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1.2 A discussão das Ações Afirmativas

1.2.3 Prós e contras

Diante da conjuntura até aqui apresentada a respeito das nuances das ações afirmativas no contexto brasileiro, este tópico tem por objetivo abordar os principais argumentos contrários às ações afirmativas. Para tal, vamos contar com as contribuições de célebres autores como Guimarães (2011), Munanga (2006) e Bernardino (2004ano).

Dentre os muitos argumentos contrários às cotas, elegemos quatro para aqui analisar: o primeiro diz respeito à ideia de que não existem raças no Brasil por ser este um país mestiço. O segundo vai ao encontro do primeiro, já que questiona quem é negro no Brasil. Um terceiro argumento aborda a questão da qualidade de ensino, ou a falta de, que ocorreria com a adoção de política de ações afirmativas. E o último argumento é pautado na discussão de que a política de ações afirmativas reforça o preconceito e a discriminação contra os próprios negros.

Com relação ao primeiro argumento, de que o Brasil é um país mestiço, este se deve ao mito da democracia racial, conforme brevemente analisamos em outro momento. O mito da democracia racial corroborou, ao longo dos séculos, para a face perversa de que é constituído o racismo no Brasil, já que neste caso o cerne da questão está na ideia de que, em decorrência da miscigenação ocorrida no Brasil desde o período escravocrata, somos todos mestiços. Os críticos às ações afirmativas também acusam este país "mestiço" de copiar o modelo estadunidense.

Afirmam que não há por que o Brasil adotar um modelo que nada tem a ver com o contexto brasileiro.

Neste sentido, nos diz Guimarães (2010) que a população brasileira, e em especial a universitária, cultiva identidade de cor, pois em uma pesquisa realizada com 14.974 estudantes da USP - Universidade de São Paulo - apenas 0,1%

recusou-se a responder (2003, p. 2010).

Também é por outra pesquisa, esta mais recente, que este argumento perde força. Em uma pesquisa realizada pelo IBGE em 2008 acerca das características étnico-raciais da população, 67,2% das pessoas de 15 ou mais anos de idade que moram em São Paulo responderam que identificam que o quesito raça/cor possui influência na vida dos indivíduos (tabela 1). Ou seja, além da população cultivar identidade de cor, também identifica a existência do racismo. Prova-se então que a democracia racial é, de fato, um mito.

Tabela 1 - Opinião sobre influência da cor ou raça na vida das pessoas, segundo características selecionadas dos entrevistados (Brasil, 2008) – em

%

Também pontuamos que, a partir do último censo realizado pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- em 2010, a população negra torna-se majoritária já que é composta por 50,7% da população. Se formos comparar com o censo de 2010, perceberemos um aumento de 13,6 pontos percentuais. Isto se deve, nos diz Silva (2013, p.16), “a um provável aumento do sentimento de pertença racial”.

No segundo argumento, que questiona quem é negro no Brasil - e penso que já respondemos em certa medida no item primeiro - voltamos a ressaltar a singularidade do contexto racial brasileiro que demonstra Bernardino a partir de Nogueira (2004, p. 88), a que se denomina preconceito de marca. Aqui no Brasil não é incomum os olhares de vendedores quando algum negro entra em uma loja pressupondo um furto ou assalto.

Os jovens negros formam um segmento de risco para Junior e Lima (2013) que entendem que este grupo compõe uma tríplice exposição à violência letal por serem jovens, negros e brasileiros. Assim, o mapa da violência de 2011 mostra que o índice de homicídio entre os jovens negros subiu de 47,7% em 1998 para 52,9%

no ano de 2008. Neste sentido, dados do IBGE de 2010 demonstram que são também os jovens negros os mais agredidos fisicamente, pois 2,3% dos negros

sofreram pelo menos uma agressão física no ano anterior à realização da pesquisa - que ocorreu em 2009. Entre os brancos, a porcentagem caiu para 1,3% (IBGE, 2010).

Não podemos deixar de salientar que o Estado, quando lhe cabe, sabe bem distinguir quem é negro. São os negros as grandes vítimas de agressão por parte dos policiais, se compararmos com os brancos. A Pesquisa Nacional de Vitimização - realizada em 2010 - aponta que 6,5% dos negros que sofreram uma agressão no ano anterior tiveram como agressores policiais ou seguranças privados contra 3,7%

dos brancos (IBGE, 2010 apud Junior e Lima, 2013). Pesquisa realizada por Barros (2008) vai ao encontro deste número, pois ao perguntar a Policiais Militares, alunos do Curso de Formação de Oficiais e aluno do Curso de Formação de Soldados sobre quem se aborda primeiro em uma situação de suspeição envolvendo um homem branco e um homem negro, todos os grupos responderam abordar o homem negro ao branco, como demonstrado na tabela 2:

TABELA 2 - Percepção sobre quem se aborda primeiro em uma situação de suspeição envolvendo um homem branco e um homem negro: policiais militares (PMs), alunos do Curso de Formação de Oficiais (CFO) e alunos do Curso de Formação de Soldados (CFSD) (Em %)

PMs CFO CFS

Negro depois de branco

51, 3 83,0 67,9

Branco depois de negro

8,3 0,0 3,9

Fonte: Barros (2008)

Não por acaso, mulheres negras são maioria nos postos de trabalho mais precarizados, como é o caso do serviço doméstico. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2009, realizada pelo IBGE, demonstra que o número de mulheres ocupadas no serviço doméstico é de 6,7 milhões. Deste montante, as mulheres negras são maioria com um total de 61,7 pontos percentuais.

As não-negras (brancas, amarelas e indígenas) correspondem a um total de 38,3%.

A pesquisa ainda indica que, entre os setores de atividade econômica no país, é o serviço doméstico que concentra a maior proporção de mulheres negras.

Assim, o que percebemos é o preconceito de marca, ou seja, aqui o preconceito se reproduz através das características físicas, é baseado no fenótipo, como a cor da pele, o tamanho do nariz, a textura do cabelo.

Torna-se este um discurso dúbio, um verdadeiro paradoxo já que para discutir políticas de inclusão desta população aos bens e serviços desta sociedade - majoritariamente e historicamente ocupados por uma população branca e elitizada - exemplo disso é o próprio ensino superior - não existem negros, somos todos mestiços. Mas, para as "duras" diárias, para os trabalhos precarizados, para as acusações e furtos em lojas, para as humilhações rotineiras e para os elevadores de serviço de condomínios luxuosos, aí sim existe uma cor, cor esta que - diga-se de passagem - se sobrepõe gritantemente a todas as outras. Os dados não nos deixam mentir.

Diante do exposto, não podemos finalizar este argumento sem nos reportarmos a D'adesky (2001), quando da sua brilhante definição de quem é negro no Brasil:

Todo o indivíduo de origem ou ascendência africana suscetível de ser discriminado por não corresponder, total ou parcialmente, aos cânones ocidentais, e cuja projeção de uma imagem inferior ou depreciada representa uma negação de reconhecimento igualitário, bem como a denegação de valor de uma identidade de grupo e de uma herança cultural e uma herança histórica que geram a exclusão e a opressão (D´ADESKY, 2001, p. 34).

O terceiro argumento está pautado na ideia de que as ações afirmativas ameaçam a qualidade do ensino já que alunos "sem preparo" ocupariam a vaga um aluno "preparado" e, então, a instituição se veria obrigada a diminuir o seu nível de excelência para se adaptar e este [non grato] público. Começamos, assim, por sinalizar que para o estudante ser contemplado com as cotas, o mesmo deve obter nota mínima no vestibular, ou seja, uma nota de corte instituída pela universidade.

Torna-se incoerente exclamar aos quatro ventos, como fazem os críticos entusiastas, que a qualidade do ensino pioraria com a adoção de ações afirmativas se existe um critério meritocrático embutido na política. Mérito este questionado por Santos (2003), como podemos observar neste trecho:

faz-se necessário saber de quem é o mérito ou, se quiser, quem tem mais mérito. Serão aqueles estudantes que tiveram todas as condições normais para cursar os ensinos fundamental e médio e passaram no vestibular ou

aqueles que, apesar das barreiras raciais e de outras adversidades em sua trajetória, conseguiram concluir o ensino médio e também estão aptos a cursar a universidade? Devemos considerar somente o mérito de chegada, aquele que se vê ou se credita somente ‘no cruzamento a linha de chegada:

na aprovação do vestibular? Ou devemos considerar também o mérito de trajetória, aquele que se computa durante a vida escolar dos estudantes, que leva em consideração as facilidades e as dificuldades dos alunos para concluírem os seus estudos? (SANTOS, 2003, p. 114 apud BERNARDINO, 2004, p. 96).

Guimarães (2005) também contribui para este debate ressaltando que este argumento normalmente é dito por docentes universitários e que há, na comunidade acadêmica, uma espécie de descrédito e desconfiança para com as ações governamentais. Munanga (2005), na mesma linha de raciocínio, atenta para uma série de recursos que uma universidade pode fazer valer para minimizar as lacunas que poderão existir através, por exemplo, de uma proposta de formação complementar.

Já Ferez (2008) corrobora o debate a partir de levantamento de dados acerca das ações afirmativas no Brasil. Em artigo publicado em 2008, Ferez fez a constatação de que, à época, 57 era a quantidade de Instituições Públicas de Ensino Superior (IPES) que possuíam algum tipo de ação afirmativa no país. No mesmo ano, o IPEA divulgou uma pesquisa com números bastante animadores acerca do rendimento dos alunos cotistas. Na UNICAMP (Universidade de Campinas), dos 55 cursos, em 31 o coeficiente de rendimento dos alunos cotistas era igual ou superior aos não cotistas. Na UnB, cotistas tiveram maior índice de aprovação com uma porcentagem de 92,98% contra 88,90% da média geral.

Certamente que hoje, e principalmente com a aprovação da Lei de Cotas (12.711/12), este número deu um verdadeiro salto. Analisando o mapa das ações afirmativas de 2012, percebemos um aumento de mais de 100% - em quatro anos - de IPES que hoje possuem alguma modalidade de ação afirmativa, pois elas somam um total de 125 instituições.

Assim, não nos resta muito além de concordar com Guimarães (2003) e Bernardino (2004) no que tange à face profundamente preconceituosa deste argumento aqui em questão.

O quarto e último argumento, também observado Munanga (2003), Bernardino (2004) e Guimarães (2004), é acerca do que os críticos chamam de discriminação inversa. Estes entendem que as ações afirmativas corroboram para a acentuação da discriminação racial. Nesta linha de raciocínio, citamos Bernardino:

É justamente o contrário o que acontece, a saber, o combate ao preconceito e à discriminação através das ações afirmativas. Estas políticas constituem- se numa demanda para que todo cidadão negro seja reconhecido na sua condição de igualdade universal e, por isso, tenha acesso aos bens econômicos, políticos e acadêmicos da sociedade brasileira. Neste sentido é que se requer que a igualdade seja pensada não somente como uma igualdade abstrata, mas como uma igualdade substantiva. Em outras palavras, o objetivo é promover a inclusão da população negra em espaços nos quais ela tem historicamente encontrado barreiras quase intransponíveis, conforme podemos ver através dos indicadores sociais.

(2004, p. 95)

A ação afirmativa no Brasil não é nenhum absurdo se formos pensar o histórico de humilhação a que o negro está sujeito desde a escravidão e se formos olhar os números alarmantes de brancos e negros pobres. É certo, sim, que é necessário pensarmos em uma forma de garantir educação de qualidade a partir do ensino básico, para todos. É certo, sim, que ação afirmativa é uma medida de curto prazo que tem por vista sanar a desigualdade racial e social que impera neste país.

É certo, também, que a política de ação afirmativa não nega políticas universalizantes como a melhoria da educação, pelo contrário, uma política torna-se complementar à outra. Contudo, a discriminação racial está presente neste país bem antes da adoção de cotas, não há de ser esta medida a acentuar o racismo entre os grupos, que se reproduz por si só.

Por fim, como já nos alertou Silvério (2002), é importante novamente destacarmos que não podemos restringir o debate das ações afirmativas apenas à discussão das cotas. Com este mesmo intuito, afirma Munanga:

Finalmente, a questão fundamental que se coloca não é a cota, mas sim o ingresso e a permanência dos negros nas universidades públicas. A cota é apenas um instrumento e uma medida emergencial enquanto buscam-se outros caminhos (...) Mas dizer simplesmente que implantar cotas é uma injustiça, sem propor outras alternativas a curto, médio e longo prazos, é uma maneira de fugir da questão vital para mais de 70 milhões de brasileiros de ascendência africana e para o próprio futuro do Brasil. É uma maneira de reiterar o mito da democracia racial, embora este já esteja desmistificado." (2003, p.127)

Nos reportamos novamente a Ferez (2012) para entendermos de que forma as ações afirmativas se justificam. Para o referido autor, são três as principais elaborações de justificativas para as ações afirmativas: reparação, justiça social e diversidade.

No que se refere à reparação, esta justificativa é possivelmente a mais conhecida e a mais popular, pois esta palavra é usada para se remeter a injustiças profundas que ocorreram no passado e que, portanto, medidas devem ser

acionadas como forma de compensação. No caso do Brasil, em termos raciais, a injustiça profunda foi a escravidão. Assim, os beneficiários destas medidas reparatórias devem - obrigatoriamente - ser os negros, afro-descendentes dos que no passado foram escravizados. Não estamos assim dizendo que no Brasil apenas os negros devem ter direito a ações afirmativas. Há no Brasil outros grupos sociais injustiçados em decorrência da formação social brasileira, como as mulheres e os índios.

O argumento da justiça social possui cunho histórico e é pautado em grupos de pessoas que são sistematicamente marginalizadas (Ferez, 2012, p. 3). É um argumento que parte da premissa de que, se todos deveriam ser iguais, há uma injustiça com os grupos marginalizados. E esta marginalização tem se dado historicamente através da divisão de classes e das mais variadas formas de preconceito. Assim, é direito destes grupos que estão à margem da sociedade acessar seus bens e serviços através das ações afirmativas.

Do ponto de vista da diversidade, o argumento pauta-se na ideia de que todos os segmentos sociais devem estar representados nos setores de prestígio e poder de uma sociedade democrática. Ferez (2012) destaca que o argumento da diversidade foi criado e utilizado como justificativa para as políticas afirmativas,sobretudo nos Estados Unidos, não havendo grande incidência no contexto brasileiro.

Aqui, a justificativa mais usual para a política de ações afirmativas é a da reparação e justiça social. Não obstante, nos lembra Ferez (2012, p. 06) que estes argumentos não são excludentes, mas podem ser perfeitamente complementares entre si.

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 51-57)