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Ordem Terceira em Minas Gerais e suas singularidades

No documento universidade federal de minas gerais (páginas 81-100)

2. FATORES ESTIMULADORES DA PRÁTICA AUTOGESTÃO

2.2. Ordem Terceira em Minas Gerais e suas singularidades

As primeiras associações religiosas leigas surgem na capitania de Minas Gerais no início do século XVIII de maneira incipiente e disseminada pelas áreas de concentração populacional e de inicial formação urbana mineradora. Sequencialmente, solicitavam a aprovação dos seus respectivos compromissos ou estatutos, para exercer assim suas atividades pias fraternais. As agremiações precursoras conservavam oragos de grande apelo popular como Nossa Senhora do Rosário (1712), São Miguel e Almas (1712), Santíssimo Sacramento (1712) e Nossa Senhora do Pilar (1712). Coube, em grande parte, aos leigos a responsabilidade pela construção de suas ermidas e capelas. Os recursos vinham dos devotos ou confrades ou mesmo de doações que, por vezes, eram ofertadas pelo Estado no formato de algumas braças de terra e/ou permissão para esmolarem com o mesmo fim.

Apesar das alegações feitas pelos administradores da Coroa portuguesa contra os religiosos nas Minas, muitos destes foram enviados por solicitação da Coroa, como no caso dos carmelitas da província fluminense, representando, a princípio, uma postura incoerente por parte dos setores responsáveis. Em carta Régia dirigida ao Provincial da Ordem do Carmo do

165 LIMA, Mons. Maurilio C. de. Introdução à História do Direito Canônico. São Paulo: Editora Loyola, 2004. p.

269.

166 Bispo do Rio de Janeiro D. Manoel do Monte Rodrigues de Araújo. Elementos de Direito Eclesiástico Público e Particular em Relação á Disciplina Geral da Igreja e com aplicação aos usos da Igreja do Brasil. Tomo I – Das Pessoas Eclesiásticas. Rio de Janeiro: Livraria Antônio Gonçalves Guimarães, 1857. p. 467.

82 Rio de Janeiro em 1711, D. João V recorda que os Sumos Pontífices Nicolau V, Calisto III, Xisto IV e Leão X deram aos Reis portugueses (predecessores e sucessores) em remuneração aos serviços prestados a Igreja Católica. No caso, ele se refere ao Padroado e reforça a extensão de seus poderes sobre todos os setores da Igreja sobre seus domínios, inclusive, “não só seculares como Regulares, mas também Regulares das Ordens Mendicantes”.167 Ressalta o Monarca que o número de “operários” é diminuto para promover “tão grande ceáras”. De tal forma que ele se sente compelido em escrever uma carta ao Provincial, solicitando que esta seja remetida a todos os conventos sob sua jurisdição, afim de:

admoestar-vos como a bom vassalos, me ajudeis a descarregar nesta parte a minha consciência mandando de vossa Ordem os mais Missionários que puderdes e julgar dispor Ministros idôneos do Sagrado Evangelho naquelas remotíssimas partes, intimando-lhes, que os que não estiverem legitimamente impedidos, devem acudir à extrema necessidade espiritual em que se acham tantos milhares de almas.168

A carta é datada de 13 de março de 1711 e foi escrita em Lisboa, e apenas cinco anos depois uma outra resolução, de igual importância, conclamava missionários para as “Missões das Minas”. O fator mais relevante decorre de esta ser uma resposta a solicitações dirigidas pelos moradores das Minas. Diz o documento:

Dom João por graça de Deos, Rei de Portugal e dos Algarves, d’aquem e d’alem mar em Africa, Senhor de Guiné &c. Faço saber a voz Prior do Convento do Carmo do Rio de Janeiro, que representando-me os moradores das Minas, a falta que tinhão de Parochos para o pasto espiritual, pedindo-me lhos permitisse fundação de três Hospicios no sitio do Ribeirão do Carmo, Villa Real e Rio das Mortes: E tomando sobre es te particular as informações necessárias, me pareceu mandar-voz ordenar por Resolução de 21 do presente mez e anno, em consulta do meu Conselho Ultramarino, que todos os annos elejais dous Reigiosos de exemplar virtude e prudencia, para que vão em Missão ás ditas Comarcas, que lhes forem repartidas pelo Bispo [...] para este efeito se Ordena ao Governador dessa Capitania mandar dar da minha fazenda aos tais Religiosos o Viatico que lhe parecer.169

Os Hospícios a que fez referência são pequenos conventos organizados pelos religiosos do Carmo com objetivo de oferecer moradia em lugares nos quais não existe uma casa

167 LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro, A descorberta e Conquista deste Paiz, A fundação da Cidade com a Hstortia Civil e Ecclesiastica até a Chegada D'El-Rei Dom João VI. Tomo VII. Rio de Janeiro: [s.n.], 1835. p. 92-93.

168 LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro, A descorberta e Conquista deste Paiz, A fundação da Cidade com a Hstortia Civil e Ecclesiastica até a Chegada D'El-Rei Dom João VI. Tomo VII. Rio de Janeiro: [s.n.], 1835. p. 94.

169 LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro, A descorberta e Conquista deste Paiz, A fundação da Cidade com a Hstortia Civil e Ecclesiastica até a Chegada D'El-Rei Dom João VI. Tomo VII. Rio de Janeiro: [s.n.], 1835. p. 95.

83 conventual regularmente erigida, funcionando assim para acolher os seus membros.170 Os locais escolhidos para sua instalação corresponderiam à primeira divisão espacial das comarcas de 1714 no território das Minas – Ribeirão do Carmo, Rio das Mortes e Rio das Velhas. O objetivo era manter a distância espacial com base na divisão jurídica, abarcando regiões economicamente importantes e em franco desenvolvimento. No entanto, não houve a intenção de instalar os hospícios nas cabeças de comarcas, e sim nas primeiras vilas, a de Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, que deu origem à vila de mesmo nome em 1711 - posteriormente a cidade de Mariana; outra fundação foi Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, também elevada à vila em 1711; e o antigo arraial do Rio das Mortes, elevado à vila em 1713 com a denominação de São João del-Rei. Todas as três fundaram, posteriormente, Ordens Terceiras do Carmo, sendo a de São João del-Rei e a de Mariana as primeiras. E, para a realização dessa missão, ficou determinado ao Governador da Capitania oferecer por parte das Fazendas Reais o que fosse necessário pecuniariamente para os religiosos em sua jornada.171 As Ordens Terceiras do Carmo instalaram-se legalmente em São João del-Rei (1746) (FIG. 2), Mariana (antes de 1751) (FIG. 3), Vila Rica (1752) (FIG. 4), Tejuco (1758) (FIG. 5), Vila do Príncipe (1761) (FIG. 6) e Sabará (1761) (FIG. 7 e 8). O sodalício se desenvolveu amplamente nos primeiros decênios de sua existência, granjeando confrades distintos de outras associações leigas. Sua capacidade de agregar fora favorecida pela crença substantiva dos homens católicos na existência do purgatório e na forte presença da economia da salvação. Constituiu-se em importante espaço de sociabilidade, favorecendo o convívio e exercício da fé, adaptando-se bem às variáveis, tornando-se eixo fundamental para a construção social luso-brasileira.

Tinham como princípio a busca pela iluminação espiritual por meio do pilar ascético, exultavam o exercício pleno da virtude, levando os homens e as mulheres, por meio da prática religiosa, do rigor moral e de espírito caritativo, a incorporarem-se no corpo místico e prepararem-se para o remir.

170 BLUTEAU, D. Raphael. Vocabulário Portuguez E Latino. Rio de Janeiro: UERJ, 1712. Vol. 4.

171 Segundo a coletânea documental reunida no trabalho de Balthazar da Silva Lisboa, o envio de freis do convento do Carmo fluminense foi reforçado ainda durante o reinado de Pedro II (1683-1706) para a região do Rio Pomba com o objetivo de catequizar os Coroados. Cf. LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro, A descorberta e Conquista deste Paiz, A fundação da Cidade com a Hstortia Civil e Ecclesiastica até a Chegada D'El- Rei Dom João VI. Tomo VII. Rio de Janeiro: [s.n.], 1835. p. 342; FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d'el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

84 FIGURA 2 – Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo – São João del-Rei.

Fonte: Própria

85 FIGURA 3 – Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo - Mariana

Fonte: Própria

86 FIGURA 4 – Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo –Ouro Preto.

Fonte: Própria

87 FIGURA 5 – Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo –Diamantina.

Fonte: Própria

88 FIGURA 6 – Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo –Serro.

Fonte: Própria

89 FIGURA 7 – Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo – Sabará

Fonte: Própria

90 FIGURA 8 – Mapa contendo as localidades nas quais a Ordem Terceira do Carmo instalou-se durante

o século XVIII. Fonte Própria

Uma das principais premissas para o estabelecimento dos institutos Terceiros comumente apregoada pela historiografia é que se trata de um evento associado ao processo de estratificação social, consequentemente, ligado à presença de um grupo economicamente ascendente e/ou hierarquicamente ocupante de uma posição social superior, como afirmam alguns dos principais pesquisadores e expositores dessas hipóteses, Fritz Teixeira Sales e Caio César Boschi. A confluência de fatores favoráveis para a presença dos Terceiros em Minas – compreendida entre os anos de 1740 até 1780 – foi denominada por Fritz Teixeira Sales como

“Idade de Ouro”, caracterizada por intensas atividades das Ordens, confrarias, tribunais e pelo arrefecimento da extração mineral. A perenidade destes institutos encontra-se justificada pela qualidade dos membros que a integravam, homens de grande cabedal que, às custas de suas rendas, mantiveram o funcionamento dos institutos Terceiros em meio à decadência que já inicialmente se apresentava dentro de outras associações religiosas leigas nas Minas Gerais na segunda metade do século XVIII e início do XIX.

Contudo, acredito que se trate de algo que deve ser repensado com a adição de outras vertentes interpretativas, em que não pesem os determinantes atrelados exclusivamente à condição de estratificação social presentes em apenas seis centros urbanos. Neste caso, Cláudia

91 Damasceno Fonseca apresenta outras localidades no século XVIII em Minas Gerais que se igualavam em importância populacional e econômica àquelas que desenvolveram Ordens Terceiras do Carmo e São Francisco, mas que não esboçaram qualquer sinal da presença desses institutos Terceiros no mesmo período. Dessa forma, não recuso as causas primárias ou hipóteses recorrentes, porém, acredito que há carência de formulá-las junto a outros elementos que considero relevantes, como a devoção, a tradição, as determinações espaciais oriundas da tradição dos institutos Mendicantes e o número mínimo e solicitação formal para erigir uma Ordem Terceira do Carmo.

Começando pelo último, é necessária a presença de irmãos dessa congregação para justificar a criação de uma ordem leiga como a do Carmo. Não se cria organizações Terceiras sem a presença aproximada de 12 a 15 membros para compor a Mesa Administrativa. Com base nessa imposição, devemos pressupor que um dos condicionantes principais era, em primeiro lugar, a existência de homens devotos a Nossa Senhora do Carmo, para, depois, ocorrer seu estabelecimento. Em consonância a esses fatores, deveria haver uma convergência de condições sociais, econômicas e demográficas que permitiriam não somente a presença de Terceiros, mas a própria manutenção de sua existência enquanto instituição com base em seus critérios rigorosos de admissão.172 Dessa forma, o advento de Ordens Terceiras não estava preso à questão de fundação das Vilas, como acontecia com as precursoras confrarias paroquiais e Santas Casas de Misericórdias. Aqui, podemos nos apoiar nas análises de Fritz Teixeira Salles, que observa esse fenômeno como algo posterior à criação das Vilas, provavelmente relacionado à forja das estratificações sociais, debitárias do desenvolvimento das relações econômicas e de uma estrutura hierárquica complexa.173

Então, qual a razão por detrás das localidades nas quais floresceram associações religiosas oriundas de um ramo religioso devocional? Por que em outras paragens não há a mesma recorrência? Se partimos da relação que habitam as afinidades de sociabilidade e coesão grupal que permitem solidificar diferentes indivíduos dentro de uma mesma congregação, então compreenderíamos a força da identidade coletiva manifesta nessas associações leigas como o da devoção à Nossa Senhora do Carmo e, por conseguinte, a Ordem Terceira do Carmo. O espaço citadino ou a urbe do século XVIII é local de múltiplas referências hierárquicas, e as associações religiosas captavam as estruturas relacionais de cada coletividade, agindo como

172 Cf. RUSSEL-WOOD, A. J. Prestige, Power, and Piety in Colonial Brazil: The Third Orders of Salvador. The Hispanic American Historical Review, Duke University Press, Durham, NC, v. 69, n. 1, p. 61-89, fev. 1989.

173 Muitos dos fundadores vieram de regiões de Portugal e contribuíram para erigir o sodalício. Além deles, existem noviços oriundos de outras ordens prestes a fazer sua profissão na Ordem Terceira

92 elementos repetidores e fortalecedores dessas identidades e produzindo a valorização social do indivíduo frente à coletividade, assim como a coesão e o fortalecimento das estruturas sócio- históricas de cada grupo. Por esse motivo, não podemos descartar as hipóteses de estratificação econômica e hierarquização social, porém, temos de ir mais adiante.

A natureza estimuladora da identidade de grupos específicos promovida pelas associações religiosas dentro do seu espaço urbano e de convivência contribui para a existência de ação valorativa simbólica atrelada à ascensão de grupos dentro de sua coletividade na Capitania de Minas Gerais. As associações religiosas executam um abrigo cultural dentro do espaço das urbes, no qual grupos determinados por aproximações étnicas, econômicas e hierárquicas se encontram para reforçar seus elementos identitários frente à força da alteridade e da mudança, ou seja, seria como uma força a moldar-se e resistir à presença de múltiplas interinfluências étnicas e classistas de uma sociedade multifacetada.174

A devoção e a reafirmação da diferença podem ser encaradas como o mote de algumas dessas organizações, principalmente quando seus Estatutos e seus processos investigativos segregam e marginalizam elementos que não condizem com seus interesses de manutenção e reforço das estruturas mentais e materiais classistas equivalentes, estabelecidas pela Mesa Administrativa. Nesse caso, acredito ser plausível que a Ordem Terceira do Carmo funcionava como uma organização preservacionista dessa proximidade identitária frente às diversidades populacionais que contrastam e que se encontravam “misturadas” aos olhares destes, tendo a presença de índios, negros, mulatos, pardos, judeus, protestantes, mamelucos, entre outros. A preservação como tradição, por mais que arrogada pelo silogismo de imutabilidade e atemporalidade, indica justamente o contrário, a capacidade ativa de transportar do passado para o presente, e passiva para recebê-lo. Acredito que ela funcione como um processo comunicativo das experiências, das normas, da religião, dos costumes e dos ritos que são aspectos constitutivos do que é socialmente construído. Assim, dentro dos movimentos comunicativos diacrônicos, a tradição é mutável, ela “experimenta, ao passar pelo processo de se transmitir, alteração na forma, no conteúdo e na função, que repousa no fato de a tradição precisar adaptar-se às relações eventualmente novas. No caso de não ocorrer isso, a tradição se enrijece, tornando-se irrelevante para o processo de vida social”.175

Assim, acredito que as Ordens Terceiras do Carmo refletem a busca por preservação frente à crescente heterogeneidade social – em uma relação com sociedades estratificadas e de

174 BOXER, C. R. O Império Marítimo Português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 286.

175 “TRADIÇÃO”. In: Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. São Paulo: Editora Loyola, 2004.

93 nivelamento social bem marcado. Nesse ponto, coaduno com a interpretação de Charles Boxer quando ele afirma que as confrarias religiosas foram pilares fundamentais do império português ao funcionarem como mecanismo de preservação identitária aprovisionando promoções hierárquicas e isenção social.176 Elas serviram como refúgio cultural para os homens bons da Capitania de Minas Gerais no século XVIII.177

Acrescento, ainda, um elemento que precede o determinante econômico: a preexistente tradição associativa já vivente no local por meio, em primeiro lugar, das transposições culturais decorrentes das imigrações de portugueses para região das minas no início do século XVIII, vindo do norte de Portugal. Se, ao final do século XVII e início do XVIII, o número estimado de portugueses que vieram para a região das Minas era de 100.000, dessa data para frente chegariam a 400.000 aproximadamente – trata-se de um deslocamento em grande quantidade de uma população estimada de dois milhões para a metrópole portuguesa.178 Eles são oriundos quase exclusivamente do norte de Portugal, do Minho, Beira Alta, Alto Trás-os-Montes e até do Açores. Trata-se do mesmo período no qual há o florescimento sem precedente das Ordens Terceiras no Reino – mais precisamente, o decênio de 1730 observara a instituição de vários ramos do braço leigo do Carmelo, compostos tradicionalmente por membros da nobreza, mas, também, por novos estratos sociais originários da elite urbana, tais como negociantes, lojistas e artífices, homens e mulheres que encontram por meio do altar uma alternativa de honra,

“alienando a expectativa de promoção terrena à esperança da vida eterna”, um grupo burguês que investia na moralidade dos costumes e na limpeza da alma.179 Ainda nesse contexto da primeira metade do século XVIII, as devoções marianas são promovidas por um número considerável de associações religiosas, que encontram franca aceitação nas populações portuguesas. Segundo José Ferreira Carrato nas Minas:

176 BOXER, C. R. O Império Marítimo Português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 286;

AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil colonial. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. p. 236.

177 Isso ocorre em decorrência do próprio contexto histórico que motivaria o embate de uma visão tradicionalista confrontante com a realidade. Impulsionaria os estratos sociais a unificar valores equivalentes e a preservar a identidade frente à diversidade social, cultural, política, econômica, espacial e étnica. As vilas e, em menor intensidade, os arrais na Capitania de Minas Gerais, durante a segunda metade do século XVIII, apresentam-se portadores de uma sociedade estratificada, de uma economia diversificada, de estruturas urbanas complexas, com agrupamentos populacionais e estratos étnicos heterogêneos. O resultado é o anseio nostálgico, que remente à procura pela manutenção de suas tradições e valorização das origens como arma para enfrentar influências de qualquer sistema ou sujeito alógeno.

178 Cf. RAMOS, Donald. From Minho to Minas: The Portuguese Roots of the Mineiro Family. The Hispanic American Historical Review, v. 73, n. 4, p. 639-662, nov. 1993; FAUSTO, Boris (org.). Fazer a América: a imigração em massa para a América Latina. São Paulo: Editora Edusp, 1999. p. 13.

179 ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações (1700-1830). Lisboa: Editorial Notícias, 1997. p. 336.

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avulta extraordinariamente a devoção a Nossa Senhora, que é invocada sob todos os títulos (alguns até extravagantes), de alegria e de dor, de ufania e de contradição, e até de certa intimidade toponímica, que comove. [...] é a Virgem Maria humaníssima, mãe como as demais mães, que se abraça ternamente ao seu Menino Jesus, que até o amamenta em seu nicho – como aquela comovedora Senhora do Leite, que vimos na Velha Sé de Braga.180

Por isso, encontraremos a fundação de Irmandades de Nossa Senhora do Carmo antecedendo, em alguns casos, o seu alçamento à Ordem Terceira, como é o caso da Ordem Terceira de São João del-Rei, que se encontrava na condição de irmandade e com planos para erigir sua capela em 10 de outubro de 1732.181 A existência de irmandades de Nossa Senhora do Carmo em localidades como São João del-Rei, no início do século XVIII, é comprovada por Sebastião de Oliveira Cintra, tendo em vista que a irmandade do Carmo recebeu, em 15 de outubro de 1734, a Provisão do Bispo do Rio de Janeiro, D. Antônio Guadalupe, que “concede licença ao vigário da Vara de S. João del-Rei para benzer a capela erguida na Vila (...) pela então irmandade de N. Sra. Do Carmo”.182 Em 9 de setembro de 1746, fora concedido pelo Papa Benedito XIV a regalia de Ordem Terceira à então confraria de N. S. do Carmo de São João del-Rei. Essa transição de irmandade para Ordem Terceira não era incomum no Carmelo.

Balbino Velascos Bayón observa para Portugal a ação não incomum, por parte de algumas irmandades de Nossa Senhora do Carmo, de anteciparem o modelo organizativo e Estatuto dos Terceiros carmelita, e cita um caso ocorrido por volta de 1665, da autodenominação de Ordem Terceira e ação de recepção de irmãos Terceiros por parte da irmandade; porém, só tempos depois ela fora legitimamente organizada.183

Em outros casos, a fundação é dada por separações entre os grupos de Terceiros, como no caso dos confrades de Diamantina e de Sabará. Sua justificativa assenta sobre dois pilares básicos, como a presença de um número elevados de irmãos, o que garantiria, em parte, a possibilidade de se fundar uma nova Ordem Terceira do Carmo na respectiva localidade, e, também, a distância entre o espaço em que residem e um outro, onde se encontra a Ordem Terceira ao qual se filiaram. Cito abaixo parte da carta de aprovação para erigir a Ordem Terceira do Carmo em Diamantina em 22 de maio de 1759.

180 CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1968. p. 32

181 Ordem Terceira do Carmo de SJDR – Termos diversos 26, Verso folha 148;

<http://bdlb.bn.br/acervo/handle/123456789/352086>. Acesso em: 4 mai. 2016.

182 CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemeridades de São João del-Rei. 2. ed. Belo Horizonte: Impressa Oficial, 1982. p. 434.

183 BAYÓN, Balbino Velasco. História da Ordem do Carmo em Portugal. Lisboa: Editora Paulinas, 2001. p. 492.

No documento universidade federal de minas gerais (páginas 81-100)