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O DESABROCHAR DAS EMOÇÕES POR MEIO DAS METÁFORAS

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 99-104)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 8, 2012.

Inicia-se uma sequência com várias cenas dos atores em close (CL), para demonstrar a felicidade de Neruda ao perceber a ingenuidade e o desejo de aprender de Mário. Este, por sua vez, demonstra toda a sua simplicidade e angústia de não compreender por completo as palavras do poema. Tais sentimentos permeiam a alma do protagonista, e o transformam, impulsionando-o a querer compreender e saber sempre mais sobre esse mundo novo que se apresenta, o mundo da poesia e do encantamento pelas palavras. Mário se identifica com versos do poema, com indagações feitas pela poética de Neruda, que suscita nesse novo leitor sensações, emoções e sinestesias. Essas sensações e impressões de realidade, segundo Jacques Aumont,

―mostram pelo próprio vocabulário, a dificuldade da questão, (...) a problemática da função da realidade, a espectativa do espectador‖ (AUMONT, 2002, p. 113-114), ou, melhor dizendo, a imagem propõe ao espectador o invólucro sinestésico das sensações vividas por Mário, e a dificuldade de compreender o novo que lhe estava sendo apresentado: o diferente mundo da poesia, que, por meio de metáforas, abria-se diante dos olhos do protagonista, trazendo a este outra visão de realidade e desenvolvendo a expectativa e o anseio de compreender o mundo novo que se apresentava.

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 8, 2012.

Neruda explica a Mário o que são as metáforas, dá alguns exemplos, Mário diz que gostaria de ser poeta, para dizer o que quisesse, ambas as mídias assemelham-se neste momento, pois Mário sente a necessidade de dizer o que pensa, sonha que a poesia possa libertá-lo das amarras da sociedade na qual está inserido, coloca-se a pensar nos ensinamentos de Neruda. O poeta se encanta com o desejo pungente no jovem e mais uma vez mostra-lhe o que são metáforas (ver figura 6).

Aqui na Ilha, o mar, e quanto mar. Sai de si mesmo a cada momento.

Diz que sim, que não, que não. Diz que sim, em azul, em espuma, em galope. Diz que não, que não. Não pode sossegar. Me chamo mar, repete se atirando contra uma pedra sem convencê-la. E então, com sete línguas verdes, de sete tigres verdes, de sete cães verdes, de sete mares verdes, percorre-a, beija-a, umedece-a e golpeia-se o peito repetindo seu nome. (SKÁRMETA, 1987, p. 23, ênfase acrescentada)

Figura 6 – Mário e Neruda na praia. (RADFORD, 1994)

Neste momento Mário percebe e sente o significado das metáforas. E, neste poema apresentado por Neruda, tanto na narrativa quanto na diegese fílmica, há um grande número de significados para o desenrolar das narrativas fílmica e literária. O

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número sete6 é considerado um número sagrado, que representa um ciclo completo. O tigre representa simbolicamente a força, a luz interior ou o reaparecimento da luz e da vida. O cão simboliza a fidelidade. O mar traz a simblogia da energia vital inesgotável, o inconsciente. E, por fim, a cor verde, que é a representação do desabrochar da primavera, a salvação, cor da renovação anual, da esperança. Todo esse emaranhado de significados, tricotado paulatinamente na diegese fílmica e na narrativa literária, funciona como uma prolepse da transformação que o personagem Mário irá concretizar ao longo da história: a força para conquistar seus desejos, a energia, a fidelidade a Beatriz, o desabrochar para o amor, a poesia e a política. Há uma renovação através do filho e um ciclo completo, demonstrado com casamento, procriação, nascimento e morte.

Toda essa cena do poema, no filme, é feita na praia, ao som do mar, com CL dos personagens, para evidenciar as sensações postas na declamação e recepção do falado: ―O close-up transpôs para o mundo da percepção o ato mental de atenção e com isso deu à arte um meio infinitamente mais poderoso do que qualquer palco dramático.‖ (XAVIER, 1983, p. 35). Fica perceptível ao espectador a maresia, o ir e vir das palavras juntamente com as ondas, como um barco perdido entre as palavras. Nesse trecho do filme, há uma interação muito grande do espaço fílmico com o roteiro literário, permitindo intensa relação entre o mar, os personagens do carteiro, do poeta e a poesia.

Todos os elementos simbólicos do poema são personificados no personagem de Mário.

Com todas essas sensações e descobertas o amadurecimento poético do personagem Mário e o desabrochar da sensibilidade são apresentados quase ao final da narrativa fílmica e literária. Com o gravador de Neruda:

―(...) gravou o movimento do mar com a mania de um filatelista. (...) a bicada da gaivota‖. (...) lúbricas abelhas nos momentos em que tinham orgasmos de sol contra suas trompas franzidas sobre o cálice de margaridas costeiras, enquanto os cachorros vagabundos ladravam para os meteoritos que caíam como festa de Ano-Novo no Pacífico, enquanto as campainhas do terraço de Neruda eram acionadas manualmente ou muito caprichosamente orquestradas pelo vento, enquanto o gemido da sereia do farol se expandia e contraía, evocando a tristeza de um barco fantasma na névoa de alto-mar, enquanto um pequeno coração era detectado primeiro pelo tímpano de Mário e em seguida pelo cassete no ventre de Beatriz Gonzáles.

(SKÁRMETA, 1987, p. 90-91)

6 Todos os significados dos símbolos são do Dicionário de símbolos, conforme referências, e apresentam grifo no original.

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Mário demonstra que o processo de aprendizagem poética aconteceu.

O cuidado em escolher detalhes da ilha e sons que remetessem a esses caprichosos pormenores, metáforas ditas e pensadas, faz do protagonista um poeta. Através da eloquência perceptivamente sonora, o jovem se funde com o ambiente para através do som, representar a poesia interna. Após a compreensão das sensações provocadas pela poesia, depois do entendimento e da utilização de metáforas, o carteiro começa a ter outra percepção de vida, de mundo, expõe seus sentimentos e até mesmo politiza-se. A poesia age então dentro das narrativas como um agente transformador do personagem.

CONCLUSÃO

A adaptação fílmica do romance de Antônio Skármeta é recebida pelo espectador de modos diferentes, devido à bagagem cultural distinta, formada por conhecimentos que envolvem política e contexto histórico e são essas nuances que constituem a relação entre obra literária e adapatação cinematográfica. Segundo Thomas Bonnici e Lúcia Zolin, ―qualquer comparação entre um filme adaptado e o texto literário poderá ser mais produtiva se levadas em conta, tanto as especificidades de cada meio como as similaridades das narrativas adaptadas, e a partir daí, propor uma reflexão crítica sobre os efeitos que a adaptação conseguiu ou não criar‖. (BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 370). Portanto, diante da imagem cinematográfica produzida por Radford, em O carteiro e o poeta, ocorre a famosa ―impressão de realidade‖. Isso se deve ao que ela reproduz e a como reproduz, pois nos mostra aquilo que queremos ver, transforma em realidade os personagens lidos, dá rosto, voz, atitudes ao protagonista, ao herói, ao vilão da história. A profundidade e o movimento no mundo do cinema chegam até o espectador como uma mistura de fato e símbolo. O espectador aceita a profundidade, o movimento e o tempo da narrativa como se fossem reais; envolve-se, deixa-se convencer, torna-se um elemento iludido voluntariamente. O cinema assume uma função privilegiada. O mundo exterior, tão conhecido, perde-se, libertando-se de espaço, tempo e causalidade, revestindo-se das formas de nossa consciência, graças aos recursos cinematográficos:

(...) vimos que o cinema nos dá o mundo plástico e dinâmico, mas que a profundidade e o movimento, ao contrário do que acontece no palco, não são reais. Vemos agora que existe outro aspecto do cinema em que a realidade da ação carece de independência objetiva porque se curva à atividade subjetiva da atenção. Sempre que a atenção se fixa em alguma coisa específica, todo o resto se ajusta, eliminando-se o que não interessa (...). É como se o mundo exterior fosse urdido

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dentro da nossa mente e, em vez de leis próprias obedecesse aos atos de nossa atenção. (XAVIER, 1983, p. 35)

Os filmes podem estabelecer uma relação com os textos literários em vários graus de intensidade, uns maiores, outros menores, alguns são extremamente fiéis ao texto, e outros transformam o texto base em uma vaga lembrança. Michael Radford e Massimo Troisi provaram que, em O carteiro e o poeta, foi possível fazer algo muito próximo ao texto de Antônio Skármeta, apresentando os personagens, o espaço cênico da narrativa com um toque de som, musicalidade, luz e poesia, fazendo com que o leitor/espectador possa olhar através de páginas/planos e verificar a expressão artística na narrativa literária e fílmica, de modo a vivenciar as sensações provocadas por ambas as mídias.

REFERÊNCIAS

AUMONT, J. A estética do filme. 9. ed. São Paulo: Papirus, 2005.

BONNICI, T.; ZOLIN L. O. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: EDUEM, 2009.

LEXIKON, H. Dicionário de símbolos. São Paulo: Cultrix, 2002.

O CARTEIRO E O POETA. IL POSTINO. Direção de Michael Radford.

Bélgica/França/Itália: Buena Vista Pictures, 1994. 1 DVD (108 min), color.

RAJEWSKY, I. O. Intermidialidade, intertextualidade e remediação: uma perspectiva literária sobre a intermidialidade. Tradução não publicada de Thaïs F. N. Diniz e Eliana Lourenço L. Reis. In: DESPOIX, P.; SPIELMANN, Y. (Eds.). Remédier. Intermédialités/

Intermedialities, n. 6, 2005.

RODRIGUES, C. O cinema e a produção. 3. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.

SKÁRMETA, A. Ardente paciência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

XAVIER, I. A experiênca do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

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A INTERMIDIALIDADE DE GÊNESIS COM L'ANIMATEUR, DE

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