RES UMO:O artigo trabalha as concepções de Winnicott e Lacan a
respeito do tem po. Em Winnicott, o tem po é pensado no plano da diferença ontológica, enquanto que Lacan privilegia a diferença sexual. Pretendese m ostrar com o essas duas idéias a respeito da tem -poralidade im plicam distintas concepções sobre a constituição subjetiva, assim com o diferentes estratégias clínicas. Com relação ao tem -po, Winnicott será associado ao filósofo Henri Bergson e à sua noção de duração.
Palavras - c have : Tem po, diferença, estratégias clínicas.
ABSTRACT: Winnicott, Bergson, Lacan: tim e and psychoanalysis. This
article discusses Winnicott and Lacan’s conceptions of tim e verifyng its diferents clinical estrategies. Winnicott w ill be associated to Henri Bergson in respect of his notion of duration.
Ke y w o rds : Tim e, difference, clinical strategies.
Psicanalista; doutora em Psicologia Clínica ( PUC-Rio) ; professora do Program a de Pós-graduação em Mem ória Social da UniRio.
Jô Gon d a r
C
om eço com um a questão oriunda da clínica. Um a pacien-te em tratam ento há alguns anos m e diz, em certo m o-m ento da análise, estar descobrindo duas coisas que até então havia tom ado por sim ples e óbvias. A prim eira é que tudo pas-sa; a outra é que os hom ens são diferentes das m ulheres. É um a afirm ação interessante, e m e fez pensar para além do caso par-ticular desta m oça. As duas descobertas falam do reconheci-m ento de ureconheci-m a diferença: tereconheci-m os, de ureconheci-m lado, a diferença trazida pelo tem po — o tem po que faz tudo se transform ar, tudo pas-sar; e, de outro, a diferença sexual — os hom ens são diferentes das m ulheres. Eu m e perguntava então se essas duasdescober-*Este artigo é um desenvolvim ento da palestra “ Tem po e psicanálise” ,
tas não seriam um a só, a descoberta da diferença, realizada a partir de duas vertentes. Mas m e indagava tam bém se um a das duas descobertas não seria m ais básica do que a outra, ou, em outros term os, se um a delas não seria apenas a derivação de um a diferença fundam ental.
Há um a corrente da psicanálise que defende a dom inância da diferença sexual sobre as dem ais: essa m oça só poderia dizer que tudo passa porque des-cobriu que os hom ens são diferentes das m ulheres; desse m odo, a subjetivação do tem po teria com o condição o reconhecim ento da diferença sexual. Há, entre-tanto, um a outra corrente para a qual a diferença m ais im portante não estaria no plano da sexualidade, m as no plano do ser, ou m elhor, na relação entre o ser e o tem po — tudo passa, o que é, deixa de ser, se transform a. Nesse caso, a paciente só poderia adm itir a diferença entre os hom ens e as m ulheres na m edida que se dá conta da diferença que o tem po im prim e nas coisas e nela m esm a: o reconhe-cim ento da dessim etria sexual e da castração derivaria de um a experiência m ais fundam ental com a diferença.
Minha proposta é pensar o tem po a partir dessas duas possibilidades: a pri-m eira afirpri-m a a diferença ontológica copri-m o predopri-m inante; a segunda topri-m a copri-m o eixo a diferença sexual. Daí decorrem , duas m aneiras distintas de pensar a cons-tituição da subjetividade. O interesse deste confronto não é o de descobrir, afi-nal, quem tem razão, quem está com a verdade, m as sim o de discutir as estraté-gias clínicas que estão associadas a essas duas concepções. Em outros term os: pretendem os m ostrar com o diferentes m aneiras de abordar o tem po redundam em estratégias clínicas diferenciadas. Crem os que há sem pre um a idéia sobre o tem po subjacente a qualquer m odo de se pensar e de se praticar a psicanálise, e que é possível enfocar a diversidade entre autores e escolas a partir de suas pers-pectivas sobre a tem poralidade. É claro que o tem a é por dem ais vasto para ser devidam ente aprofundado sob a form a de um artigo. Pretendem os, aqui, cen-trar-nos em dois autores da psicanálise que apresentam divergências teóricas e clínicas com relação ao problem a do tem po, m as m esm o as propostas destes autores não poderiam ser aqui esgotadas. Gostaríam os de focalizar apenas um aspecto de suas concepções: o que relaciona ‘tem po’ e ‘diferença’.
ninguém m e perguntar, eu sei; m as se o quiser explicar a quem m e faz a pergun-ta, já não sei” ( Idem , p.304) .
Santo Agostinho nos indica nossa im possibilidade de form ular um conceito de tem po, ao m enos no sentido clássico — aquele que im plica na definição clara e precisa de algum a coisa. De fato, definir o tem po seria um contra-senso: toda definição pretende dizer o que algo é, a despeito de qualquer m udança. Quando definim os um a coisa, afirm am os aquilo que dessa coisa perm anece invariante, e, desse m odo, a subtraím os do tem po. Ora, se pretenderm os dizer o que o tem po é, terem os que subtrair o tem po do tem po, recusando, no m esm o gesto, aquilo que estam os querendo com preender.
Freud tam bém não deixa de dar razão a Santo Agostinho quando diz que o tem po, em si m esm o, não é representável, assim com o não podem os representar a diferença sexual, nem se representa a própria m orte ( FREUD, 1915/ 1972; 1920/ 1972) . De fato, todas as vezes que tentam os representar o tem po, constru-ím os n ossa represen tação sobre o m odelo do espaço, seja através de u m a quantificação espacial, um espaço percorrido ao qual associam os núm eros — com o no relógio — ou através de im agens espaciais: o rio que corre, a flecha que nada detém . Do tem po, nós podem os ter um a noção, m as jam ais um conceito ou um a definição. Assim , vam os falar do tem po m esm o sem poder defini-lo. Benja-m in ( 1939/ 1999) dizia que o conheciBenja-m ento surge coBenja-m o a luz dos relâBenja-m pagos. O texto é apenas o longo trovão que se segue. É desse m odo que m e proponho a falar do tem po. Nenhum a luz, m as algum as trovoadas.
Voltem os agora à psicanálise. Freud nunca se dispôs a form ular um conceito ou um a definição do tem po. Mesm o assim , o tem po está presente em toda sua teoria. É sobre a base do tem po que se pode pensar em m em ória, em transm is-são, em repetição, em perlaboração, em pulis-são, em invenção, em acontecim ento, em novo. Um a das noções de tem po que atravessam a obra de Freud tornou-se a m ais conhecida — a noção de N achträglich, que podem os traduzir por ‘posterior-m ente’ ou por ‘a posteriori’. Essa noção vai ser o ponto de partida para pensarm os duas m odalidades de tem po apresentadas por dois autores diferentes da psicaná-lise — Lacan e Winnicott.
A escolha desses term os é fruto de duas idéias m uito diferentes sobre a tem -poralidade. A escola inglesa defende a idéia de um a tem poralidade processual, contínua, expressando-se em um desenvolvim ento progressivo. É verdade que esse desenvolvim ento com porta fixações ou regressões, m as elas são considera-das em perram entos de um processo que, em condições favoráveis, deveria se-guir o seu curso. A idéia de um a sucessão de fases ou etapas de desenvolvim ento é bastante característica dessa continuidade tem poral; nesse sentido, um a ação é dita retardada ou preterida quando algo já se encontrava presente, ao m enos em germ e, em potência, m aslevou certo tem po para m anifestar-se ou apresentar os seus efeitos. Subjaz aí a idéia de retardam ento, de dem ora, de espera. É claro que há divergências, m eandros distintos entre alguns analistas ingleses, m as m e pare-ce ser possível m arcar com duas palavras o solo tem poral a partir do qual suas noções de tem po são construídas: processo e continuidade.
A idéia de continuidade ou tem poralidade processual é descartada na tradução francesa do Nachträglich. O termo aprés- coup sugere ‘golpe’, ‘ruptura’, ‘descontinuidade’. Os franceses não valorizam a idéia de etapas sucessivas de desenvolvim ento, m as sim o m odo com o são subitam ente reorganizadas, de m aneira retrospectiva, as posições subjetivas. Se os ingleses defendem a idéia de um a tem poralidade processual, isto é, de um a perm anente m udança no tem po, os franceses privilegi-am os m om entos críticos, as cristalizações capazes de reordenar, num varrido, todas as contingências anteriores ( GONDAR, 1995) . Nesse caso, o tem po se cons-titui a partir de um a série de rupturas. A realidade tem poral não é dada pela duração, m as pelo instante, ou seja, o tem po é fundam entalm ente descontínuo. Trata-se de um a visão estrutural do tem po. O que estabelece diferenças, isto é, o que distingue um ‘antes’ e um ‘depois’ são instantes de subjetivação: um sujeito em erge num átim o, num instante, podendo em seguida desaparecer. Assim , a ênfase não é dada à espera, m as ao que se dá de súbito, num instante privilegi-ado. Podem os m arcar com duas palavras essa concepção de tem po: instante e descontinuidade.
WINNICOTT COM BERGS ON
enfatizando a continuidade. Na verdade, vam os ter que desentranhar da obra de Winnicott um a concepção de tem po, porque esse não foi um tem a sobre o qual ele escreveu de m aneira explícita.
Do ponto de vista do tem po, Winnicott vai com binar duas idéias que, a prin-cípio, parecem antagônicas: a idéia de continuidade — ou seja, o privilégio é dado à duração e não ao instante — e a idéia de heterogeneidade, de diferença. Por um lado, Winnicott vai privilegiar, na constituição da subjetividade, aquilo que ele cham a de ‘desenvolvim ento em ocional’, apresentando-a sob a form a de estágios sucessivos. Com o é que um bebê, que a princípio depende do m eio am biente de m aneira absoluta e não se distingue dele, vai se tornar alguém sin-gular, vai adquirir um si mesmo? É em torno da relação de dependência do am bi-ente que Winnicott vai propor três estágios sucessivos de desenvolvim ento: de-pendência absoluta, dede-pendência relativa e rum o à indede-pendência. A passagem de um estágio a outro não depende de rupturas, m om entos críticos, aconteci-m entos súbitos, aconteci-m as se dá nuaconteci-m a relação de continuidade. Essa continuidade vai ser garantida por um am biente suficientem ente bom , capaz de fornecer susten-tação a um processo natural de desenvolvim ento, um processo que se realiza de m odo im anente. Aliás, seria esta a diferença entre um a concepção estrutural e um a concepção processual da subjetividade. Na últim a, a diferença não se dá entre lugares, já que os lugares são pontos de chegada de um processo; a diferen-ça se dá no próprio processo. Há um contínuo diferenciar-se. Em Winnicott a subjetividade, isto é, a individualidade ( ou a independência) com porta um a in-finidade de graus, de m atizes, e em hom em algum ela se encontra de todo reali-zada. Podem os estar rum o à independência, m as jam ais instalados na indepen-dência com o um estado, um lugar, um a posição definida. Aindividualidade ja-m ais está realizada por inteiro, ja-m as seja-m pre eja-m vias de realização. Vaja-m os agora abordar esta questão por m eio de um a outra entrada nas idéias de Winnicott.
Winnicott é um em pirista. Não está preocupado com leis universais, exterio-res, transcendentes à subjetividade e, com o tal, capazes de organizar o cam po subjetivo. O que vai constituir ou organizar a subjetividade não é nenhum prin-cípio ou razão extrínseca a ela própria — com o, por exem plo, a Lei da castração ou o cam po do Outro — e sim um cam po de experiências. Desse m odo, o que se tom a com o ponto de partida não é o Outro — não existe nenhum Outro prévio — m as a im anência da experiência. E um a dessas experiências é a m ais funda-m ental de todas elas. Aquilo que talvez seja a funda-m ais sifunda-m ples de todas as experiên-cias, diz Winnicott, é a experiência de ser. E o que o ser quer é persistir enquanto tal, isto é, continuar a ser ( WINNICOTT, 1960/ 1965) .
este ser com o um a continuidade. A idéia de Winnicott é que, a partir dos cuida-dos da m ãe, que protege o bebê das invasões e cuida-dos choques do am biente, ele vai adquirindo um a existência própria, experenciando um a continuidade em seu ser. É sobre a base dessa experiência de continuidade que se dá o desenvolvim en-to em ocional, em direção à independência: o bebê traz um potencial herdado que, pouco a pouco, experim entando um a continuidade de ser, vai constituindo um si mesmo independente e diferenciado. Há um ponto de partida do processo, que são as potencialidades de cada um , porém não há um ponto de chegada: o si-m esm o é um seguir-sendo ( LANNES, 1997) . Quando se fala em ser, em está-gios de desenvolvim ento, em constituição de subjetividade, o tem po em questão está sem pre no gerúndio: ser não é apenas existir; ser é seguir sendo, é o proces-so através do qual, sem nenhum a pressa ou nenhum dever, algum as potencialidades vão se desdobrando, se atualizando, ganhando form a.
Este seria o processo de criação para Winnicott. Qualquer criação, seja de um a obra de arte ou da própria vida, é um processo de diferenciação, de atuali-zação de potencialidades, de criação de possíveis. O am biente vai ser visto com o um facilitador ou um dificultador deste processo. A vida subjetiva seriaum pro-cesso de criação, e não da assunção de um a verdade. O tem po em Winnicott seria, portanto, um tem po contínuo, m as consetâneo ao surgim ento do novo, do heterogêneo, da diferença.
Na filosofia, há um pensador do tem po cujas idéias entram num a com unhão bastante forte com as de Winnicott. Não creio que seja Heidegger; esta é a pro-posta de Loparic,1 que realiza um belo trabalho a respeito de Winnicott, m as de
quem , sob este aspecto, vou m e perm itir discordar. Em Heidegger, há um privi-légio do futuro — trata-se de um futuro aberto, de um porvir que se abre para nós a partir da antecipação da nossa possibilidade m ais certa, a possibilidade extrem a do nosso ser, a m orte. Daí a noção heideggeriana de ser-para-a-m orte, que significa ser na m edida que é posta a possibilidade de não ser, sendo o hom em o único capaz de adm itir essa possibilidade ( HEIDEGGER, 1929/ 1978) . Ora, Winnicott tam bém privilegia o porvir, na m edida que enfatiza a criação; contu-do, este porvir não se abre para nós a partir de nossa finitude — não há nada em Winnicott que se assem elhe a um ser-para-a-m orte — e sim a partir de nossa obra em processo, daquilo que inventam os e som os capazes de inventar. Sob este aspecto, o filósofo que m elhor expressaria a concepção de Winnicott sobre o tem po seria Bergson. Três idéias de Bergson, ao m eu ver, perm item sua aproxi-m ação coaproxi-m Winnicott.
1 Os trabalhos de Zeljko Loparic têm sido desenvolvidos no Gr upo de Pesquisa em Filosofia e
A prim eira é a noção de duração, que é o nom e por ele dado ao tem po. Bergson diz que o tem po é criação, ou não é absolutam ente nada. A duração não é pensada com o perm anência do m esm o, m as com o continuidade indivi-sível e criação perm anente do novo. ( BERGSON, 1896/ 1990; 1907/ 1979) . O que há de perm anente, portanto, é a diferença ou a m udança. A duração não é o processo contínuo pelo qual um a coisa se diferencia de outra coisa, m as o processo contínuo pelo qual um ser vai se diferenciando de si próprio. A dura-ção em Bergson se torna um a experiência ontológica, e condidura-ção de todas as outras experiências. Dizendo de outro m odo: enquanto algo dura, esse algo está sem pre se diferenciando; onde pensam os ver um a perm anência, um esta-do, um a fase, o que encontram os, de fato, é um form igar de diferenças. O que há de m ais vital no desenvolvim ento é a continuação im perceptível da m udan-ça de form a.
Mas isso não é algo que se possa apreender através da inteligência, segundo Berg-son. Só podem os apreender a duração, o fluxo do tem po, pela intuição. A nossa inteligência tende a paralisar o devir, e seria um instrum ento m uito grosseiro para apreender a continuidade em m udança ( BERGSON, 1907/ 1979) .
A segunda idéia de Bergson que eu gostaria de m arcar é que a duração, com o processo de diferenciação, não envolve um encadeam ento sucessivo entre passa-do, presente e futuro, m as um processo no qual algo que se encontrava num a dim ensão potencial, virtual, vem a se realizar no presente, a se atualizar. A isso ele cham a de ‘processo de diferenciação’ ou de atualização, isto é, de passagem do virtual para o atual. Essa passagem do virtual para o atual, para a criação de form as atuais, não é realização de um a possibilidade que já se encontrava lá, dada, bastando apenas ser concretizada. Não se trata da concretização de um program a prévio, e sim de um m ovim ento criativo, porque aquilo que se atuali-za não é idêntico à virtualidade que é desdobrada no processo. A própria passa-gem do virtual ao atual já im plica um a criação ( idem ) .
Bergson ( 1896/ 1990) apresenta um a terceira idéia a respeito da duração que m e parece facilitar o entendim ento da proposta de Winnicott. A duração é aquilo que nos perm ite escapar da determ inação pura e sim ples entre estím ulo sensório e resposta m otora, a determ inação pura e sim ples de um arco reflexo. Nos seres vivos se instaura um intervalo de tem po entre um estím ulo e sua resposta; Bergson vai cham ar esse intervalo de tem po de intervalo de indeterm inação. Ou seja, há o estím ulo, m as ao invés de sua resposta im ediata dá-se um entre, um intervalo de indeterm inação, um a experim entação de possibilidades; esse tem po perm ite que o ser vivo escolha criativamente um a resposta entre as possíveis. Este intervalo é um outro m odo da duração, e a ele Bergson vai fornecer m ais um nom e: ‘subjetividade’. Ou seja, subjetividade é tem po, é indeterm inação, é ação retardada. Quanto m ais um ser vivo é com plexo, num a escala evolutiva, m aior será o seu intervalo de inde-term inação — m enos o seu com portam ento será autom ático, deinde-term inado, e m ais chance ele terá de hesitar, esperar, escolher, inventar. Essa indeterm inação, essa perda de tem po é para Bergson a condição da nossa liberdade e da nossa capacidade de criar; trata-se de um tem po no qual as virtualidades, isto é, as pequenas diferenças que ainda não se determ inaram , não ganharam form a, vão ser experenciadas.
experiência cultural são coisas que valorizam os de um a m aneira toda especial; elas reúnem o passado, o presente e o futuro; elas resgatam o tem po e o espaço” ( Idem , p.109) .
Voltem os agora para a paciente sobre quem falei no início, aquela que desco-briu duas coisas na análise: tudo passa e os hom ens são diferentes das m ulheres. Em Winnicott, podem os dizer que a diferença fundam ental diz respeito à ação do tem po no ser, e não à sexualidade. É claro que Winnicott considera a diferença sexual im portante. Im portante, m as não prim ária. A diferença fundam ental não se dá entreduas dim ensões atuais — duas posições subjetivas, dois regim es eró-ticos ou dois m odos de gozo. O que está em questão é um ser que vai diferindo de si m esm o, é um a passagem do virtual para o atual no plano do ser, é um a diferença ontológica. É na m edida que tudo passa — isto é, na m edida que o virtual se atualiza — que os hom ens se tornam diferentes das m ulheres. Mesm o que Winnicott ( 1971b) os distinga relacionando o m asculino ao fazer e o fem i-nino ao ser, é ainda referindo-se ao ser que a diferença é pensada.
O que não deixa de ter conseqüências para as estratégias clínicas por ele propostas. Winnicott forjou essa concepção de tem po porque se deparou com pacientes que precisavam dela — eles precisavam de tem po. As contribuições m ais im portantes de Winnicott provêm de sua experiência com pacientes que não eram clássicos — crianças m uito pequenas, pacientes com sofrim entos psicóticos, psicossom áticos, anti-sociais; esses sofrim entos, com o ele pôde per-ceber, derivavam de um m om ento m uito precoce, quando estes indivíduos ainda eram bebês. Era preciso buscar então na relação m ãe-bebê, num m om ento em que o sistem a de representações ainda não estava construído, o entendim ento e as estratégias clínicas para lidar com esse sofrim ento. Estes pacientes não eram sensíveis ao referencial clássico da psicanálise, assentado nas noções de recalque, Édipo e interdição; para eles não funcionavam as intervenções m ovidas por um a vontade de verdade.
hesitação, espera, experim entação de virtualidades. Caberia ao analista, nesses casos, propiciar as condições da criação.
LACAN
Vam os passar agora do tem po concebido com o duração e processo para o tem po da descontinuidade e do instante, trabalhando com a escola francesa. O privilé-gio do instante, com o já vim os, expressou-se na tradução do N achträglich freudia-no pelo term o francês aprés- coup. Mas foi Lacan quem levou adiante a lógica do
après- coup, erigindo-a com o a tem poralidade própria da psicanálise. É o que nos propõe em seu artigo sobre “O tem po lógico e a asserção de certeza antecipada” ( LACAN, 1945/ 1998) . Ainda que a questão do tem po lógico não esgote a abor-dagem da tem poralidade na obra lacaniana, é sobre ela que vam os nos deter para enfatizar a relação entre tem po e diferença sob a vertente da descontinuidade.
O artigo sobre o tem po lógico apresenta um a inspiração heideggeriana já no próprio título, ao aludir à asserção de um a certeza antecipada. A antecipação de um a certeza é, para Heidegger, condição para a tem poralização: é a partir da certeza da m orte, não enquanto realidade, m as enquanto possibilidade, que o tem po se coloca com o questão para o hom em . Ora, Lacan vai valorizar, da m es-m a es-m aneira que Heidegger, a relação entre o tees-m po e a finitude. Mas vai substi-tuir a finitude absoluta da m orte pela finitude do sujeito. A finitude faz um apelo, convoca o sujeito a se posicionar, a dizer quem ele é. Se m e dou conta de que sou finito, de que não tenho todo o tem po do mundo, é m elhor m e posicionar de um a vez, dizer a que vim , afirm ar logo o m eu desejo. Para Lacan, não sou finito porque vou m orrer um dia e adm ito que esta m orte seja certa — pois isso só diria respeito ao m eu ser, independentem ente de m inha relação com os outros. Sou finito por-que preciso do outro para m e posicionar, porpor-que não m e totalizo, porpor-que não tenho todos os sexos ou todas as cores: alguns carregam discos pretos nas costas enquanto outros carregam discos brancos, e devo m e responsabilizar e m e arris-car pela m inha parte. De fato, não sei qual foi a cor do disco colocado às m inhas costas, pois isso não dependeu de m im ; porém depende de m im afirm ar a m inha condição. E afirm ar a m inha condição é afirm ar a condição da m inha liberdade. Assim , é enquanto sujeito finito, sexuado, incom pleto que m e afirm o.
Tentam os, desse m odo, resum ir a concepção de finitude proposta por Lacan em seu artigo sobre o tem po lógico. Cabe dizer ainda que este tem po apresenta trêsm odulações: instante de olhar, tem po para com preender, m om ento de con-cluir. Porém tão essenciais quanto essas três m odulações são, na lógica lacaniana, as cham adas m oções suspensas — os intervalos de hesitação. No artigo de Lacan, as m odulações tem porais se articulam às hesitações. Em um prim eiro m om ento, vejo tudo o que está dado, toda a situação: vejo o que está fora de m im , vejo os outros, m as ainda não sei quem sou; em um segundo m om ento, realiza-se o trabalho de elaboração: tento com preender ( vale dizer que o tem po para com -preender corresponde ao que Freud cham ou de ‘perlaboração’) e tento m e fazer reconhecer, creio poder dizer quem sou, m as ainda não estou convicto: hesito, volto a olhar os outros e m inha hesitação se articula com a hesitação deles ( os m om entos de parada ocorrem duas vezes, e são as cham adas ‘m oções suspensas’) ; por fim , dá-se a asserção subjetiva: crio coragem para m e posicionar e passo da hesitação para a pressa. Apresso-m e a concluir e, ainda que essa conclusão seja provisória, sou capaz de m e lançar, sem garantias.
O tem po lógico é m uitas vezes associado às sessões curtas praticadas por Lacan, m as isso, em term os teóricos, não seria exato. Para Lacan, o tem po lógico é o tem po do inconsciente, que não pode ser m edido pelo relógio, e não o tem po das sessões. Se existe sessão curta, existe sessão com prida e am bas su-põem um a m edida, um tem po espacializado. Não é o tem po da sessão que é lógico: o tem po das sessões pode ser fixo ou variável. No entanto, nós podem os articular o tem po lógico ao tem po das sessões, não pelo fato delas serem curtas ou com pridas, m as pelo fato delas sofrerem um corte que, para Lacan, produz efeitos de interpretação, precipitando os m om entos de concluir. Se a prática de Lacan tem a ver com o tem po lógico é porque ele cortava as sessões, e não porque as encurtava.2 O sofism a do tem po lógico exige que o sujeito precipite
sua certeza num ato, e é esta dim ensão que rege as sessões de duração variável: o ato do analista, o corte visa apressar o tem po para com preender para precipitar a asserção subjetiva. A hesitação, a espera, devem dar lugar à pressa, num apelo do futuro, num a urgência do m om ento de concluir.
Forrester ( 1990) faz um a análise interessante sobre os m otivos que teriam levado Lacan a praticar as sessões de duração variável, que, ao fim e ao cabo, possuíam um a duração curta. Ele afirm a, em prim eiro lugar, que essa prática foi desenvolvida com o um a espécie de técnica ativa, no sentido ferencziano — na qual Lacan tam bém teria se inspirado ao propor a idéia de ato analítico. Só há um a justificativa para o em prego das técnicas ativas para Ferenczi: é a estagnação da análise. E quando é que essa estagnação tendia a acontecer, na prática de Lacan?
Aí entra a hipótese de Forrester: haveria um a figura tipo para a qual o corte da sessão foi dirigido, um tipo específico de paciente, o obsessivo. De fato, na neu-rose obsessiva o tem po possui um papel im portante: o obsessivo é aquele que dem ora, que duvida, que hesita, que procrastina, que preenche o tem po com atos que não são atos, apresentando um dom ínio estratégico do discurso tão perfeito, tão bem -sucedido que nada de inconveniente poderia acontecer. Abraham ( 1907/ 1927) dizia que as histéricas são aquelas pessoas interessantes para quem sem pre algum a coisa está acontecendo. Neste caso, dizem os nós, os obsessivos são aquelas pessoas para quem nunca está acontecendo nada.
O corte da sessão, com o um a técnica ativa, seria um a tentativa de rom per um conluio entre o cerim onial obsessivo, o analista e as estratégias de postergação que estes pacientes apresentam . O corte seria feito para apressar o período de dúvida, hesitação, silêncio, quando nada acontece. Pensada sob esta ótica, a dura-ção seria entendida com o um tem po de espera destituído de acontecim entos efetivos e afetivos. Se o analista fosse m uito ortodoxo ou correto, ele estaria com pactuando, por sua passividade, com o obsessivo. A função do analista seria a de rom per esse equilíbrio: foi o reconhecim ento dessa dificuldade do obsessi-vo que teria levado Lacan, na hipótese de Forrester, a produzir cortes na sessão, e a encurtá-las. “( ...) naquilo que foi cham ado de nossas sessões curtas ( ...) pude-m os fazer vir à luz nupude-m dado sujeito pude-m asculino fantasias de gravidez anal, copude-m o sonho de sua resolução por cesariana, num prazo em que, de outro m odo, ainda estaríam os escutando suas especulações sobre a arte de Dostoievsky” ( LACAN, 1953/ 1998, p.316) .
Sem dúvida, o intervalo de hesitação ou de indeterm inação no obsessivo não seria, na m aior parte das vezes, criativo: a espera seria sinônim o de procrastinação. Lacan teria inventado um artifício técnico m uito engenhoso para fazer a análise desses pacientes avançar. Criou um a m aquinação nega-entrópica para facilitar a asserção subjetiva e enfrentou m uitas lutas por conta de sua ousadia. Era preciso nadar contra a corrente, e ele o fez. Mas se é próprio da psicanálise nadar contra a corrente, é preciso observar a corrente e ver quando ela m uda de direção. A corren-te hoje não nos perm icorren-te hesitar ou esperar, ela im põe a pressa; os poderes que pretendem controlar a nossa vida tornam o tem po cada vez m ais achatado, os intervalos de elaboração cada vez m ais curtos. Outras configurações subjetivas se im põem na atualidade. Uma figura exemplar: o compulsivo. O compulsivo é alguém que vai do instante de olhar para o momento de concluir sem passar pelo tempo para compreender. O que é que podemos lhe oferecer na nossa clínica? O tempo talvez seja aí um dos principais elementos. Quiçá o principal, com o sugere Derrida ( 1989) : o tem po é a única coisa que se dá.
receber obsessivos, histéricas, m as, na m aior parte das vezes, pacientes com so-frim entos “m istos” que extravasam as catalogações que utilizam os com o ponto de conforto. Lacan e Winnicott são os expoentes m ais radicais, sobre o aspecto do tem po, das vertentes inglesa e francesa da psicanálise, e suas concepções ali-m entaali-m estratégias clínicas ali-m uito diferenciadas: valorizar o espaço potencial, espaço/ tem po de espera, hesitação e experim entação é algo bem diverso de va-lorizar a função da pressa a fim de precipitar a asserção subjetiva. De um lado, a ênfase é dada à duração e ao processo; de outro, ao instante e ao corte. E aqui caberia a pergunta: seria preciso escolherm os um ou outro?
E se não tiverm os que escolher? E se nos m antiverm os num a certa indeterm i-nação? Por que o tem po deveria ter apenas um a im agem — o ponto, o fluxo, a linha, a fonte jorrando, a flecha que voa? Ao escolherm os o ponto, o instante, a pressa e o corte, nossas estratégias clínicas privilegiam a em ergência do sujeito e a assunção do desejo: a questão seria fazer o sujeito responsabilizar-se pelo seu desejo, o tem po estando colocado a serviço da assunção de um a diferença. Ao escolherm os o fluxo, a duração, a espera e a criação, nossas estratégias são m ais condizentes com o estabelecim ento de um holding, com o um cam po de experiên-cias pré-subjetivo no qual um desejo pode se constituir ou ganhar consistência. Nesse últim o caso, a questão tem poral seria m enos a de assum ir um a diferença, e m ais a de fruir um diferenciar-se. Qual desses tem pos seria o m elhor?
O problem a é que estam os acostum ados a pensar o tem po com o um a catego-ria universal, unívoca, m as, na realidade, estam os sem pre às voltas com apreen-sões particu lares e m u ltívocas do tem po. Podem os pen sar o tem po com o m ultiplicidade e a subjetividade com o m ultitem poral ( PELBART, 1998) . Essa m ultiplicidade não evoca um a linha ou um fluxo de tem po, m as um em aranha-do de tem po, um aranha-dobrar ou desaranha-dobrar de m uitas linhas. Nesse caso, porém , o que orientará nossas estratégias clínicas? Com o podem os m anter um fundam en-to no tem po sem nos perder nesse em aranhado m ultitem poral?
Talvez o paciente e o tipo de sofrim ento que ele apresenta sejam a m elhor bússola: privilegiarm os o paciente em tratam ento, m ais do que a filiação a essa ou aquela escola, a essa ou aquela concepção.3 Um a noção sobre otem po
influen-cia, sem dúvida, o m odo de condução de um a análise. Porém , esta análise só tem sentido e vigor se consistir, sim ultaneam ente, no tratam ento daquele paciente em particular e num tratam ento particular tam bém sobre o tem po, podendo diferen-ciar-se em relação a um m esm o paciente e aos diversos tem pos que ele atravessa. Não nos parece absurdo supor que exista um a sobreposição, num m esm o sujeito, de diferentes regim es tem porais, e a sensibilidade clínica do analista seria aqui convocada para avaliar um m om ento de corte ou de espera, de pontualidade ou de
duração. Pode ser im portante recortar o m om ento em que, num fluxo discursivo, o paciente diz algo que é m ais significativo; contudo, em outras situações, um a espera ativa da parte do analista pode ser m uito m ais efetiva do que um a inter-venção pontual. Em sum a, as estratégias clínicas relacionadas aos diferentes m o-dos tem porais podem ser m uitas, tanto quanto as m últiplas tem poralidades que nos atravessam . O aferram ento a um a única perspectiva estaria indicando apenas nossa tentativa de congelar o tem po e de resistir à sua passagem . Talvez, com o propõe Fédida ( 1977, p.439) , possam os dizer que “para o hom em a desilusão em sua acepção de tem po e sua ferida narcísica sejam um a e m esm a coisa”.
Recebido em 5/ 3/ 2006. Aprovado em 24/ 4/ 2006.
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Jô Gondar