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A PINTURA DE GÊNERO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 129-134)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 8, 2012.

que reflete o que está para além da janela e então aparece o elemento humano que observa por meio do reflexo no espelho o mundo lá fora; o leitor é colocado mais uma vez diante da janela, olhando através dela o interior da casa, onde está o espelho refletindo o que se passa lá fora e alguém observando o reflexo. Tudo parece imóvel, exceto a imagem no espelho que por não ter sido definida parece ―girar‖ junto com o mundo.

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importante justamente por montar uma teia de relações que vão formando um grande quadro do país.

Na pintura de gênero havia a tentativa de dar à imagem um aspecto bastante real. Estando fora das esferas dos grandes centros, esta pintura se afastou dos padrões que orientavam a arte italiana da época, por exemplo. Havia uma busca pela representação, com o máximo de realismo, da perspectiva, das cores vivas dos objetos e da iluminação do ambiente. Além disso, surge a ideia de Kepler que define o olho humano como um produtor mecânico de pinturas, desta forma, atrela o processo de pintar ao processo de ver e os pintores passam a utilizar-se de objetos como a câmera obscura para dar mais realismo às suas representações.

No livro Manuale di storia dell‟arte de A. Springer e C. Ricci, ao descreverem as características de Adriaen van Ostade, outro grande representante da pintura de gênero, os autores também resumem os principais aspectos desse gênero que ora nos transporta para uma casa rústica onde alguns companheiros se encontram bebendo ou dançando, ora nos faz observar uma família em suas pacíficas ocupações...

as cores combinam um tom dominante a sombras delicadas e transparentes (SPRINGER;

RICCI, 1828, v. IV, p. 479)

O pintor conseguia ainda vários jogos, reflexos e gradações de luzes usando a câmera obscura. Esses elementos estão bem presentes nas descrições de Cecília Meireles sobre a Holanda: temos raparigas que se sentam, mulheres carregando baldes de leite, panos de renda, colchões, ladrilhos. Há uma preocupação com a disposição dos elementos no espaço, as janelas, vitrines, e portas se transformam em molduras... e há uma incansável retomada dos aspectos atribuídos à luz da Holanda:

Quando tudo estava pronto, uma janela abriu-se, diante de mim, e duas raparigas, de saia de lã e touca branca, sentaram-se de perfil, simetricamente, como os planos, a composição, a placidez de um quadro antigo. (MEIRELES, 1999, v. 2, p. 146)

Quem tomou nas mãos esta luz, sabe porque a Holanda tem produzido tantos pintores. É uma luz tão preciosa que deixa em todas as coisas um nimbo de ouro. Tão leve, tão delicada, tão doce que os olhos se abrem para ele com delícia. (...). Essa é a luz que mostra agora as diferentes formas e a policromia das flores (...). Luz da Holanda, nos campos cultivados (...). Nem o tijolo é compacto, nem o bronze é denso, ao toque dessa claridade. E a criatura humana funde seu contorno com a atmosfera, e a vida perde seu peso e paira.

(MEIRELES, 1999, v. 2, p. 148)

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Nem todos poderão sentir este sabor de chegar à Holanda como quem entra num domínio familiar. Mas assim me aconteceu (...).

Talvez pelo seu tamanho, por sua disposição (...) – e pelos temas dos quadros, que logo ali se evocam,– uma carta que se lê, cabazes, rocas de fiar, jarras de leite, cestas de pão... – a Holanda tem um ar caseiro, natural, simples, sem banalidades; e sério, sem dureza.

(MEIRELES, 1999, v. 2, p. 144)

Este último excerto cita muitos dos elementos que aparecem na pintura de gênero e nas crônicas que Cecília escreveu sobre a Holanda. A autora traz para o leitor aquilo que vê no país, de certa forma capta a atmosfera e a luz que por séculos foi retratada pelos pintores do local. Há uma sensibilidade de poetisa e pintora que consegue por meio de recursos textuais recriar verbalmente as pinturas de gênero.

Outro fato interessante é o de que, por se tratarem de crônicas, diferentemente de um romance, não há personagens. As pessoas, na maioria mulheres, descritas nos relatos são desconhecidas, o que nos aproxima ainda mais das artes visuais, pois raramente sabemos ou conhecemos as mulheres retratadas nas pinturas de gênero: são empregadas, meninas, moças quaisquer, compondo a paisagem. Cecília construiu seu texto conscientemente, não é por acaso que alude em suas descrições à pintura de gênero: ―Por mais que pareça impossível, – uma atmosfera do século XVII. Por quê?

Pelas proporções? Pelas perspectivas? Pela distribuição de luzes e sombras?‖ (MEIRELES, 1999, v. 2, p. 149). Este trecho está em Noite maternal a última crônica sobre a Holanda, e então podemos comprovar, mais uma vez, a referência direta ao estilo do século XVII que era retratado na pintura de gênero.

CONCLUSÃO

Nesses relatos, os elementos de saturação pictural retomam a perspectiva, as proporções, a distribuição de luz e sombra e os temas da pintura clássica holandesa, tudo isso junto constitui as descrições picturais. Evidencia-se, então, mais uma pétala da corola da flor que foi Cecília Meireles.

Ao voltarem-se somente para sua poesia, os críticos deixaram passar elementos importantíssimos de sua escrita. Os exemplos deste artigo são de 1953, ano da sua ida para a Holanda, passaram-se quase 60 anos e até então não houve um estudo mais aprofundado sobre as proximidades entre os textos desta poetisa e outras artes (a música foi um pouco mais explorada) e nem mesmo uma maior análise de sua prosa.

Mas, ela mesma já sabia da eternidade da obra de arte e, assim, retorno à primeira crônica aqui analisada (Holanda em flor) para mencionar uma parte em especial onde a

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cronista relata que na exposição de jardins havia uma estátua de um cachorro o qual se olhado de um lado parecia um relógio e de outro, um banco. Uma senhora que passava com um cachorro de verdade disse: ―Se aquilo é um cachorro, isto que trago aqui, que será?‖ Cecília, ao analisar a situação, opta pela escultura e não pelo cão real, pois dentre todos ―é o único futuro sobrevivente‖.

Tal asserção é uma reflexão sobre a obra de arte e sua perenidade. O mais espantoso é o fato de Cecília Meireles – tanto em sua poesia como em suas crônicas – referir-se constantemente ao efêmero, (a vida, o tempo, os objetos, o dia, os sentimentos, tudo é efêmero), todavia, na reflexão sobre os cães, é apontado algo que resiste ao tempo e que não é como todo o resto: a obra de arte.

O intuito deste artigo, portanto, mais que estabelecer relações entre mídias, foi mostrar uma face pouco conhecida de uma das maiores vozes da língua portuguesa e lançar um novo olhar sobre sua obra de arte, que tem resistido ao século.

REFERÊNCIAS

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São Paulo: Universidade de São Paulo, dissertação de mestrado, 2012.

ANDRADE, C. D. de. Imagens para sempre. Correio da manhã. Rio de Janeiro, 11 nov.

1964, p. 4.

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DA VINCI, L. Trattato della pittura. 2. ed. elettronica. E-text, 2006. Disponível em:

<http://www.liberliber.it/mediateca/libri/l/leonardo/trattato_della_pittura/pdf/trattap.pdf

>. Acesso em: 29 ago. 2012.

GOUVEIA, L. V. B. (Org.) Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2007.

GONÇALVES, A. Laokoon revisitado. São Paulo: EDUSP, 1994.

LAMEGO, V. Cecília Meireles na revolução de 30. Rio de Janeiro: Record, 1996.

LOUVEL, L. Le tiers pictural. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2010.

MEIRELES, C. Crônicas de viagem. v. 1, 2 e 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

_____. Poesia completa. Organização de Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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_____. Batuque, samba e macumba: estudos de gesto e ritmo, 1923-1924. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

_____. Crônicas em geral. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

PRAZ, M. Literatura e artes visuais. São Paulo: Cultrix, 1982.

SPRINGER, A; RICCI, C. Manualle di storia dell‟arte. v. IV. Bergamo: Istituto italiano d‘arti grafiche, 1928.

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O ESPAÇO DE PENÉLOPE NA ODISSEIA E EM A ODISSEIA DE

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