A ÉTICA DA PSICOLOGIA CENTRADA
NA PESSOA
*
JOSÉ CELlO FREIRE
**
RESUMO
Uma revisão sucinta da crItica epistemológica da Psicologia e do conceito de Ética enquanto ciência da moral é apresentada. A dimensão ética da Abordagem Centrada na Pessoa.na perspectiva de sua função social e de seu compromisso potrttco, é analisada. Por fim. o desenvolvimento de uma proposta dialética para a ACP. prin-cipalmente na América Latina. é constatado (26 referências).
ABSTRACT
Ethics in Client Centered Therapy (The Ethical Ouestion in Client Centered Therapy)
This article presents a brief revision of an
UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
e p is r e m o lo g ic a lcritic of psychology and the concept of ethics as a science of
morality. The ethical dimentions of Client Centered Therapy are
viewed from the perspective of their social functions and their
political commitments. The formulation of a dialectic proposal
for Client Centered Therapv, specific to the needs of Latin
America. is presented.
INTRODUÇÃO
utsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
A Psicologia, enquanto ciência e profissão, sofre assiduam ente um a crítica que lhe é saudável, m as que lhe im põe, ao m esm o tem po, a necessidade de reso-lução para seus conflitos internos. Se de início a questão é fundam entalm ente epistem ológica, chega, ao final, no que fazer da prãxis psicológica de nossos dias. N este sentido, tanto o objeto desta ciência em ergente - dado que ainda busca seus estatutos - quanto o objetivo da tecnologia que nela se fundam enta devem ser avaliados à luz de critérios éticos e preceitos básicos para a vida hum ana.
* Revisão do trabalho apresentado no 111Encontro Latino da Abordagem Centrada na
Pessoa,em Sapuca(-Mirim-MG, set/86.
Professor do Depto. de Psicologia da UNI FOR e aluno do Curso de Mestrado em Educação da UFC.
A definição de Psicologia que m e interessa neste trabalho é a de estudo do com portam ento dos hom ens em sociedade. Evito, desta m aneira, perder de vis-ta a dim ensão social do com portam ento hum ano, tanto no aspecto em que o com portam ento é caracterizado com o
XWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
d e r e t e ç é o , quanto por ser fruto das re-lações que se estabelecem dentro de um a sociedade dada, com seu m odelo só-cio-econôm ico-pol ítico determ inado historicam ente.D a m esm a form a, o conceito de hom em que convém a este estudo é o de ser concreto, situado historicam ente, criador e transform ador da natureza e de si m esm o, através das relações que estabelece com outros hom ens.
Todo o enfoque será dado em term os de um a análise dialética e histórica da Psicologia, em seu desenvolvim ento enquanto saber sobre o hom em e técnica que visa a um m elhor desem penho deste hom em em sociedade.
A venturo-m e a esboçar um a crítica à A bordagem Centrada na Pessoa' (A CP) a partir de um questionam ento ético fundam ental: sua função social. Co-m o o objetivo prim eiro deste trabalho se deveu à discussão teórica propiciada pelo III Encontro Latino da A bordagem Centrada na Pessoa, corro risco de ser, em m uitos m om entos, superficial e categórico, não sendo esta a intenção que m e levou a escrevê-te. A revisão do texto original, que ora elaboro, tenta acres-centar algo aos estudos críticos atuais que estão sendo desenvolvidos por inte-grantes desta abordagem psicológica, e tal investim ento é apenas o início de um longo processo de recuperação histórica, análise, crítica e proposição acerca da Psicologia Centrada na Pessoa, que se im pÕ e com o tem a para m inha D isserta-ção de M estrado em Educaisserta-ção, pela U niversidade Federal do Ceará. N este estu-do inicial, esta proposta assum e ainda um a form a prim eira de questionam ento da A CP, em seu contexto ético, onde reporto-m e com certa freqüência a estudos elaborados por autores latino-am ericanos, e, em especial, brasileiros, que desen-volvem um rico trabalho de construção teórica da abordagem . .
O desenvolvim ento deste tem a - A Ética da Psicologia Centrada na Pessoa - leva-m e à consideração de posições defendidas por Carl Rogers, em seus traba-lhos aqui representados, e, por outro lado, à constatação de que pessoas reconhe-cidam ente adeptas desta abordagem psicológica têm feito críticas procedentes à m esm a, no intuito construtivo de seu m aior desenvolvim ento e coerência.
Se por um lado detecto a ingenuidade da proposta rogeriana original, em term os éticos e políticos, verifico tam bém o com prom etim ento social cada vez m aior daqueles que se entregam à crítica social da "Terceira Força em Psicolo-gia".
Levanto alguns pontos básicos, durante esta anál ise, a saber, a ausência de crítica ao m odo capitalista de produção, a noção abstrata e individualista de pes-soa, o ilusionisrno de um a revolução social a partir de indivíduos isolados, a ques-tão da consciência, a relação entre Prim eiro e Terceiro M undo, e a opção pelo oprim ido. U tilizo-m e, para tanto, do m étodo m aterialista dialético de análise do real. Chego a adm itir a possibilidade de um salto qualitativo em busca de um a "Psicologia D ialética", m ais coerente com a crítica social e a busca de um a so-ciedade m ais justa, esboçando linhas básicas para tal.
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pág.77-91,
Jan/Jun,1987.
DA PSICOLOGIA
A Psicologia enquanto "ciência" nasceu e se desenvolveu dentro de condi-ções históricas determ inadas, atendendo assim à necessidade de explicação do com portam ento hum ano, em cada época. Para adquirir estatuto de ciência, com duvidoso sucesso, sujeitou-se à filosofia em pirista e ao m odelo positivista de ciência, que então predom inava, tentando reverter para o estudo do com porta-m ento a "objetividade" e a experim entação utilizadas pelas ciências naturais. A o com parar esta influência, Japiassú (1979) coloca:
" ( . . . ) e n q u a n t o c r i s t a l i z a ç ã o d e u m a i d e o l o g i a , o e m p i r i s m o d e s e m p e n h o u e c o n t i -n u a a d e s e m p e n h a r u m p a p e l d e o r i e n t a ç ã o o u d e c a n a l i z a ç ã o n a s i n v e s t i g a ç õ e s d i -t a s c i e n -t í fi c a s d a p s i c o l o g i a ( . . . ) o s p s i c ó l o g o s e m p i r i s t a s s ã o l e v a d o s a s u b e s t i m a r , p o r c o m p l e t o , a s a t i v i d a d e s d o s u j e i t o . " ( p . 2 4 )
Sacrificou, desta m aneira, sua condição de ciência do hom em e seu objetivo de ciência libertária. D esapegou-se da fundam entação filosófica, tão necessária ao desenvolvim ento de um a disciplina independente. V ariaram as abordagens, teo-rias e escolas, fragm entou-se o espaço epistem ológico da nova ciência, sem coe-rência com relação ao objeto de estudo e ao m étodo de investigação. M uitas "psicoleqias" apareceram , cada um a delas defendendo sua condição de ciência e negando às dem ais sua cientificidade. Fechadas a qualquer confronto de idéias que resultasse em desenvolvim ento para a Psicologia, no dizer de D raw in (1985), passaram a defender seus "feudos" teórico-m etodológicos e a se tornar im unes à crítica epistem ológica necessária.
Esta m esm a Psicologia, enquanto técnica, se desenvolveu no sentido de propiciar instrum entos para garantir o controle e a previsão do com portam en-to. O condicionam ento hum ano passa a ser explicado e aperfeiçoado "cientifi-cam ente", oferecendo condições m ais favoráveis de aplicabilidade. M erani (1917) denuncia que a tecnologia psicológica e a Engenharia H um ana vêm utili-zar, na prática, o arsenal tecnológico da Psicologia - esta ciência que passa a ser-vir, não ao hom em , que se liberta pela consciência, m as ao sistem a que o explo-ra, o aliena de si m esm o e de seu trabalho. A preocupação m aior é com a eficá-cia e não com a ética do trabalho com o ser hum ano.
Esta crítica à Psicologia toca m ais de perto, em alguns m om entos, a Psico-logia Com portam entalista, dada a sua filosofia praqm ático-utilitarista, a sua op-ção visível pelo observável e controlável e o seu desprezo pela consciência em prol da eficiência. M as não tardaram , tam bém , os questionam entos acerca de outras abordagens que, de um a form a ou de outra, têm contribuído para um a visão individualizante, adaptativa, desconectada com a crítica sócio-histórica e
com as questões básicas da ciência ética ~
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* A esse respeito ver LOPEZ (1982), FONSECA (1983) e LEITÃO (1984), que
elabo-ram uma crítica da Abordagem Centrada na Pessoanessalinha.
DA ÉTICA
utsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
A ntes de m e aventurar a tecer com entários de ordem m ais específica à A CP, é im prenscindível que m e detenha na conceituação da Ética enquanto ciência do com portam ento m oral dos hom ens. A ~tica, nesse sentido, é o estu-do sistem atizaestu-do do com portam ento de relação do hom em . O hom em é um ser social no sentido em que sua individualidade é produzida no seio de condições sociais objetivas e não com o indivíduo isolado, condições estas inerentes ao
conjunto de relações sociais. Com o reflete Séve (1972):
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" ( . . . ) o s h o m e n s s ã o e m ú l t i m a a n á l i s e p r o d u t o s d a s r e l a ç õ e s s o c i a i s ( . . . ) M a s , s e e l e s p o d e m s e r p r o d u t o s d e s t a s r e l a ç õ e s ,é p o r q u e e s t a s , l o n g e d e I h e s s e r e s t r a n h a s ,
c o n s t i t u e m s e u p r o c e s s o d e v i d a r e a l ( . . .
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l " ( p . 171).A lém disso, suas relações se estabelecem no plano da práxis, da atividade hum a-na prática que se desenvolve na sociedade, em determ inado m om ento de seu desenvolvim ento histórico. Sua essência é o trabalho, a transform ação da na-tureza e de si m esm o através do viver criativo e produtivo. Sobre o conceito de práxis, diz-nos V azquez (1977):
" ( . . . ) a t i v i d a d e r e a l , o b j e t i v a , m a t e r i a l d o h o m e m , q u e s ó éh o m e m - s o c i a l m e n t e -e m -e p -e l a p r á x i s ( c o m o s e r s o c i a l p r á t i c o ) ( . . . ) ( p . 7l .
O hom em produz coisas e, ao produzí-Ias, produz relações sociais com outros ho-m ens. E a diho-m ensão ho-m oral deste processo é o efeito que tais relações provocaho-m so-bre os outros hom ens, grupos e sociedade com o um todo. O estudo deste com -portam ento m oral é objeto da Ética, que se pretende objetivo e crítico. O agir social dos hom ens se desenvolve historicam ente, variando de sociedade para so-ciedade e de época em época. Para cada m om ento histórico ou para cada organiza-ção social e m odelo de produorganiza-ção, vam os encontrar um com portam ento m oral es-pecífico e sua justificação (doutrina ética) teórica. D esta form a, o m aterialism o histórico (K . M arx) se coloca com o um instrum ento de análise para o estudo do com portam ento m oral dos hom ens em sociedade.
*
E é dentro desta perspectiva que pretendo analisar a questão ética ligada a A CP.À nossa realidade, enquanto país de Terceiro M undo, dependente, capita-lista e subdesenvolvido, corresponde um agir social onde determ inados princípios m orais podem ser identificados: a significação do ter, institucionalizada na pro-priedade privada; o com portam ento social egoísta e individualista, expresso na com petição e concorrência, latente ou m anifesta; a prim azia do hom em autôm a-to, retratada na preocupação m aior com a tecnologia, são exem plos de nossa for-m a invertida de valoração. D e ufor-m plano antropocêntrico de valorização, onde o hom em é visto com o essência abstrata, passa-se para o dom ínio do "horno te c-nologicus". Convivem os com a degradação hum ana, a fom e, a m iséria, a
carên-Esta perspectivaéadotada por VAZQUEZ (1984).
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Rev. de Psicologia, Fortaleza, 5 (1): pág. 77-91, JanjJun, 1987.cia de condições m ínim as para a sobrevivência, as guerras, sem que isso venha a se constituir num obstáculo à corrida tecnológica para fins bélicos e de controle
social, principalm ente das grandes potências. Em term os m orais, nosso com por-tam ento tem m uito que desenvolver-se, no sentido de um m aior com prom eti-m ento social.
O ra, a questão ética perpassa a crítica ao sistem a de produção capitalista, onde o trabalho e o trabalhador são explorados, o capital é favorecido, há acu-m ulação de bens por uacu-m a acu-m inoria e os pobres ficaacu-m cada vez acu-m ais pobres. A so-ciedade de classes trabalha com interesses antagônicos e conflitos que lhe são inerentes, e que im possibilitam objetivos com uns e com partilhados. É para tal sociedade que a psicologia vende seus serviços, torna-se m ercadoria, tam bém , é utilizada em benefício da m anutenção do s t a t u s q u o . V em servir não aos opri-m idos, opri-m as aos opressores, não ao trabalho, m as ao capital. A relação de depen-dência se estabelece em term os de im portação de teorias psicológicas, dos países do Prim eiro M undo para nós, da A m érica Latina. Fabricadas pela e para a classe m édia desses países e condicionadas à sua cultura, são transpostas para nossa realidade, outra, cujas necessidades são tanto distintas quanto inconciliáveis. Fonseca (1983) nos esclarece m ais sobre esta questão:
" A a b o r d a g e m c e n t r a d a n a p e s s o a s u r g i u c o m o u m a p r o d u ç ã o d a c l a s s e m é d i a a m e r i
-c a n a . T r a n s p l a n t a d a n o s p e t s e s d o t e r -c e i r o m u n d o , r a d i c o u - s e p r a t i c a m e n t e i n e l t e r e d e e i n q u e s t i o n a d a n o ( n o s s o ) m e i o d a c l a s s e d o m i n a n t e o u d e c l a s s e s a s e u s e r v i ç o . c o n -t r i b u i n d o fr e q ü e n t e m e n t e c o m o s p r o p ó s i t o s d a a l i e n a ç ã o . " ( p . 4 7 )
Pois bem , a A CP é um exem plo desse fenôm eno.
DA ABORDAGEM CENTRADA
NA PESSOA
A proposta inicial da A CP esquecia por com pleto o hom em social em favor do hom em · individual. Tal ponto de vista foi claram ente exposto por Leitão (1985a) :
" D i a n t e d e s s a l i m i t a ç ã o o r i g i n a l , a A b o r d a g e m C e n t r a d a n a P e s s o a , a o c e n t r e r - s e n a
p e s s o e - i n d i v t d u o , e s t a r i a n e g l i g e n c i a n d o r e t e ç õ e s s o c i o - p o t i t i c s s , c e r e c t e r i s t i c e s d e
u m s i s t e m a s o c i a l d e c l a s s e s q u e , e v i d e n t e m e n t e , e x i s t e m e n t r e e s s a s p r ó p r i a s p e s -s o a -s , a u m n i v e t m a i -s a m p l o d e fe n ô m e n o s o c i a l " . ( p . 7 ) .
Ingênua se m ostra, então, por ver a dim ensão polrtica no indivíduo e u t o t a l que, "tornando-se pessoa", viria a provocar a m udança social para um sistem a m ais justo e hum ano. Críticas pertinentes têm sido form uladas a esse respeito e cons-tata-se, cada vez m ais, a eficiência ideológica (dom inante) que tal abordagem po-de trazer ao esterilizar o hom em do contexto sócio-histórico em que vive e transform a.
*
Sobre tais críticas ver LOPEZ (1982), FONSECA (1983) e LEITÃO (1984).
o
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poder de transform ação social está na pessoa, m as não na pessoa-indi-víduo, e sim na pessoa-ser social. A m udança advém , além da transfor~ação do m odo e dos m eios de produção da sociedade, da conscientização social acercadas m azelas originárias das estruturas, e das lutas que se travam , no seio da
socie-dade, para reverter tal situação, Este processo se dá, basicam ente, nas relações de trabalho e produção entre os hom ens, m esm o que possa se desenvolver tam bém no contato individual e coletivo (grupal) dos trabalhos psicológicos. N ão queira a psicologia se im aginar prom otora da transform ação social: é apenas um a das várias form as de atuar sobre as consciências em busca da libertação do hom em .
M erani (1977) já nos previnia disto:
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" M a s n ã o fa z e m o s d a i n d e p e n d ê n c i a d a p s i c o l o g i a s i n ô n i m o d e l i b e r t a ç ã o . ( . . . ) A l i b e r d a d e s e r á a t i n g i d a p e l o e x e r c í c i o p l e n o e l i v r e d e t o d a s a s c a p a c i d a d e s h u m a
-n a s q u e s e r e s u m e m p e l a a ç ã o n a h i s t ó r i a . N e s s e c a m p o t ã o v a s t o e c o m p l e x o d a s
c a p a c i d a d e s e a t i v i d a d e s d o s e r h u m a n o , o p s í q u i c o é a p e n a s u m a s p e c t o ( . . ' l " ( p p . 8 1 - 8 2 ) .
A A CP deve resgatar o social do hom em e vinculá-Io à realidade prática e ao contexto das relações sociais de produção, tarefa que urge à toda a
psicolo-gia. N ão o hom em - essência abstrata, m as o hom em concreto, historicam ente
situado, datado, criador e transform ador da natureza e das relações sociais. Q uando Carl Rogers (1977) denuncia a acum ulação de bens e a
contradi-ção entre pobres e ricos, não faz a crítica da sociedade capitalista. A penas se detém nas conseqüências indesejáveis que tal sistem a produz, sem deduzir que
elas lhe são inerentes. Ele não questiona esse m odelo econôm ico, com o se a pessoa revolucionária que ele vislum bra não fosse fruto das próprias
contradi-ções internas do sistem a ~ Toda m udança, seja ela revolucionária ou não, passa
pelo indivíduo, pois são os individuos que se com portam , pensam , sentem e agem . M as este indivíduo é um produtor-produto social, pressionado pelas cir-cunstâncias, instituições e grupos dos quais participa (pertinência) ou deseja
par-ticipar (referência).
É
tam bém um ser histórico, situado no tem po, datado, que vive um m om ento específico. E, não podem os esquecê-Io, é um ser concreto,real, não-abstrato, envolvido em relações cotidianas de trabalho e luta pela so-brevivência física e psicológica. Porém , não é um indivíduo isolado da sociedade com o um todo, a sua condição é de relação, fruto de contingências sociais. A s
pessoas dependem um as das outras em todas as situações da vida. Por isso, torna-se inusitada a descrença de Rogers nos m ovim entos organizados, para que se
fa-ça a revolução. V ejam os suas próprias palavras (1977):
" A c r e d i t o q u e e s t a r e v o l u ç ã o n ã o a d v i r á d e q u a l q u e r m o v i m e n t o o r g a n i z a d o e d e
g r a n d e s p r o p o r ç õ e s , ( . . . ) m a s d o s u r g i m e n t o d e u m n o v o t i p o d e p e s s o a , q u e b r o
t a r á d a s fo l h a s a g o n i z a n t e s , a m a r e l e c i d a s e p o d r e s , d e n o s s a s i n s t i t u i ç õ e s e v e n e s c e n
-t e s . " ( p . 2 1 3 ) .
Convergem para esse ponto as idéias tratadas por FONSECA (1983\ e LE IT ÃO
(1984).
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privadas. M as a revolução social, a m udança nas estruturas econôm icas e de po-der, não ocorre pela sim ples vontade pessoal e individual, m as por m eio de lutas cotidianas dentro das instituições sociais, políticas e econôm icas.
Concordo com Rogers quando diz que as instituições existem para as pes-soas, e não o inverso (Rogers, 1977). M as não exatam ente para os indivrduos, e sim para a com unidade hum ana, para todos os hom ens de um a dada sociedade,
nação ou para todo o m undo. E quando se propõe a "hum anização" das institui-ções existentes, corre-se o risco de torná-Ias um pouco m ais "agradáveis", sem
m odificar seus objetivos e interesses, em geral ligados a pequenos grupos. Em m uitas situações, é a instituição com o um todo que m erece ser m odificada e dar
lugar a um a outra form a de organização, em decorrência de m udanças sociais m ais am plas. Entretanto, as m udanças podem ser, e na m aioria das vezes o são,
graduais e lentas, quando não sofrem pressão extrem a nos m om entos de "pico"
de estrangulam ento de um determ inado m odelo social. N estas ocasiões, há rup-tura e um conseqüente salto qual itativo, haja vista a passagem do sistem a feudal
para o capitalism o. N ão obstante, as próprias contradições internas, que as insti-tuições encerram , geram o potencial de m udança. Sim plesm ente negá-Ias, sem
superá-Ias com novas form as institucionais, é cair na anom ia de um a sociedade inviável para o convivio hum ano, pois nela tudo vale e tudo é possível.
Para que ocorra a possibilidade de m udança, se faz necessária, num prim
ei-ro m om ento, a tom ada de consciência da situação. M as Rogers é vago ao tratar a questão da consciência. A pesar de visualizá-Ia com o consciência interna e exter-na, não é preciso quando diz que deve estar "em sintonia com o fluxo
evolucio-nário direcional", em busca da totalidade, da lnteqraçâo, da vida unificada. Pare-ce transm udar sua "tendência (organism ica) atualizante" do plano individual pa-ra o social, m as não é claro em sua conceituação (Rogers, 1979). A liás, se puder-m os topuder-m ar com o exem plo deste m odelo o que ele propõe com o paradigm a para
a "pessoa revolucionária", nos depararem os com a consciência ingênua, alijada da real idade pela ideologia do dom inante, pessoa essa que, segundo ele, "discor-da radicalm ente da sociedade com unista, que controla o pensam ento e o com -portam ento individuais em nom e do Estado" (Rogers, 1977). Épena que Rogers, com toda a sua lucidez, não consiga perceber, pelo desvelam ento do real, que seu pensam ento e com portam ento não estão im unes à interferência do sistem a que teim a em não condenar.
Consciência significa estar consciente de, ter conhecim ento de algo, e, nu-m a visão dialética, pode ser consciência em si e para si. O ra, os hom ens na
socie-dade capital ista fazem parte de classes determ inadas, com interesses distintos e contraditórios. A dquirir consciência, neste caso, significa perceber que se insere
num a classe, que se distingue de outras, que existe um a relação básica capital-trabalho e se identificar com sua posição
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( c o n s c iê n c ia e m s i) . A lém disso, pode tom ar consciência de sua im portância nesse processo social e histórico, de com opode intervir nele enquanto cidadão organizado com outros de sua classe e
co-m o deve buscar a transforco-m ação para um a situação m ais hum ana e igual itária
UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
( c o n s c f e n c ia p a r a s i) , Tom em os M erani (1977) a título de com plem entaçãodo nosso pensam ento:
" ( _. . ) a m e m ó r ia e s t á n a b a s e d a c o n s c iê n c ia in d iv id u a l o u d e c la s s e , m a s ( . . . )
lim it a - s e a c r ia r u m a c o n s c iê n c ia e m s i,
yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
*p r o d u t o d a s c ir c u n s t â n c ia s . A c o n s c iê n -c ia p a r a s i* - c a p a c id a d e d e d e c id ir , e s c o lh e r , m o d if ic a r - s ó é a d q u ir id a q u a r . d ot e m a r a z ã o c o m o c a t a liz a d o r . " ( p . 5 4 )
E m ais adiante:
" A r a z ã o ( . . . ) n ã o n o s m o s t r a o q u e * s ã o a s c o is a s e p o r q u e 's ã o a s s im , m a s f a z - n o s t o m a r c o n s c iê n c ia d e q u e e x is t e m
XWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
" e ,o q u e é m a is im p o r t a n t e , e m q u e m e d id a e x is -t e m p a r a " n ô se p o r " n e s s e c a u s a ."l p . 54).
É condição necessária, para tanto, estar-se em relação com outros hom ens, para que se possa perceber o jogo de interações e interesses que se expressam na vida concreta do trabalho.
Em Fonseca (1983), vam os encontrar o questionam ento da postura de Rogers, no sentido de um posicionam ento pol ítico vago. Rogers não se perm ite visualizar o contexto das relações dos países do Prim eiro e do Terceiro M undo. E isso interfere na aplicação da A CP no Brasil, dado que a existência de diferen-ças sócio-culturais, econôm icas e políticas im pede, felizm ente, seu transplante a-crítico para a nossa realidade. É tanto que Fonseca propõe um a "desarnerica-nização da A CP".
* *
Rogers reporta-se a um processo geral de atualização do potencial hum ano, sem relação com o processo histórico-social concreto. Sua posição é, portanto, idealista e personalista, favorecendo, desta feita, aos propó-sitos da alienação.***
U m cam inho para a A CP é buscar o processo de tom ada de consciência e de atualização do potencial existente na pessoa enquanto ator, transform ador e construtor do m undo e de "sua" história, segundo Fonseca. N esse sentido, co-m o taco-m béco-m se refere Leitão (1984), a partir do conceito de G oldm an, a pessoa será vista não só com o indivíduo em suas singularidades particulares, m as com o sujeito "transindividual", m ediador de relações sociais m ais am plas. V ejam os co-m o esta questão foi colocada noutro co-m oco-m ento (Leitão, 1985):
" R o q e r s . a o e n f a t iz a r a d im e n s ã o in d iv id u a l d a p e s s o a , e s q u e c e s u a d im e n s ã o t r e n s in -d iv i-d u e t , s u a d im e n s ã o s o c ia l, d im e n s ã o e s t a q u e e s t á d ir e t a m e n t e lig a d a a u m a d a d a r e a lid a d e , c a r a c t e r iz a d a p o r u m s is t e m a s o c ia le s p e c i t i c o d e e s t r u r u r a d e c la s s e s ." ( p . 1 TJ.
• em itálicos no original.
•• para maior aprofundamento ver FONSECA (1983l.
••• sobre a questão da alienação ver MERAN I (1977) e CaDa (1985).
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D esta form a, Leitão (1984) propõe "um a A bordagem Centrada na Pessoa histó-rica, na pessoa concreta inserida num a sociedade de classes, produtora e produto de um a sociedade de produção." O ra, isso é m ais do que criticar a posição roge-riana. É propor um novo objeto de estudo para a Psicologia. ~ sair de um a pro-postá individualista de ser hum ano para abranger a dim ensão social que lhe é inerente (dim ensão transindividual). A lém do m ais, o conflito, negligenciado por Rogers, é assum ido em sua existência concreta tanto no indivíduo, em suas rela-ções e em sua natureza, com o nos grupos sociais e na sociedade com o um todo. E escam oteá-I o ou reduzir sua significação não é um a tarefa honrosa para a Psicologia. Tom em os de em préstim o os argum entos de Leitão (1{J84), a esse res-peito:
" P a r e c e , n o e n t a n t o , q u e R o g e r s n ã o c h e g aap e r c e b e r a im p o r t â n c ia d o c o n f lit o n a n a t u r e z a h u m a n a , a p a r t ir d a t e n s ã od i e l é t i c e e n t r e a t e n d ê n c ia c o n s t r u t iv a e n e g a t i-v a d o h o m e m . " lp . 5 3 )
E:
" ( . . . ) e s s e lim it e d a A b o r d a g e m C e n t r a d a n a P e s s o a ,q u e s e m a n if e s t a n a c o n c e p ç ã o o t im is t a e u n ila t e r a l d e n a r u r e z a h u m a n a , s ó s e r á u lt r a p a s s a d o p o r u m a v is ã od i e l é t i -c a d o h o m e m e m s u a r e a lid a d e s o c ia l c o n c r e t a , r e a lid a d e e s s a c a r a c t e r iz a d a p o r c o n -f lit o s d e c la s s e . " ( p . 5 5 )
A pesar da im portância do conflito com o tem a da teoria psicológica, escuso-m e de aprofundá-Io neste trabalho, podendo fazê-Io em outro m om ento.
Contudo, há um m om ento em que a A CP precisa fazer um a opção. Se pela pessoa do opressor ou pela do oprim ido, pelo capital ou pelo trabalho. E é este conflito que se interpõe à prática psicológica, que leva à revelação da ideologia que a justifica. Este se constitui no m om ento político da atuação do psicólogo, enquanto cientista, educador ou profissional da psicologia. Leitão, porém , hesi-ta em tom ar partido pelo oprim ido quando decide por centrar-se na relação (1984), senão vejam os:
" ( . . . ) c e n t r e r - s e n a p e s s o a d o o p r im id o ir á a u x iliá - I o ae n c o n t r a r o c a m in h o d e lu t a c o n t r a a s c o n d iç õ e s d e o p r e s s s o e m q u e v iv e " . ( p . 8 3 ) .
E adiante:
" ( . . . ) C e n t r s r - s e a p e n a s n a p e s s o a d o o p r im id o n ã o é, n o e n t a n t o , s u f ic ie n t e , p o is d e ix a r ia d e la d o u m d o s p ó lo s d ia / é t ic o s d a r e la ç ã o o p r e s s o r - o p r im id o , o o p r e s s o r " . { p . 8 4 ) .
M ais adiante, ainda:
" ( ) u m a o p ç ã o d i s t é t i c « d e A b o r d a g e m C e n r r a d a n a P e s s o a d e v e r á c e n r r a r - s e n a r e la ç a õ o p r e s s o r - o p r im id o , n u n c a , n o e n t a n t o , f a c ilit a n d o o 's t e t u s q u o ' d o o p r e s s o r , m a s , a o c o n t r á r io , in t e r v in d o , q u a n d o n e c e s s á r io , p a r a a r u p t u r a d a o p r e s s ã o , a u x i-lia n d o o o p r im id o a m o b iliz a r s e u s r e c u r s o sd i s p o n í v e i s " , ( p . 8 4 ) .
A m eu ver, a opção pelo oprim ido não nos conduz, por ilação, à negação da rela-ção dialética opressor-oprim ido. Pois esta não é um a opção de análise ou de m é-todo, e sim um a opção política, de ação. E tal opção polrtica pode ser feita se acreditam os na crítica da sociedade capitalista com o injusta, opressora, discrim i-nadora e produtora de desigualdades, e se crem os, tam bém , na possibilidade de um a outra form a social, onde as oportunidades sejam sem elhantes e as necessida-des sociais básicas sejam atendidas por todos, Se esta crença existe, não com o dogm a de fé m as com o conseqüência racional do devir histórico, pode ser um m otivo justo para optarm os enquanto profissionais, cientistas e cidadãos pelo la-do da relação que detém o potencial de provocação de m udança - o oprim ila-do. V ejo, tam bém , que se se busca a transform ação da realidade subjetiva e objetiva
e a consciência crítica do contexto de opressão social, com o coloca Leitão
yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
(1984), tal conscientização leva fatalm ente à necessidade de um posicionam en-to dentro da práxis efetiva de cada um de nós, poissó a com preensão não basta e é incôm oda. Em sua proposta de trabalhos com grupos, fica clara a relação que, estabelecida entre a vivência pessoal, a vivência grupal e a vivência social, gera a consciência crítica pela inserção da realidade social no contexto do gru-po e sua repercussão ao nível da pessoa (Leitão, 1985 b). Porém , volto a ques-tionar se a tom ada de consciência, sem um a opção ideológica definida, leva à m udança social desejada, e quais os lim ites e possibilidades do grupo, seja ele de sala de aula ou de psicoterapia, para tanto: se por ser um agrupam ento de pes-soas de distintas classes (ou de classe socialm ente privilegiada), ou se por não ter a dim ensão da sociedade com o um todo, em suas com plexas inter-relações. Co-m o coloca D raw in (1985). corre-se o risco de confundir grupo com classe social ou sociedade.
DA ÉTICA DA PSICOLOGIA CENTRADA
NA PESSOA
Tentarei, agora, retom ar a questão a que m e propus ao definir a tem ática deste trabalho. Renovo a colocação anterior de que a ética perm eia a análise da sociedade em que se vive. Portanto, questiono a m oral capital ista ou burgue-sa, que pode ser facilm ente justificada, com o doutrina ética. por princípios "hu-rnanistas" individualizantes e abstratos. O hom em que se com porta m oralm ente é um ser concreto, histórico e social, e a sociedade em que vive determ ina, atra-vés de suas instituições e estruturas, a form a com o deve ser tratado. A ciência, e se tom am os a Psicologia com o tal, não está im une às influências dos interesses do Estado ou do sistem a econôm ico, pois é um produto do m esm o hom em social e das condições sociais existentes. N ão podem os esquecer de onde se originaram a m aioria das teorias e práticas psicológicas, as relações de dependência econôm i-ca e cultural no nosso Terceiro M undo em relação ao Prim eiro, a eficácia da A CP no contexto capital ista de classe m édia norte-am ericana. Prom over a pessoa, som ente enquanto indivíduo, distancia-a de sua dim ensão social, é dispor de um instrum ento de alienação tão poderoso quanto as m odernas técnicas de
condi-86
Rev. de Psicologia, Fortaleza, 5 (l):pág. 77-91, Jan/Jun, 1987.UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
I
cionam ento psicológico, ou, quiçá, a prom etida tecnologia genética. A questão do q u e f a z e r e c o m o f a z e r é im portante para qualquer intervenção social, m as não podem os esquecer o p a r a q u e m f a z e r - o opressor ou o oprim ido, o capi-tal ou o trabalho - e o p a r a q u e f a z e r - se para a transform ação social, em bus-ca de um a sociedade m ais justa, ou para a m anutenção do "status quo".D raw in (1985), em seu artigo sobre Ética e Psicologia, além de rem ontar à questão da fragm entação epistem ológica da Psicologia, salienta a "incom unica-bilidade de posições" entre as abordagens atom izadas. Sua análise se detém em três niveis básicos: o técnico, o teórico e o prático. N o prim eiro m vel, historia a busca de legitim ação cientifica da Psicologia, a exacerbação da eficacidade em detrim ento de um referencial teórico com um respaldado criticam ente, a questão da tecnologia psicológica e, um a questão fundam ental, o "fetiche da vivência". D esejo m e alongar nesta últim a constatação, a de que a Psicologia se entregou a um em pirism o grosseiro e ao carism a da intuição, com o bem o disse D raw in
(1985), a partir de D idier D elleule. N este sentido, a psicoterapia é o m elhor exem plo de um a técnica sem o apoio teórico consistente de que necessita e que assum e as m ais variadas form as, sem que se possa ter, criticam ente, um a avalia-ção de sua eficácia e um controle sobre seus efeitos colaterais.
A ssistim os, aqui no Brasil, a um a proliferação de abordagens psicoterápi-cas, im portadas dos países do Prim eiro M undo e aplicadas à nossa realidade, sem um a avaliação de sua coerência com nossa cultura e descom prom etidas com os nossos objetivos de transform ação social. A A CP passou por um a situação se-m elhante, porém , não sem tem po, está sendo revista pelos seus aplicadores bra-sileiros e, de um a form a m ais am pla, pelos profissionais e teóricos latino-am eri-canos.
É
um trabalho árduo e conflitante, haja vista relatos da experiência de autores com o V irginia Leitão e A fonso Fonseca, já tratados neste trabalho, e Jam es D oxsey (1983) em seu trabalho de cunho sociológico sobre os dilem as da A CP em sociedades em transição. O reconhecim ento da necessidade de contex-tualização, bem com o da preocupação com as im plicações sociais da A CP no Ter-ceiro M undo, são pontos convergentes desses estudos. Para tanto, tornou-se irn-prescindivel a troca de experiências e a elaboração de trabalhos teóricos nesta área, proporcionada pelos encontros de profissionais e estudiosos desta aborda-gem . O Encontro Latino da A CP, já em sua terceira versão, dem onstra isto de form a perem ptória e, m ais ainda reforça a idéia de que sem a crítica teórica per-tinente não se produz ciência nem prática profissional confiáveis e com prornis-sadas com a realidade social. N este aspecto, acredito estar a A CP em busca da su-peração do "feitiche da vivência", no entender de D raw in, e vise, cada m ais, a um a elaboração crítico-m etodológica e epistem ológica da abordagem , que não poderá esquecer-se do aspecto ético que lhe é inerente.N um segundo nível, o teórico, D raw in expõe a priorização do m étodo (po-sitivista) sobre o objeto, a incom unicabil idade intelectual entre as abordagens que se desconhecem ou se hostilizam e a esterilidade do decisionism o epistem o-lógico - onde a opção teórica é injustificada - que pode levar à "anarquia con-ceitual" e à reprodução banal do senso com um . Ele parece ter razão ao falar da
ausência da critica e do debate entre as diferentes abordagens, o que resultaria
num diálogo necessário ao desenvolvim ento cientifico e num "consenso racio-nal" aproxim ado. Porém , as abordagens fecham -se em si m esm as, defendem a todo custo seus "guetos teóricos", digladiando-se num a luta em nenhum m om en-to dialógica, onde se tende a anular o outro, a desconsiderá-Io e a se negar
qual-quer unidade possivel de ser constatada. Realm ente, acredito ser um a tarefa das m ais inconseqüentes buscar esta unidade epistem ológica dentro das psicologias que ai estão. M as o m ovim ento inverso talvez fosse m enos ilusório: partir de um a Psicologia nova, epistem ologicam ente coerente, e aproxim ar dela todas as abordagens já desenvolvidas, de form a m ais ou m enos sistem ática, em torno des-ta unidade que deve integrar o pensam ento psicológico. Em tal m ovim ento,
al-go do que existe seria negado e outro tanto seria transform ado ou incorporado a esta verdadeira ciência psicológica. N este prism a, o objeto de estudo uno da
psicologia seria o ser hum ano em sua natureza social, prática e histórica
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( M a r x ) e seu m étodo o dialético em seus princípios fundam entais: a negatividade, asunida-des sujeito-objeto e teoria-prática, a contradição, a m udança universal e a
inter-dependência recíproca, a negação da negação e a passagem da quantidade à
qua-lidade.
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*N um terceiro llI'vel, ainda segundo D raw in, a práxis social da Psicologia
(em sua dim ensão ética e pol ítica,lé questionada em relação à ética profissional. R.efere-se a~ ".ranço corporativista:' e à evidente tentativa de preservação da dig-nidade profissional do Código de Etica dos Psicólogos. Salienta a im potência dos Conselhos de Psicologia frente à questão ética, dado que esta é "apenas tangen-cialm ente jurfdica" e atravessa toda a problem ática psicológica, do técnico ao prático, devendo interferir de form a efetiva no processo de seleção, legitim a-ção e validação de teorias. É neste m om ento que, se se parte do pressuposto de que não há teoria ou prática neutras, a questão ética torna-se decisiva para a acei-tação ou não de qualquer abordagem psicológica, em seus aspectos teóricos, téc-nicos ou da prática social. M esm o que o objeto da Psicologia seja visto com o o
indivíduo, no dizer de D raw in "a sociedade se rem ete aos individuos que a cons-tituem ", logo, este indivíduo (consciência ou com portam ento) é um ente ideoló-gico, o que faz com que a ética esteja em butida na teorização psicológica.
Tom ando com o exem plos paradigm áticos desta questão as posições de
Skinner e Rogers, D raw in deduz do prim eiro um a com preensão da sociedade co-m o engenharia com portam ental e não com o participação política
(indivíduo-com portam ento; polrtica-coaçãol. e do segundo, um a concepção de sociedade com o grupo, salientando a ingenuidade política (individuo-consciência; indiví-duo-I iberdade).
D etenham o-nos um pouco m ais em Rogers. A sociedade capitalista, por
exem plo, não é um grupo coeso de intenções e objetivos, nem o será sem que se m odifiquem radicalm ente as estruturas econôm icas, políticas e sociais - o que a tornaria um a nova form a de organização social. N o seu bojo, estão em luta
* Exposição destes princípios em BROHM (1979).
88 Rev. de Psicologia, Fortaleza, 5
(1):
pág. 77-91, Jan/Jun, 1987.classes com interesses antaqorucos, em relação de poder desigual, que tem co-m o conseqüência a discrim inação, a opressão e a sujeição de um as em relação a
outras. Seria ingênuo adm itir, a partir de um a revolução pessoal dos indivíduos, a consecução social em torno de objetivos com uns, sem que fosse superada esta
condição pela organização e luta de classes, revertendo a direção e o sentido do desenvolvim ento capitalista. Parece-m e que a concepção rogeriana evoluiu do in-dividual para o grupal, m as não chegou à dim ensão social da vida hum ana. E che· gar lá talvez exija a m odificação e transform ação de princípios que nortearam
até agora esta visão de hom em e de prática social, seja ela educacional ou psicote-rápica. M as o m ovim ento incessante do devir exige a negação e a superação de al-go que fica para trás.
Se tom am os a Psicologia em sua inserção no âm bito das ciências que visam à "em ancipação hum ana "(D raw inl, com o "Psicologia Libertaria" (Japiassú) ou com o "Psicologia da Libertação" (M erani), esse salto qualitativo da teorização, da técnica e da práxis sócio-psicológica deve ocorrer na busca deste hom em m ais inteiro, individual e social, sujeito e objeto, criador e transform ador da natureza
e das relações que estabelece com outros hom ens, pelo trabalho. D este m odo, ruo m am os para um a "Psicologia D ialética" que já se esboça em trabalhos com o os
de Séve - "M arxism o e teoria da personalidade", G onzález-Serra - "Teoria do reflexo, dialética e psicologia", Leontiev - "A tividade, consciência e personali-dade", Rubinstein - "O ser e a consciência", H iebsch e V orw erg - "Introdução
à psicologia social m arxista", e m uitos outros. Sintetizando, convém citar Séve
(1981):
" ( ... ) o
UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
s e r d o s h o m e n s n ã o p o d e s e r e n c o n t r a d o d ir e t a m e n t e n o t e r r e n o d a P s ic o -lo g ia , n o s e n t id o o r d in á r io d o t e r m o , m a s n a q u e le d o m a t e r ia lis m o h is t ó r ic o . " ( p . 169) *Porém , a ciência m arxista das relações sociais não só não im pede com o
exi-ge que se volte ao conhecim ento cientlfico dos individuos hum anos e das
for-m as concretas de suas vidas, pois tais relações são relações entre os hom ens es-tes, em contrapartidas, são produtos dessas relações.
* *
A ntevejo para a Psicologia um futuro onde, para conseguir um a unidade
epistem ológica e real izar sua condição de ciência social, as abordagens
atualrnen-te existentes sofrerão um a revisão teórico-m etodológica a partir de um a visão dialética e crítico-social. A A CP, por seu turno, já cam inha num a direção
irrever-sivel, a m eu ver, de questionam ento crítico de seu conteúdo teórico e de sua
práti-No or iqinal: •• ( '" )
i'
être des hommes ne peut pas être rencontré directement surle terrain d'une psychologie, ausens ordinaire du terme, mais sur celui du maré
rialisme historique .",
Neste sentido, Séve (1981) refere-seà essência humana como o conjunto das relações
sociais, anterior a existência de cada indivíduo.
ca efetiva. E em nenhum m om ento' este cam inho deixa de ser
XWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
h u m a n i s t a , no sen-tido em que este term o denota o com prom etim ento com a transform ação socialpara um a sociedade m ais hum ana, justa e igual itária. N o dizer de Séve (1981):
UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
" ( . . . ) o s h o m e n s s ã o e m ú lt im a a n á lis e p r o d u t o s d a s r e la ç õ e s s o c ia is - oq u e n ã o f a z d e f o r m a a lg u m a 'd e s a p a r e c e r ' a lib e r d a d e • ~ m a s a o c o n t r á r io f á - I a a p a r e c e r n o q u e e la c o n s is t e e m s u a r e a lid a d e , e s o b r e oq u e e la s e f u n d a m e n t a : s o b r e a n e c e s s id a d e h is t ó r ic a . " ( p .
yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
171) •••CONSIDERAÇOES
FINAIS
M enos com o conclusão e m ais com o srritese deste estudo prelim inar acerca
da Ética da Psicologia Centrada na Pessoa, tento agora arrolar as críticas básicas abordadas neste texto.
Cabe à ciência, e m ais especificam ente à ciência psicológica, dar continui-dade à discussão epistem ológica e à crítica da função social da Psicologia. Para
que tal procedim ento resulte em efeitos benéficos, se faz m ister um a fundam en-tação filosófica coerente, que sirva de base a um a ciência do hom em que vise ao bem social. Este cam inho conduz fatalm ente à necessidade de um objeto de
es-tudo uno e real, que só irem os encontrar no hom em concreto, histórico e
pro-dutor. Tal disciplina carece de um m étodo de apreensão da realidade que leve em consideração as contradições do hom em e da sociedade, e o m ovim ento que diri-ge todos os fenôm enos, e em especial os fatos sociais. O que m e leva a crer que o m aterialism o histórico, em sua visão dialética do m undo, satisfaz tais exigências.
A té agora, a Psicologia tem percorrido cam inhos tortuosos que, apesar de buscar o desenvolvim ento hum ano, acaba por com pactuar com a opressão do ho-m eho-m através da alienação e do controle social. Serviu m ais aos sistem as
políticos-econôm icos do que à libertação do hom em , que deveria ser a m eta irrem ovível de seu trabalho.
A A CP, com o todas as form as de Psicologia, não se furtou às exigências da
sociedade, enquanto instrum ento de justificação ideológica de estruturas dom i-nantes. Ingenuam ente om itiu-se da responsabilidade social que im pera em
qual-quer form a de atividade hum ana, estando por longo tem po sem perceber a
di-m ensão sócio-política do com portam ento dos hom ens. Tendeu, desta form a, pa-ra um a visão individual izante, onipotente e benevolente de pessoa, que resultou num a prática sociai (educacional, organizacional e terapêutica) desconectada da
realidade.
Felizm ente, o próprio desenvolvim ento da A CP nos países latino-am
erica-nos levou ao confronto, com a vida concreta dos hom ens, as propostas originais
grifo meu.
••• No original: " ( ... ) Ias hommes sont en derniére analyse produits par les rapports
sociaux - c e qui d'ailleurs ne fait nullement 'disparaitre' Ia liberté, mais au
con-traire fait apparaltre en quoi elle consiste dans sa réalité, et sur quoi elle se fonde: sur (a nécessitéhistorique."
90
Rev. de Psicologia, Fortaleza, 5 (1): pág. 77-91, Jan/Jun, 1987.de Rogers. E tal crítica tem se m ostrado capaz de estabelecer novos rum os para a abordagem que pretende ser hum anista, e que para tanto não poderá se exim ir
de ver o hum ano no hom em : sua dim ensão social e criadora. M as este m om ento não está longe: a Psicologia m archa inevitavelm ente para o confronto com a
reali-dade, para um a proposta dialética, para um com prom isso com a transform ação social. D esta form a reencontrará seu hum anism o, sua razão de ser enquanto
ciên-cia do hom em .
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