço de maçã seu corpo sofre uma convulsão e passa a ter a forma humana. Em décimos de segundo, o animador, no processo de transformar o corpo de Adão, nos mostra a mortalidade como castigo, cumprindo assim a promessa de Deus registrada na narrativa bíblica. Um dos estágios na convulsão de Adão é representado por uma caveira e só então ele adquire a forma humana, diferentemente de Eva, que passa de uma montagem de barro à forma humana sem esse registro. ―Ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda árvore do jardim podes comer livremente; mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.‖ (BÍBLIA SAGRADA, 1974, Gênesis, 2:16-17). Podemos ainda acrescentar que a mortalidade de Adão é adquirida através do processo evolutivo de tornar-se homem, como se fosse uma alusão sutil e rápida à teoria da evolução.

Figura 6 – A mortalidade do homem como parte do processo evolutivo.

Disponível em: <http://vimeo.com/10341245>.

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Depois de comer a maçã, como esperado, ambos se descobrem nus, como na narrativa bíblica. Também conforme esperado, ambos tentam cobrir-se com folhas, indo um pouco além da narrativa bíblica neste aspecto e denunciando a vaidade e a total frivolidade da mulher que consegue confeccionar um ―modelito‖, com o qual desfila diante da plateia. Ao se tornarem humanos, o Adão e a Eva da animação são lançados para fora do palco (paraíso), diretamente na lama, com uma maçã. O animador itinerante fecha seu aparato, bate com seu cetro-cajado-serpente no chão e parte como um raio de luz para outro lugar, possivelmente a Terra, onde reinicia sua criação/animação. A compulsão em viajar de corpo celeste a corpo celeste e reenact a criação lembra a compulsão do velho marinheiro em narrar sua história, eternizada por Coleridge em seu poema The rhyme of the ancient mariner, publicado em Lyrical balladas, em 1798.

Thaïs F. N. Diniz em seu livro Literatura e cinema: tradução, hipertextualidade, reciclagem, diz que o adaptador ―não pode limitar-se à transposição de enredo e personagens, mas [deve] utilizar elementos especificamente cinematográficos‖ [neste caso, ―de animação‖] (DINIZ, 2005, p. 23) para traduzir elementos que resistem a uma simples transferência: sensações, sentimentos e pensamentos dos personagens, atmosfera ou humor presentes no texto-fonte, traindo o texto original, pois ―quanto maior a traição, melhor o resultado‖ (BACK, 2004, p. 1).

Poderia haver maior traição do que a transformação de Deus em um incansável e repetitivo animador itinerante? Haveria maior traição do que a transformação de um texto sagrado em um stop motion animation?

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