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Ordem Terceira do Carmo e os Cemitérios: conflitos com Estado Imperial

No documento universidade federal de minas gerais (páginas 193-200)

3. UMA ROTINA DE EMBATES

3.3. Ordem Terceira do Carmo e os Cemitérios: conflitos com Estado Imperial

No início do oitocentos, as Ordem Terceiras do Carmo e outras associações religiosas começaram a sofrer uma série de proposta de intervenção administrativa contábil e outras mais contundentes atinentes às transformações dos locais de sepultamento e práticas funerárias por parte do poder público. Nos dois casos, as investidas não obtiveram resultados satisfatórios.

Aqui, abordarei, primeiramente, o caso dos cemitérios e a resistência por parte das associações Terceiras do Carmo em acatar as decisões, contando com o auxílio da Igreja Católica que até então fora vista em algumas questões como adversária destas mesmas associações. Percebemos uma oscilação ou postura pendular por parte dos Terceiros. Observamos, em alguns casos trabalhados anteriormente, que o Estado é utilizado como linha de frente para interposição legal junto às pretensões intervencionistas do clero secular. Todavia, o antigo opositor passa a ser o aliado quando as tradições e os costumes fundamentais de suas crenças são alvo das investidas civilizatórias dentro de uma lógica clientelar. A autogestão aqui se revela como procura por meios legais intermediários na tentativa de isentar-se das determinações elaboradas pelo Estado Imperial e, em seguida, é refletida localmente nas Posturas Municipais. Já o segundo caso, que será analisado ao final, apenas contribui para confirmar a recusa da autoridade do Estado sobre suas contas e administração. Isso se dá quando o poder público passa a gerenciar as associações religiosas com base nas prerrogativas da lei orgânica, elemento que se irá contrapor às determinações eclesiásticas e, principalmente, às do direito consuetudinário.

O primeiro caso está relacionado à representação por Carta Régia feita pelo Príncipe Regente Dom João a Bernardo José de Lorena, então Governador e Capitão General da Capitania de Minas Gerais. O documento demonstrava a preocupação do regente com a saúde pública, pois considerava como prática danosa o sepultar dos mortos nas igrejas das “populosas cidades dos seus Domínios Ultramarinos”. O medo do advento de doenças epidêmicas ou consideradas “perigosas” em decorrência do contato dos vivos com “um ar corrupto, e inficionado”, oriundo dos vapores que exalariam dos cadáveres em decomposição e contaminariam a atmosfera, levava-o a ordenar a Bernardo José de Lorena que:

Procureis de acordo com o Bispo dessa Diocese, fazer construir em sitio separado da Villa-Rica, e cujo terreno não seja úmido mas lavado dos ventos principalmente do Norte e leste, hum, ou mais cemitérios onde hajam de ser sepultadas, sem exceção,

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todas as pessoas, que falecerem, devendo estes ter a suficiente extensão, afim de que não seja necessário abrirem-se as sepulturas, antes que estejam consumidos os corpos, que nelas se houverem depositado, sendo porem permitido a qualquer família, o formar dentro dos mesmos cemitérios, hum carneiro sem luxo, onde posam enterrar- se os indivíduos, que pertencerem aquela família; e ficando proibido, como com efeito Proíbo, que dentro dos templos, se continuem a dar sepultura aos cadáveres, logo que estiverem construídos os mencionados cemitérios.368

Essas gazes ou vapores eram chamados de miasmas, denominação que refere-se às emanações mefíticas originadas de plantas ou de animais em decomposição. A origem da palavra vem do grego míasma–atos de miaíno, de “eu tinjo” ou “mancho de sangue”. Sua associação estreita com a morte está ligada às antigas peças teatrais gregas, nas quais borrões de sangue eram utilizados com objetivo simbólico de identificar o assassino com a criação de uma marca, que lhe atribuía a culpa pela morte de alguém. O homicida grego se tornava maculado por seus atos impuros e cruéis impingidos às suas vítimas.369 Porém, a palavra miasma, foi utilizada com o sentido de descrever um tipo específico de agente ou de elemento infeccioso, que navegava pelos ares causando a morte e epidemias nas cidades. Pode-se dizer que a “morte” encontrava seu “veículo”, nas malignidades do ar, pertencentes às teorias hipocráticas que fundamentaram a Medicina por mais de 1.500 anos.

Sua perduração ao longo dos séculos se deu entre críticas e enaltecimentos, tornando-se uma referência obrigatória para os estudiosos das ciências médicas.370 As Faculdades europeias como as de Coimbra, em Portugal, ou as famosas Faculdades de Medicina de Montpellier e de Paris, na França, davam a todos os seus alunos os mesmos contornos de futuros esculápios hipocráticos que iriam utilizar das teorias sobre o funcionamento dos humores, das interinfluências da natureza na saúde e, principalmente, sobre os pneumas ou princípios pneumáticos para buscar impedir ou curar as mais diferentes enfermidades que acometessem o indivíduo.

368 APM - Seção Colonial, Códice 295 (1801). Carta Regia do Príncipe Regente f 15 - SCP. 68 ev [53].

369 MARTINS, Roberto de Andrade. Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis. São Paulo:

Moderna, 1997. p. 91.

370 Em O Doente imaginário, de Molière, as teorias de Hipócrates fazem parte do pano de fundo das discussões sobre os médicos e sua arte de curar, criticadas pelo autor por serem demasiadamente valorizadas e cegamente seguidas, matando seus pacientes mais pela debilidade resultante das purgas e sangrias do que pelo mal que lhe provoca o estado enfermiço. Em uma das cenas em que o tema estava em discussão, Dr. Diafoirus, médico de Argan (o doente imaginário) ao falar sobre seu filho e pretendente à mão da filha de seu paciente, elogia suas qualidades pessoais e profissionais ressaltando o que para ele é o mais notável e digno de orgulho, assim diz “Mas, acima de tudo, o que aprecio nele, e ele segue o meu exemplo, é que acata cegamente a opinião dos antigos, e que nunca quis entender nem ouvir as razões e as experiências das pretensas descobertas de nosso século, como a circulação do sangue e outras opiniões de mesmo gabarito”. Vale uma rápida explicação, o uso do termo os antigos é uma expressão usada para fazer referência aos princípios hipocráticos e à sua presença no século XVII. Cf.

MOLIÈRE. O Doente Imaginário. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003. p. 95.

195 Com o passar dos séculos, houve o crescimento das pesquisas sobre a malignidade da atmosfera e, correlativamente, da qualidade do ar. Tais análises revelavam o princípio do desenvolvimento de teses sensoriais, permitindo o hábito de interpretar pelas sensações, e não só pela racionalidade científica. O olfato tornava-se instrumento valoroso para interpretação das substâncias odoríferas espalhadas ou suspensas no ar. Como indica Cobin, “O olfato detecta os perigos que a atmosfera esconde. (...) é o melhor analista da qualidade do ar (...) o olfato antecipa a ameaça, discerne a distância a podridão nociva e a presença do miasma. Ele assume a repulsa de tudo o que é perecível”.371 O composto dos ventos está agora tomado como local de produção de “caldos pavorosos”, nos quais se misturavam fumaças, vapores oriundos das águas, enxofres, matérias mortíferas exaladas da terra e dos corpos em decomposição.

Para os higienistas, as urbes que detinham cemitérios em seu interior encontravam-se em sérias dificuldades, uma vez que a terra, as barreiras de pedra ou a madeira não podiam evitar que os vapores mefíticos emanassem das moléculas cadavéricas. E, ainda pior, os ventos, que serviam para agitar e dispersar os miasmas eram barrados pelos edifícios e ruas estreitas, facilitando sua permanência e intensidade. Era o caso de muitas localidades brasileiras onde:

Um número infinito de cadáveres é deixado a putrefacção nas igrejas do Brasil, seja na terra coberto por meio de uma pedra sepulcral, seja em subterrâneos que frequentemente é-se obrigado a praticar, e cuja entrada se encerra com uma pedra quase sempre mal adaptada, e do qual subterrâneo, as abóbadas, pela maior parte muito antigas, tornam-se permeáveis pela ação reunidas da umidade, e das exalações cadavéricas; seja enfim em carneiros, sorte de sepulturas praticadas na espessura dos muros das Igrejas, e que da mesma sorte estas últimas, tornam-se permeáveis pela ação reunidas da umidade, e das exalações cadavéricas, e infectam os corredores que os limitam, não obstante a fraca correnteza de ar que pode aí penetrar durante que as Igrejas estão abertas [...] Mas nas Igrejas do Brasil, reina quase sempre uma umidade sensível; o ar aí é quase sempre movimentos; se algumas vezes ele é fortemente agitado nelas, jamais sua massa inteira é renovada; além disto a forma, e a disposição de nossos templos a isso se opõe.372

Dessa forma, os miasmas exalados dos túmulos eram impedidos de se dissiparem, seja pela umidade reinante nos templos, que tornava as moléculas mais densas e menos propícias a se debandarem, seja pelos obstáculos impostos aos ventos que faziam com que os vapores mefíticos ficassem circulando pelas ruas a baixa altura, penetrando nas casas, o que acabava

371 CORBIN, Alain. Saberes e Odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo:

Companhia das Letras, 1987. p. 14.

372 BN – Dissertação sobre as inhumacoes em geral, seos desastrosos resultados, quando praticam nas igrejas, e no recinto das cidades, e sobre os meios de, a’isso, remediar-se mediante cemitério extra-muros. Manoel Mauricio Rebouças These Apresentada, e sustentada na Faculdade de Medicina de Paris. Bahia Na Typ Do Órgão, ao Gravatá, Casa n-30 – 1832. Folha VI. p. 56-58.

196 por afetar seus moradores com o mau cheiro chegando ao ponto de alterar a qualidade dos alimentos.

De tal forma, como apresentada até o momento, a posição do Regente espelhava os padrões de higiene e saúde pública vigentes na Medicina do período e que vigoraria durante quase todo o século XIX, nos quais os mortos passaram a ser ressignificados de sagrados a perniciosos e perigosos para a saúde pública. Assim era como se referiam a eles em discursos proferidos nas diferentes localidades do país, por homens letrados e por médicos, entre outros, que se sentiam imbuídos das luzes da ciência e da civilização. Eram homens que conduziram à transformação das relações entre vivos e mortos ao difundir o temor por estes, apregoando algumas vezes a dessacralização dos respectivos ritos, locais de sepultamento e identificando os mortos como responsáveis por doenças epidêmicas.

A aplicação da ciência médica na produção dessa utopia sanitária no Brasil e no combate preventivo das doenças tinha, também, o objetivo de proporcionar à nação a construção de uma civilização saudável em hábitos e costumes, implantados por meio da apropriação de modelos externos – leiam-se estrangeiros –, adaptando-os à realidade tropical. Tornava-se evidente a procura de identificação, reconstrução e integração às modernas e civilizadas nações europeias, especificamente França e Inglaterra, tidas, nesse período, como referências de desenvolvimento artístico, tecnológico, econômico e científico.373 Essa clara atração, esse eurocentrismo fomentado pelas elites letradas brasileiras, advogados, médicos, políticos, engenheiros, literatos e intelectuais nos mais diferentes campos, todos desejosos de possuir moralmente e materialmente o conforto que as luzes do conhecimento e o progresso lhes poderiam proporcionar. 374 Acreditavam na capacidade de aperfeiçoamento da sua nação e de seu povo, certos de que havia um caminho rumo à civilização, sonho desejado e ao qual caberia às ciências médicas dar seu quinhão para o desenvolvimento interno e equiparação do Brasil à Europa.375

373 A Europa, nesse período, era o centro do mundo moderno, portadora de um alto patamar debitado dos constantes investimentos e estímulos dados à educação científica e técnica, graças não só à revolução industrial como à razão (movimento iluminista). Alguns povos europeus viviam um período de alto regozijo, de celebração e de deslumbramento pelo desenvolvimento e pelo progresso alcançado por sua nação. Alguns, como a França, destacavam-se, ocupando uma posição de superioridade entre as demais no que diz respeito às ciências, principalmente na área de Medicina durante boa parte do século XIX. Cf. HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1977. p. 302.

374 KURY, Lorelai Brilhante. O império dos miasmas. A Academia Imperial de Medicina (1830-1850). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1990. p. 42-43.

375 Para o caso brasileiro, ser civilizado e fazer parte da civilização seria dotar-se de determinado número de características ou atributos relacionados aos elementos constituintes da autoimagem de outras nações tidas como civilizadas. Nos trópicos, serviu para designar urbanidade, polidez, boa educação, desenvolvimento científico e educacional, ideias religiosas, vestimentas, habitação e etiqueta. Como afirma Norbert Elias, rigorosamente, não há nada que não possa ser feito na forma civilizada. São atributos compreendidos como um código de princípios

197 Após a independência do Brasil, essa tarefa gravitou em torno de um corpo médico higienista em formação e nas mais diversas instâncias do poder público. Coube-lhes a tarefa de perpetuar as mudanças civilizadoras iniciadas pela Corte, dando continuidade à formulação de soluções, propondo projetos para sanar os problemas do Brasil. As ações dos higienistas puderam ser sentidas principalmente por meio das tentativas de remodelação dos costumes e das práticas cotidianas do povo, na refutação de suas tradições e na transformação dos meios urbanos e naturais. Essa dinâmica caracterizou-se por uma forma abrangente de atuação sobre os focos produtores de contaminação, na qual a tarefa dos funcionários da higiene consistiu, basicamente, em percorrer as ruas, becos, pântanos e casas perseguindo as emanações mefíticas na tentativa exterminá-las.

Retomando o processo iniciado pela Carta Régia de 1801, sabemos que sua expedição fora inócua ou havia tornado refratária para o clero e para as associações religiosas como um todo, que, por meio de representações contrárias, se opuseram às doutrinas propagadas pela Coroa Portuguesa.376 Por mais que a iniciativa de acabar com sepultamentos dentro dos templos nas urbes não obtivera o sucesso esperado, ela não foi esquecida por parte dos poderes políticos públicos que procuraram implementá-la. A atitude das Ordens Terceiras do Carmo de Ouro Preto, Sabará, Diamantina e São João del-Rei foi de não cumprimento à interdição de findar os sepultamentos nos templos. Essa atitude é passível de ser observado nos livros de Termo e Estatutos em vigor nos primeiros três decênios do século XIX. Em decorrência dessa atitude, podemos considerar que não houve alteração quanto ao lugar determinado para os enterramentos no recinto, conforme havia sido firmado pela Carta de 1801, levando as Ordens Terceiras a serem, por vezes, advertidas pela Mesa de Consciência e Ordens.377

Ei por bem fazer mercê aos suplicantes de lhes confirmar o seu compromisso escrito neste livro em vinte oito capítulos, com as cláusulas porem, de ficarem salvos os direitos paroquiais, e os da fábrica da Igreja Matriz, e inibindo o uso de sepultura dentro do templo; e em tudo cumprirão exatamente o que pelo tribunal da Mesa da Consciência e Ordem lhes for mandado.378

internos e externos, sempre variáveis, que lhes produziam o desenvolvimento e a distinção. A busca pelo “civilizar”

era uma ideia dinâmica, de progresso constante, de uma nação perfectível moral e materialmente. A terminologia

“civilização” pode ser considerada a obra-prima da diversidade interna, devido tanto aos elementos constituintes serem tão diversificados quanto à flexibilidade existente na escolha deles por parte das nações que a evocam. Cf.

ELIAS, Norbert. O Processo civilizador, Vol (1). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

376 Cf. TRINDADE, Raimundo, Cônego. Arquidiocese de Mariana: subsídio para a sua história. São Paulo: 1928- 29 1v.

377 OTCSA – Livro de Estatuto de 1828 – Folha: 32.

378 “Não apenas o Carmelo, mas também os terceiros franciscanos foram advertidos para não realizarem mais sepultamentos no recinto dos templos, conforme pode ser observado no livro de Estatuto de 1812 dos seráficos de Diamantina: Dom Pedro pela Graça de Deus e Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Império do Brasil. Faço, saber, que os Irmãos da Irmandade da Ordem Terceira de São

198 A determinação aos Terceiros de Sabará fora expedida em 18 de junho de 1828, praticamente 3 meses antes da promulgação da lei de 1º de outubro de 1828 que, além de dar novo formato às Câmaras Municipais e organizar o funcionamento dos municípios, procurava novamente extinguir estas práticas de sepultamento. De fato, a lei de 1º de outubro retificava uma série de possíveis falhas em tentativas anteriores de acabar com a prática de sepultar os mortos nos templos, o que foi feito através da compreensão da falibilidade em gerir o território tão vasto e cheio de particularidades a partir de um núcleo comum.379 Era preciso entender as diferenças e problemas existentes de cada localidade o que se colocava além das possibilidades gerenciais da Administração Imperial centralizada. Tornava-se necessário expandir as possibilidades de ação, descentralizar,380 no sentido de gerar, por meio dos artigos da lei de 1828, não só uma abrangência nacional como funcional, dentro dos mais diferentes contextos.

As Câmaras Municipais tornar-se-iam o único organismo modelar preexistente com possibilidade de empreender essa tarefa.381 A lei imperial procurou regular de diversas formas o funcionamento das Câmaras, e estas, por conseguinte, a população.

São cerca de noventa artigos e cinco títulos que compreendem a eleição das Câmaras, funções municipais, aplicações das rendas do município, função dos empregados da Câmara e posturas policiais. Interessa-nos especialmente o art. 66º, que trata das posturas policiais. Nos

Francisco de Assis [...] finalmente ficando em todo caso salvo os Direitos Paroquiais, e os da Fabrica da Igreja Matriz, e cessando desde já esta Corporação de enterrar os Cadáveres dentro da Igreja para o que deverão com presteza erigir Cemitério Decente e apto, em tudo o mais que nesta Provisão se não menciona.” Cf. AAD – Caixa

= 365 / Irmandade / Arraial do Tejuco / Livros / Ordem Terceira de São Francisco / Estatuto – 1812 – Diamantina.;

OTCSA – Livro de Estatuto de 1828 – Folha: 103.

379 Em 17 de novembro de 1825, por meio de um decreto imperial, voltava-se a solicitar a intervenção e transferência dos sepultamentos para fora das cidades. Contudo, trata-se de um caso específico envolvendo o ouvidor da Câmara do Esperito Santo sobre a mudança do cemitério do Hospital da Misericórdia dos Campos dos Goytacazes. Não há resultados possíveis para o âmbito nacional. Tudo continuara muito próximo à primeira tentativa, nada alterara. Cf. APM – Colleção das Leis do Império do Brasil – Índice da Collecção das Decisões do Governo – Flash 8 – 1825. p. 117. REIS, João José. A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda: 1998. p. 275.

380 A palavra descentralizar está em sintonia com as observações tecidas por João José Reis, quando o autor interpreta a criação de lei de 1º de outubro de 1828 como parte de uma ideologia liberal latente na sociedade imperial naquele momento. A lei de 1º de outubro visava uma intervenção global na sociedade por meio de um projeto de hegemonia ideológica e cultural.

381 A lei de 1 de outubro de 1828 representou um dos quatro momentos decisivos da legislação brasileira. Apelidada de doutrina da “tutela”, ela espoliou as Câmaras das atribuições jurídicas tornando-as órgãos estritamente administrativos, submetidas ao controle rígido por parte dos Conselhos Gerais, Presidência da Província e Governo Geral. Em momento seguinte, a descentralização promovida pelos Código do Processo Criminal (1832) e Ato Adicional (1834) simbolizou um retorno de mando aos poderes locais, transferindo para as Assembleias Provinciais o poder de legislar sobre as administrações municipais. Posteriormente, a centralização absoluta, em 1840, dá fim aos privilégios do Ato Adicional. O último momento viria com a proclamação da república e sua constituição de 1891, concentrando o poder na mãos dos Estados e da União. Cf. PAULA, João Antonio de. Raízes da Modernidade em Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

199 seus doze parágrafos são abordados questões sobre gerência cotidiana dos munícipes em uma série de disposições organizacionais que buscam intervir nos espaços e modificar o comportamento da sociedade. Eles apresentavam os parâmetros para conduzir a sociedade ao reino do “sonho urbano” de um espaço higiênico, buscando inspirar nos homens, habitantes das vilas e cidades a doutrinação de seus costumes, isto é, civilizá-los.382

É, contudo, no parágrafo 2º que ficaria determinado que a Câmara definiria o

“estabelecimento de cemitérios fora do recinto dos templos, conferindo a esse fim com a principal autoridade eclesiástica do lugar”.383 Se compararmos a carta do Regente de 1801 com a lei de 1º de outubro de 1828 sobre a criação do cemitério, uma diferença fica clara: ao contrário da primeira, o parágrafo 2º da lei de 1º de outubro não especifica que as necrópoles deveriam ser construídas fora das cidades, sendo sua única exigência que o fizessem fora do recinto dos templos, ou seja, fora do espaço interno das Igrejas.

Obter uma interpretação inequívoca sobre a lei de 1º de outubro era complicado, pois se tratava de uma proposição carente de maiores definições, especificidades e limites. Ao dizer onde não queria que se fizesse o cemitério, o governo central não avaliou a abrangência de locais em que não era proibido realizá-los, colocando inicialmente as administrações municipais em constantes dificuldades em fazer cumprir as determinações de suas posturas perante às irmandades. Isso fica mais evidente quando observamos o caso ocorrido com as Ordens Terceiras do Carmo de Ouro Preto, Diamantina e Sabará, das quais obtivemos mais informações em decorrência da existência dos livros de Termos.

No caso da Ordem Terceira de Ouro Preto, no dia 8 de novembro de 1829, a mesa da Ordem Terceira do Carmo se reuniu na casa de despachos para debater sobre a lei recentemente promulgada pelo Império e ainda não editada nas posturas de 1829 da Câmara Municipal de Ouro Preto. A solução acordada entre todos foi para que se fizesse a interrupção do sepultamento dos cadáveres dentro das campas no templo e imediatamente se desse início à construção de um cemitério de catacumbas lateral. Para gerenciar a obra e elaborar o projeto do novo cemitério, foi convidado o arquiteto Manoel Fernandes da Costa. Sua escolha foi em virtude da recusa dos irmãos em permitir o envolvimento da administração municipal ou mesmo colocar os trabalhos para arrematação.384

O procurador da ordem ficou incumbido de administrar os custos com mão de obra, materiais e o trabalho do arquiteto. Seria designado um número de oficiais trabalhadores para

382 APM - Colleção das Leis do Império do Brasil. Decreto de 1 de Outubro de 1828. p. 74-88.

383 APM - Colleção das Leis do Império do Brasil. Decreto de 1 de Outubro de 1828. p. 83.

384 AEPNSP/OP - OTCOP - Livro de Termos, Vol. 0052 - (1784 a 1861) - Verso Folha 97.

No documento universidade federal de minas gerais (páginas 193-200)