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Novos tempos para a Igreja: dos Movimentos tradicionais

3.2 Dom Giocondo: presença missionária e pastoral na Igreja

3.2.1 Novos tempos para a Igreja: dos Movimentos tradicionais

A história da Prelazia do Acre e Purus não se pode entender sem a presença das CEBs no seu meio. Elas foram um fenômeno eclesial e social, promovendo numerosas mudanças na vida e na missão da Igreja e da sociedade. Era a nova forma de ser Igreja, onde os leigos passaram a ser os monitores das Comunidades, com grande espírito de serviço em favor da justiça e da caridade.

O laicato da Prelazia estava basicamente organizado em associações tradicionais como Filhas de Maria, Apostolado da Oração, Vicentinos, Cruzada Eucarística e Congregações Marianas. Essas associações leigas, na sua maioria, tinham vida formal e vegetativa. Estavam voltadas prioritariamente para atividades litúrgicas, e os trabalhos sociais que desenvolviam consistiam em práticas de caridade e assistência individual. Funcionavam nas cidades, como força auxiliar do clero, e dele dependiam essencialmente. Sua influência, notadamente no

214 No dia 28 de setembro de 1971, às 14 horas locais, perecia em acidente aéreo Dom Giocondo M.

Grotti. Viajava num avião da Companhia “Cruzeiro do Sul”, da linha Sena Madureira-Rio Branco, quando o velho e gasto DC-3 se precipitou logo após a decolagem de Sena Madureira. Dos 32 passageiros a bordo, nenhum sobrevivente. Verdadeira comoção tomou conta da Prelazia que perdia seu tão estimado Pastor. Com 46 anos de idade a vida de Dom Giocondo foi truncada.

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meio das classes populares, era quase nula e sua ideologia era puramente conservadora. Era necessária, portanto, uma revisão daquelas associações e obras sem razão suficiente, ou com métodos obsoletos que não correspondiam mais às necessidades pastorais da Igreja (AA 19).

A Igreja acreana, seguindo os passos de toda a Igreja latino-americana, quis dar também um salto corajoso e qualificado, assumindo uma opção evangélica: queria colocar-se ao lado dos pobres e dos marginalizados que constituíam a maioria da população. Desejava corresponder, assim, aos novos tempos marcados pelo Vaticano II e acomodar todas suas estruturas às novas Diretrizes pastorais. “Se a Igreja do Acre encontrou o caminho novo da libertação e levantou sua voz profética sem medo, foi devido à fé, à constância e aos sofrimentos dos primeiros missionários, que souberam ser fiéis à sua missão de semeadores da boa semente, preparando o terreno fértil para dele colher os frutos no futuro”215.

A Igreja do Acre teve em si mesma o fermento da renovação. Dom Giocondo entendia que muitas coisas deviam ser mudadas, pois a Igreja devia ser o sonhado Povo de Deus, dando origem ao nascimento das Comunidades Eclesiais de Base e onde os leigos eram inseridos na missão evangelizadora. O caminho inicial foi lento e não isento de suspeições.

Das Comunidades nasceram os Movimentos Populares, como frutos da fé e da caridade, valores fundamentais proclamados pelo Evangelho. A Igreja se tornou, então, a única instituição que conseguiu canalizar as aspirações populares, iluminando-as com a luz do Evangelho.

A primeira Comunidade Eclesial começou na periferia de Rio Branco, no bairro da Estação Experimental, crescendo com grande rapidez e consolidando-se como experiência modelo. Essa Comunidade nasceu por iniciativa popular, resultado da intervenção direta de uma equipe no meio popular, mas em unidade e comunhão com a hierarquia, dando lugar, assim, à sua força transformadora216.

A decisão de iniciar essa experiência não foi precedida de uma longa discussão ideológica e com um programa claro de ação, nem de uma metodologia exaustivamente debatida. A equipe era movida por um único sentimento: era preciso fazer alguma coisa diferente, em nível pastoral, que procurasse incorporar as camadas populares e que, em seu conteúdo, incorporasse um mínimo de sensibilidade aos problemas sociais. Eram necessários

215 FICARELLI, Pe. André. A Igreja do Acre e Purus e os Servos de Maria, p. 23. Arquivo Cúria Diocesana de Rio Branco.

216 A partir de fevereiro de 1971, uma equipe formada pelo Pe. Manoel Pacífico, Mássimo Mengarelli, Nilson Mourão e Leôncio Asfury, passaram a desenvolver de modo sistemático um trabalho pastoral no bairro. A realização dessa experiência foi o resultado de uma decisão subjetiva dessa equipe, com o consentimento formal de Dom Giocondo.

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agentes externos que trouxessem sua realidade para dentro da equipe e sensibilizassem a todos com sua dura realidade. A equipe decidiu morar no próprio bairro, numa casa modesta e pobre, que em nada diferia das outras. Acreditavam que desse modo seria possível realizar um trabalho sério e consistente. Num texto intitulado Auto Crítica, a equipe fez a seguinte observação:

A opção da equipe de se estabelecer num bairro marginalizado se movia num gesto de profunda solidariedade com a vida desse povo. Acreditávamos, com sinceridade, que só poderíamos realizar algum trabalho sério se experimentássemos a vida daquela gente. Se bebêssemos da mesma água, tomássemos o mesmo ônibus, comêssemos do mesmo pão e dormíssemos na mesma rede. Nossa solidariedade não seria de fachada, mas em razão de uma experiência existencial. Nossa intenção era, então, estando inseridos no meio do povo, partilhando de sua vida, tentar descobrir sua linguagem, seu modo de viver, suas expectativas, sua situação de vida. Queríamos captar o pensamento do povo acerca de sua situação e a interpretação que eles davam aos acontecimentos217.

Todas as paróquias precisavam ser descentralizadas em pequenas comunidades, onde fosse possível experimentar o amor do Pai, como família cristã, e fermentar toda a massa humana. Aos poucos, aquela experiência se espalhou rapidamente pela cidade, como serviço concreto de evangelização, de caridade e o compromisso social, em favor dos últimos e mais pobres. Não se podia continuar a evangelizar os mesmos evangelizados de sempre. Abriu-se um novo e mais amplo horizonte de evangelização, até alcançar os becos mais distantes das paróquias, começando pequenas Comunidades nas casas, com participação de adultos, jovens e crianças. A casa se convertia em pequena CEB, onde recebia com frequência a visita do padre para celebrar a missa no terreiro da casa.

O novo método pastoral se espalhou rapidamente para as áreas rurais, onde ainda acontecia a clássica desobriga às rarefeitas populações da mata, com uma catequese reduzida ao mínimo necessário e à administração dos sacramentos. No novo tempo, a visita e a presença do padre, das irmãs, ou leigos, nas zonas rurais tinha como finalidade principal criar pequenas comunidades cristãs, procurando que fossem autossuficientes; suscitar e formar líderes comunitários, que deviam conduzir a comunidade e preparar seus membros para a vida sacramental. Era um trabalho pastoral muito difícil, porque exigia muita coragem pelas dificuldades de transporte, perigos e empecilhos de todo tipo. Além disso, também exigia uma constante animação por parte dos padres e uma formação pastoral específica. A maior

217 VV.AA. Documento Auto Crítica. Arquivo Cúria Diocesana de Rio Branco.

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dificuldade decorria da flutuação da população que, face à expansão do latifúndio, tinha que abandonar suas terras.

Nessas caminhadas pelas matas, sem recursos porque nem era possível carregar muitas coisas, sendo que se deviam fazer muitas horas a pé, muitas vezes o medo tomava conta da gente, quando de um momento para outro o vento soprava forte, as árvores se curvavam, galhos quebravam e caiam, onça esturrava, cavalos se assustavam, atoleiros impediam passagens, chuvas, raios, trovões, e nada se podia fazer contra a natureza. As pessoas ao perceber que se tinha medo diziam: “A senhora não confia em Deus, não? Se Deus quiser, nada vai acontecer”. Ao dormir no relento, sentíamo-nos felizes enquanto cavalos, vacas, porcos, cachorros, rondavam ao redor da gente, porque era sinal que não havia onça ou inseto (cobra)218.

As Comunidades rurais, formadas por agricultores ou seringueiros, conseguiam mais facilmente realizar uma evangelização ou catequese inculturada, ligando com mais espontaneidade o Evangelho com a vida comunitária. Vivendo na mesma realidade social, seus membros enfrentavam com mais clareza os problemas comuns, formando associações de colonos, reivindicando seus direitos e lutando pelos objetivos coletivos.

Houve várias ações, de iniciativa popular, que procuraram melhorar a realidade do povo. Escolas de alfabetização de jovens e adultos, muito precárias, mas que deram uma grande contribuição para amenizar o analfabetismo reinante; práticas de saúde alternativa, com estudo e conhecimento de plantas medicinais contribuíram na melhora e qualidade de vida do povo; fundação de diversas associações: MORHAN (Movimento de Reabilitação do Hanseniano), lavadeiras, sindicato dos trabalhadores rurais, associações de seringueiros.

Nesses anos, além de tudo isso, e forçada pelas circunstâncias e situações de evidente injustiça, a Igreja se fez defensora da defesa dos direitos dos pobres, colocando-se a seu lado, contra a prepotência dos grupos dominantes. Era o único caminho a escolher para ser coerentes com o Evangelho. Era o novo modo de ser Igreja.