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Contextualizando a trajetória racial no Rio Grande do Sul

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 94-100)

2.2 A abordagem racial e a educação profissional

2.2.1 Contextualizando a trajetória racial no Rio Grande do Sul

É de notório saber que este trabalho se destina a analisar as ações afirmativas em uma instituição de ensino público federal localizada no estado do Rio Grande do Sul. Para tal, se faz pertinente apreendermos brevemente a presença do negro neste estado, bem como as interfaces com que o racismo aqui apresenta.

Neste sentido, a primeira constatação que Cunha (2008) nos traz é com relação ao contexto da escravidão nesta região. Este autor nos diz que a compra de escravos dos fazendeiros gaúchos se deu através do Rio de Janeiro. Ou seja, diferente de outros estados brasileiros em que os escravos eram provenientes da África, no Rio Grande do Sul a relação se dá exclusivamente no contexto brasileiro em que o estado do Rio de Janeiro aparece como protagonista na venda de escravos.

Cunha também aponta que no Rio Grande do Sul se denominou o que o autor nomeia de dois tipos de negros. Um tipo de negro era aquele do campo, que vivia na região dos Pampas. Era o negro que tinha autonomia sobre seu trabalho, comia e vestia-se bem e tinha raro contato com o seu senhor, que pouco aparecia na propriedade.

O outro tipo de negro é o negro do norte do Rio Grande do Sul, região litorânea. Este é bastante maltratado por seu senhor e tem pouca possibilidade de revolta, já que na região não existiam matas abundantes para fuga.

Importante destacarmos que o tipo de negro da região dos Pampas corrobora para o pensamento da democracia racial. Tem-se na interpretação, pelo senso comum, de que os negros conviviam harmoniosamente com seus senhores.

Mas sabemos que toda forma de escravidão, justamente por ser escravidão, subtrai toda e qualquer perspectiva de harmonia.

A partir da definição dos dois grupos de negros - um da região campal e outro da região litorânea do Rio Grande do Sul - Cunha, apoiado em Bastide (2009), nos informa que o negro gaúcho reage à escravidão de três formas: a primeira é

através da religião, a segunda é através da manutenção das tradições africanas e a terceira é por intermédio do alistamento no exército.

Ainda no contexto da escravidão, Germano (2009) é quem nos informa que até pouco antes da abolição da escravatura, o Rio Grande do Sul era o sexto estado quanto ao número de escravos, ficando atrás de Maranhão, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.

O período pós-abolição no Rio Grande do Sul segue a regra da mera formalidade, já que os negros recém-libertos não tiveram acesso aos bens e serviços e, além disso, se viram em uma concorrência verdadeiramente desleal com os récem-chegados colonos europeus. Isso fez com que houvesse uma intensificação de negros, sobretudo, em Porto Alegre e na região da Campanha em busca de mercado de trabalho, que foi em grande medida ocupado pelos colonos europeus.

Cunha (2008) nos lembra, ainda, que além de se verem em uma situação de desvantagem ante o contingente europeu, os negros entraram em atrito entre si, voltando assim à questão dos dois tipos de negros descritos há pouco. Um tipo de negro se revoltou contra a fraude instaurada e o outro tipo buscou brecha dentro da mesma como forma de garantia de sua sobrevivência.

Germano (2009), através de Oliver (1996), nos traz uma importante fonte de análise acerca da construção da identidade gaúcha. O autor nos diz que se criou no imaginário social a ideia de que o Rio Grande do Sul seria a Europa Brasileira, e continua o autor: "Se a construção dessa identidade tende a exaltar a figura do gaúcho em detrimento dos descendentes dos colonos alemães e italianos, ela o faz de modo mais excludente ainda em relação ao negro e índio". (OLIVER 1996 apud GERMANO, 2009, p. 101).

Podemos problematizar, a partir desta citação, a configuração do racismo em terras gaúchas. Há, na região aqui estudada, um forte sentimento de patriotismo, vide as guerras abolicionistas e as iniciativas separatistas. Há a noção de que este é um estado claro, conforme nos diz Germano (2009). Estamos nos referindo a um estado colonizado, sobretudo, por alemães e italianos. Se formos usar como exemplo o estado do Rio de Janeiro, perceberemos de logo as muitas diferenças entre um estado e outro. A começar pela quantidade de negros no Rio de Janeiro, que soma 51,7% da população (IBGE - 2010), passando pelo atrativo cultural das

"mulatas" do carnaval, e do samba fortemente presente nos morros e favelas

cariocas. O racismo existe nos dois estados e não se torna menos perverso em nenhum deles, justamente por ter existido, em ambos, o mito da democracia racial.

Entretanto, cabe problematizarmos as faces assumidas pelo racismo em um estado e outro. Como podemos avaliar, por exemplo, o embranquecimento do carnaval carioca e a pouca presença de negros nos CTG's - Centros de Tradições Gaúchas?

Germano (2009) contribui para o debate quando afirma que no estado do Rio Grande do Sul há uma invisibilidade do negro. A autora chama a atenção para a pouca produção científica sobre o negro no Rio Grande do Sul, principalmente a partir do século XX, a ausência de pesquisas acerca da mobilidade deste segmento, bem como os mecanismos de exclusão e formas de inserção. Assevera a autora:

Desta forma, os negros foram negados no tempo enquanto agentes históricos num contexto de desprivilegiamento, não apenas através do silêncio da história oficial, mas também através de representações que alimentaram práticas de discriminação no imaginário social de Porto Alegre, contribuindo para a exclusão ou marginalização, material e simbólica, deste segmento social. (GERMANO, 2009, p. 101)

Importante também é destacarmos que, segundo o último censo demográfico do IBGE (2010), o estado do Rio Grande do Sul consta como o segundo estado com menor incidência de negros, que somam 16,1% (a população branca, em contrapartida, é de 83, 2%) do total da população, conforme gráfico a seguir:

Gráfico 1 - População negra nos estados (percentagem do total da população)

Fonte: Censo Demográfico 2010/IBGE

Ao consultarmos algumas pesquisas de fontes oficiais, encontramos três importantes dados para a nossa análise. O primeiro dado foi retirado do Relatório Anual de Desigualdades Raciais 2009/2010. Este relatório, organizado pelo pesquisador Marcelo Paixão, demonstra que é proveniente do estado do Rio Grande do Sul o maior número de ações por crime de racismo julgadas pelos Tribunais de Justiça. Nos períodos compreendidos entrem 2005-2006 e 2007-2008, constata-se uma soma de 78 processos. Ao visualizarmos o número de processos julgados no mesmo período para o estado da Bahia - terceiro estado com maior incidência de negros, 76,4% - a soma total é de apenas , assustadoramente, um processo julgado.

Outro dado para nossa análise foi retirado da quarta edição intitulada Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça 2011, produzido pelo IPEA. Esta pesquisa aponta que com relação ao trabalho doméstico remunerado com carteira de trabalho assinada, a região sul é a segunda região em que o percentual de trabalhadoras negras domésticas é relativamente alto, com um total de 24,5%. A região sul, neste sentido, fica atrás somente da região sudeste com um total de 25,1%.

Um terceiro dado de especial relevância é com relação à aplicação da lei 10.639/03 - que estabelece diretrizes para inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Duas pesquisas apontam o Rio Grande do Sul como um dos estados de destaque na implantação da referida lei. Esta constatação foi retirada da dissertação de mestrado da pesquisadora Iraneide Soares da Silva (2009) e do livro Igualdade Racial no Brasil (2011), produzido pelo IPEA.

Uma das tarefas desta dissertação será analisar o impacto desses dados para o contexto do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul. Será que o número de negros no IFRS corresponde aos 16,1% no estado? Será que os Projetos Pedagógicos de Cursos - PPC's - contemplam a temática Afro-Brasileira? É o que pretendemos responder no próximo capítulo

Outra pergunta que deve permear as nossas análises gira em torno da discussão racial no contexto específico do campo da educação profissional. Para tanto, observamos três aspectos centrais a este contexto: a análise sobre o trabalho na sociedade capitalista, a trajetória da educação profissional no campo da política pública e a segregação da educação para as classes dos trabalhadores e para a população negra. Percebemos, assim, que o grande desafio na atualidade e na particularidade da configuração que hoje assume o IFRS é a possibilidade de

entrecruzar estes três aspectos na pesquisa acadêmica de forma crítica tendo em vista que no trabalho manual, a relação entre a classe trabalhadora e a população negra se entrelaçam organicamente. Sendo assim, podemos afirmar que existem bons estudos sobre educação profissional e que existem bons estudos sobre a questão racial. Entretanto, o que nos é caro para esta análise é a discussão dos dois temas de forma intercruzada.

Por último, cabe destacar que estamos falando das ações afirmativas no contexto de uma instituição educacional localizada no sul do Brasil. Neste sentido, cabe tentarmos compreender o que significa discutir a questão racial no segundo estado mais branco do Brasil segundo o IBGE (2010).

3 O IFRS na Teoria e nos Números: Há Ações Afirmativas?

Neste capítulo, estão reunidos todos os dados de pesquisa colhidos através de abordagens qualitativas e quantitativas. Faz-se necessário, desta forma, resgatar perguntas e reflexões realizadas por esta pesquisadora quando da decisão em se propor a analisar a implantação e os impactos das ações afirmativas em todos os cursos de todos os doze campi em funcionamento. Algumas reflexões foram pensadas, como: A lei 12.711/12 está sendo implementada? De que forma? A porcentagem de negros no IFRS condiz com a porcentagem de negros no estado do Rio Grande do Sul? Como a política de ações afirmativas foi construída e quais os jogos de forças envolvidos? As ações afirmativas no IFRS se tornaram, quantitativamente e qualitativamente, instrumentos efetivos de luta contra a desigualdade racial? Para responder essas questões ou ter instrumentos para problematizá-las, algumas estratégias metodológicas foram eleitas. Para a análise da implantação da lei 12.711/12 e do quantitativo de negros no IFRS e no estado do Rio Grande do Sul, foram utilizados os dados da Coordenadoria do Processo Seletivo - COPERSE - da Pró-reitoria de Ensino, dados da Assessoria de Ações Inclusivas - AAI - ligada à Pró-reitoria de Extensão e consulta ao último censo de 2010. Para analisar o impacto da implementação da lei no momento da matrícula foi utilizada a observação participante na primeira e segunda chamada do vestibular do segundo semestre de 2013 do campus Erechim. Para a análise e acesso ao documento base da política de ações afirmativas também foi utilizado o método de observação participante nos encontros do GT do qual esta pesquisadora fez parte, uma encontro via videoconferência e troca de e-mails. Também foram analisados alguns documentos institucionais com o intuito de buscar referência a políticas afirmativas. Os documentos analisados foram o Estatuto do IFRS e o PPI - Projeto Pedagógico Institucional. Junta-se a isso o fato desta pesquisadora ter, na instituição analisada, não só o papel de pesquisadora, mas o papel e cargo de Assistente Social, o que foi essencial para todo o processo reflexivo e de busca de respostas. Ser Assistente Social é enxergar esta pesquisa em sua totalidade, talvez em decorrência dessa concepção mais de uma metodologia foi utilizada. Não foi possível ser só assistente social ou só pesquisadora no caso específico desta pesquisa. Ser pesquisadora no IFRS demandou ser assistente social e utilizar tal formação para a pesquisa, e ser assistente social demandou ter presença garantida

nos espaços aqui analisados. A função de pesquisadora, neste caso, não está descolada da função de profissional. Neste espaço, o Serviço Social é requisitado para alguns fenômenos:

Articulação com as instituições e serviços assistenciais;

Desenvolvimento de programas de ampliação do acesso e garantia de permanência;

Programas e ações de assistência estudantil;

Implementação e gestão do Programa Nacional de Assistência Estudantil - PNAES;

Organização de programas de qualificação e de conclusão da educação escolarizada;

Disseminação de programas e projetos sociais que articulam educação, esporte e cultura;

Execução do Programa Bolsa Permanência;

Análises sócio-econômicas a ingressantes via reserva de vagas.

No contexto específico da atuação do Serviço Social nos Institutos Federais, a sua principal demanda está na gestão do PNAES. O PNAES - decreto 7.234/10 - é um programa que se propõe a garantir a permanência dos estudantes através de um orçamento anual empenhado aos campi que deve ser utilizado para as ações que constam em seu artigo 3º: alimentação, moradia, transporte, atenção à saúde, inclusão digital, cultura, esporte, creche, apoio pedagógico e acesso, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades e superdotação. É importante destacar que o PNAES é um programa claramente direcionado ao ensino superior e se refere à educação profissional somente em um artigo, o artigo 4º.

Além da gestão do PNAES, o Serviço Social nos Ifet's é demandado a atuar no NAPNE, no PBP - Programa Bolsa Permanência - um programa que se propõe a ofertar um auxílio para estudantes cujos cursos possuam carga horária diária de no mínimo cinco horas e no processo de ingresso de estudantes por reserva de vagas.

3.1 O IFRS e a questão étnico-racial a partir dos documentos institucionais

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 94-100)