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Alienação e economia

No documento A GÊNESE DO POLÍTICO: (páginas 85-88)

3.3 Eleição e liberdade

3.3.1 Alienação e economia

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84 O marxismo traz uma noção de liberdade que deve ser tomada como ponto de partida.

Ele promove o ser humano em sua tomada de consciência de sua alienação para poder modificar o mundo. Além disso, Levinas se serviu de outros pontos da reflexão marxiana. Em entrevista publicada em 1982, ao ser questionado sobre a relação entre o marxismo e a filosofia levinasiana, o autor respondeu:

No marxismo (...) há o reconhecimento do outro. De certo, consiste em dizer: o outro, nós o podemos salvar se reclamar o que lhe é devido, por ele mesmo. O marxismo convida a humanidade a reclamar o que é do meu dever dar-lhe.86

Na mesma entrevista, Levinas ressaltou ainda, o messianismo presente na teoria de Marx ao propor tornar o poder político inútil, uma vez que “virá o dia em que a cozinheira poderá dirigir o Estado”87. Inútil no sentido mais propriamente levinasiano: desinteressado. O grande êxito do marxismo foi, portanto, construir uma reflexão política que tomasse o Outro a sério. Levinas reconhece que não há distinção entre o sujeito e os outros, mas que isso em nada desmerece as denúncias que Marx promoveu.

No artigo O Eu e a Totalidade88, de 1954, Levinas esboça a passagem da ética à política a partir do terceiro. Ele critica a política fundada na totalidade de “eus”, em que a liberdade se mostra sob o aspecto de uma vontade subtraída89, uma vontade alienada, que “encontra-se à mercê de uma vontade estranha”90. A liberdade da vontade se encontra refém do querer dos outros. O sujeito livre tem sua vida, seu existir, resumido em produzir obras sem vontade, porque não terá acesso a tais obrar: o autor não se reconhece na obra colocada em outro contexto.

Há uma “alienação ontológica” da vontade atravessada por um destino maior do que ela, e no qual ela recai. Um ente não domina a significação de seu ser. O sujeito encontra-se numa situação de limitação de sua vontade sem perceber que recaiu num destino atrás de um sentido que lhe é estranho. Levinas descreve, assim, um sistema econômico que produz a injustiça, condição da totalidade: “A injustiça, pela qual o Eu vive numa totalidade, é sempre econômica”.91

86 LEVINAS, Entre nós, p. 163.

87 LEVINAS, Entre nós, p. 163.

88 LEVINAS, Entre nós, p. 34-65.

89 LEVINAS, Entre nós, p. 52.

90 LEVINAS, Entre nós, p. 53.

91 LEVINAS, Entre nós, p. 55.

85 Para ele, a injustiça é a alienação do trabalho do ser humano. Num resgate da reflexão marxiana, Levinas compreende o trabalho como construtor de mundo e apresentador de seu autor.92 Dessa maneira, o poder sobre os outros, a economia, ou a dominação de uma vontade sobre a outra, se instaura pela arma ou pelo ouro93 e se manifesta na sociedade enquanto totalidade de liberdades. É na traição que se apresenta a relação entre liberdades. Traição que é a ambiguidade da vontade: “Ao mesmo tempo ser e ter: ser que se possui, exterior a sua posse, mas afundado nela e traindo-se por ela”94.

Numa transação econômica, uma liberdade age sobre outra liberdade e utiliza o dinheiro para corromper. O dinheiro oferece um poder e se oferece como meio termo de um comércio em que é o próprio ser humano quem é vendido ou comprado.95 O dinheiro enquanto salário é o “elemento abstrato em que se realiza a generalização do que não tem conceito, a equação do que não tem quantidade”96. O dinheiro traz uma ambiguidade: ao mesmo tempo em que engloba o sujeito numa totalidade, supõe a pessoa, que, assim, permanece inalienável.

Nessa ambiguidade, o dinheiro possibilita a interrupção da história por uma nova justiça.

Ao mesmo tempo em que pode comprar o ser humano, como denunciado pelos profetas pelos comunistas, pode salvar o ser humano. “A justiça que pode salvá-lo não pode renegar a forma superior da economia – ou seja, da totalidade humana – em que aparece a quantificação do ser humano, a medida comum entre homens, da qual o dinheiro fornece a categoria”.97 Justiça que requer quantificação do ser humano, que pode reparar o mal sem cair no perdão sem fim ou na vingança. A justiça é a quebra do determinismo. Para romper com a injustiça, é necessário resgatar o mais profundo da economia: a relação com o outro ser humano.

De Le temps et l`autre (O tempo e o outro), de 1948, extrai-se uma profunda e bela reflexão sobre a relação entre sensibilidade e trabalho.

No concreto da necessidade o espaço que nos separa de nós mesmos é algo que sempre deve ser conquistado. É necessário transpô-lo, é necessário agarrar o objeto, quer dizer, é necessário trabalhar com mãos. Nesse sentido, “quem não trabalha não come é uma proposição analítica. Os instrumentos e a fabricação dos instrumentos perseguem o ideal quimérico da supressão das distâncias. O que chama a atenção na perspectiva aberta pelo instrumento moderno (a máquina) é mais a função de suprimir o trabalho do que a função de instrumento que Heidegger havia considerado de maneira exclusiva. Ora, no trabalho, isto é, no esforço, na sua dureza e na sua dor, o sujeito reencontra o peso da existência implicada em sua própria liberdade de

92 LEVINAS, Entre nós, p. 54.

93 LEVINAS, Entre nós, p. 54.

94 LEVINAS, Entre nós, p. 54.

95 LEVINAS, Entre nós, p. 63-64.

96 LEVINAS, Entre nós, p. 64.

97 LEVINAS, Entre nós, p. 65 (Grifo do autor).

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existente. O sofrimento e a dor, eis os fenômenos aos quais se reduz em último lugar a solidão do existente.98

No prefácio feito em 1979, ele afirma que os temas de O Tempo e o Outro devem ser lidos com base no espírito daqueles anos de abertura, embora as teses mais tarde se revelassem

“inseparáveis de problemas mais complexos e mais antigos, e que exigiriam uma expressão menos improvisada e sobretudo um pensamento diferente”99. Com isso, deseja-se mostrar que tais problemas só encontrarão um ponto de desenvolvimento com o resgate da diacronia. A viragem da sensação encontra-se com a reflexão sobre a liberdade e dará a ela um novo enfoque.

No documento A GÊNESE DO POLÍTICO: (páginas 85-88)