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Conclusão

No documento A GÊNESE DO POLÍTICO: (páginas 37-41)

35 É necessário que todos os agentes estejam em cena. Assim, “o rosto torna-se aparecer e epifania”134, a expiação pelo outro se mostra no tema.135 “A contemporaneidade do múltiplo ata-se em torno da diacronia de dois.”136 Pela diacronia, a ética deixa sua marca no político. O sujeito sustenta a política não enquanto ser livre e racional, mas enquanto eleito e responsável.

A eleição não dá poderes democráticos, mas o poder do eleito é a responsabilidade, o poder da sabedoria, que recordará às instituições políticas a necessidade da justiça.

36 A temporalidade levinasiana não pode ser compreendida como sequência que é recontada. A diacronia ética estrutura o sujeito e deixa seu vestígio na sincronia do conceito.

Dessa forma, não há um presente em que o terceiro não esteja. Ele exige justiça, porque é o momento da sincronia. A justiça advém da diacronia. Ela tem sua fonte na responsabilidade, no amor sem concupiscência. A diacronia anima a sensibilidade e inaugura uma ruptura que inverte o sujeito em para-o-outro. Essa sensibilidade se mantém na intencionalidade e na consciência, que aparece na entrada do terceiro.

O nascimento da política depende dessa concepção de subjetividade marcada pela sensação, porque na sincronia não desaparece o vestígio da diacronia. A razão da inteligibilidade do sistema é compreendida no Dizer, na proximidade, na responsabilidade.

Insistir na ideia da subjetividade como arrancamento de si na sensação é já anunciar que isso será desenvolvido no próximo capítulo, quando a justiça e o Dizer entram de cheio como outro polo do político.

Ruptura da narrativa porque é necessário respirar. Assim como a filosofia é recortada pelo ceticismo, o Dito é atravessado pelo Dizer. No drama do signo encontraremos a face da justiça que amarra e tece o fio da linguagem. O político, para Levinas, guarda em si essa força do Dizer de um sujeito que se doa como hemorragia do hemofílico. A inversão do conatus do sujeito deixa sua marca na coexistência e no sistema. A igualdade só é possível porque o sujeito significa a partir da proximidade, nasce da fraternidade, é criatura. Igualdade que sustenta a justiça e que será movida pelo esquecimento de si.

37 2 LINGUAGEM E INSPIRAÇÃO: A JUSTIÇA NA INTRIGA ENTRE DIZER E DITO

No capítulo anterior, a preocupação se centrou em torno da concepção de justiça que atravessa a escritura de Emmanuel Levinas. A entrada do terceiro na relação dual do face a face foi orientada pela narrativa do Dito da justiça. Nesta narrativa, mostra-se que a sensibilidade é alterada em intencionalidade. A alteração é feita a partir da justiça, que ressignifica a descrição fenomenológica. Ela atua na “consciência de...” e suscita a sincronia fundada na diacronia do mesmo e do outro na sensibilidade. Ela pode ser dita em temos tanto de subjetividade quanto de ser.1

A proposta deste capítulo é adentrar na descrição levinasiana da questão linguística na obra De outro modo que ser ou para lá da essência, para encontrar aí o que determinará a novidade do político em função dessa abordagem. Acompanham-se os passos que o autor dá em direção à construção do político a partir do enlace ético, com a especificidade de ir diretamente à novidade oferecida na obra: a “viragem linguística” do autor. Levinas encontra no binômio Dizer-Dito o lugar que procurava para o “outro do ser”. É necessário, para tal, remontar ao estado anterior à correlação entre o Dizer e o Dito.

A fim de situar a questão da justiça no interior da anfibologia do Dizer-Dito, é preciso dizer uma palavra sobre a temporalidade levinasiana.2 O tempo da sincronia é o desdobramento da essência. É o Mesmo que marca a escrita: é memória, história contada, registrada.

Com efeito, a linguagem é, por natureza, ontológica, ou seja, a unidade mínima de sentido é o juízo, cuja cópula garante a coesão entre sujeito e predicado, não sendo a linguagem mais do que a manifestação das diversas modalidades de ser reunidas numa essência.3

Mas há também o lapso do tempo, uma compreensão do tempo como sendo cortado, interrompido. Não é uma compreensão negativa: perda da memória, esquecimento ou falha; é anterior ao tempo; é desde sempre; é sem começo: é an-árquico (an-archique). O Dizer é anterior num passado que nunca foi presente. No corte do tempo, a diacronia é imemorial, pré- histórica. Pode-se encontrar nela uma significação que está no “para lá” do ser que é esquecida pela ontologia.

1 LEVINAS, De outro modo que ser ou para lá da essência, p. 90.

2 Embora sabedor de que para explicitar a visão de tempo trazida por Levinas seria necessário um novo capítulo.

3 BECKERT, Introdução, p. 13.

38 No evento de ser no Dizer, o terceiro já está presente, ainda que ausente, no sentido de ser um evento anacrônico. Nossa compreensão é a de que Levinas propõe uma nova compreensão da noção de signo, com o objetivo de desfazer a correlação Dizer-Dito: o Dizer que não se esvai no Dito. A anfibologia do Dizer-Dito faz do Dizer um desdobramento interno do Dito: o dito como o substantivo do verbo dizer. Ela cria uma correlação que anula a alteridade do Dizer pela maneira como a identificação opera: ela identifica “B enquanto A”, ou

“B é A”. Na identificação, o Mesmo prevalece.

O Dizer deixa seu signo no Dito. Signo que não é apenas o signo linguístico, compreensível, mas é o próprio enigma da comunicação, possibilitado pela comunicação pré- original. Na linguagem cotidiana, há o signo da exposição do eu feito si, cortado pelo Dizer que vem de alhures e que se torna signo da minha doação de signo. A linguagem é proximidade.

Advém da vulnerabilidade do eu sempre em atraso. O signo é o próprio “Eis-me!”, que marca a comunicação humana e funda a fraternidade. Traço do Infinito, deixa o vestígio de uma passagem não recuperável no presente. Funda sem fundar, porque é fundamento sem fundamento, sem formalismo “anódino”, paliativo, insignificante.

Se o Dizer deixa seu signo no Dito, a filosofia é chamada a reduzir a traição do Dito e está a serviço do Dizer. A questão da linguagem enlaçada no binômio Dizer-Dito nos levará a um questionamento sobre o próprio estatuto da filosofia: “o filósofo procura e exprime a verdade”4. Dessa maneira, a questão sobre a verdade abre a “Exposição” e permanece até o Autrement Dit ao final da obra. Para Levinas, a verdade é a exibição do ser; é o processo de ser que, apesar de ser movimento, “imobiliza-se e fixa-se no Dito”5.

A filosofia é chamada a reduzir a traição do Dito ao Dizer e buscar o signo do Dizer no Dito. Ela, segundo ensina Levinas, é cortada pelo ceticismo. Acolhido como filho legítimo, o ceticismo é expulso com violência, porque a totalidade não suporta a dúvida, não tolera a diferença e a identifica no Mesmo. O filósofo vai resgatar o ceticismo como inspiração da filosofia, assim como o Dizer corta o Dito e o inspira. Por isso, a filosofia é a sabedoria do amor a serviço do amor.

Nossa proposta se compreende tendo como base o “Argumento”: “O de outro modo que ser enuncia-se num dizer que deve também desdizer-se para assim arrancar o de outro modo que ser ao dito onde o de outro modo que ser começa a não significar senão um ser de outro modo6. Viragem linguística que resulta da reabilitação da sensibilidade, animada pelo outro,

4 LEVINAS, De outro modo que ser ou para lá da essência, p. 45.

5 LEVINAS, De outro modo que ser ou para lá da essência, p. 45.

6 LEVINAS, De outro modo que ser ou para lá da essência, p. 29. Grifos do autor.

39 corpo que se inverte em signo. O percurso que ora empreendemos partirá da crítica de Derrida à linguagem ontológica de Totalidade e Infinito e nos levará à gênese do político como sabedoria da justiça.

No documento A GÊNESE DO POLÍTICO: (páginas 37-41)