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Os títulos que fizeram a minha cabeça

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Academic year: 2017

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G E T U L I O

Julho 2008

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niciei minha vida acadêmica fa-zendo duas graduações: Direito, na Universidade de São Paulo, e Letras, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Depois de um ano cursando Letras, porém, me decepcionei um pouco. Não era exata-mente o que esperava. Por isso mudei para Ciências Sociais, na própria USP. Também me decepcionei com o curso de Direito, mas gostei muito de alguns professores. José Eduardo Faria e Tér-cio Sampaio Ferraz Júnior realmente marcaram. Àquela época, participei do Programa Especial de Treinamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PET/CA-PES). E cada vez mais me interessava por Filosoia. Acabei cursando algumas disciplinas em Ciências Sociais, mas não sabia ao certo se me formaria ou não. Na verdade, não era o ponto mais importante para mim. Importante era cursar as disciplinas mais interessantes. Acredito ter sido uma boa decisão. Digo sempre aos meus alunos que é bobagem fazer duas graduações, apesar de eu mesmo ter feito, porque a maio-ria das pessoas inscritas em dois cursos raramente se forma em ambos. Mas é curioso veriicar que muitos alunos ain-da pensam ser preciso uma inscrição re-gular para freqüentar um curso na uni-versidade, quando, na verdade, uma das idéias mais interessantes é justamente

freqüentá-la em todos os espaços. O fato é que, cursando Ciências Sócias sem determinação absoluta em concluir o curso, acabei freqüentando mais livre-mente vários outros, como o de Lite-ratura Grega. Fiz todas as disciplinas optativas. E, dessa forma, fui migrando paulatinamente para a Filosoia.

Perseguia as matérias mais interessan-tes. Se o fantástico professor Gérard Le-brun ministrasse um curso sobre Aristó-teles, por exemplo, certamente estudaria Aristóteles. Se o curso fosse sobre Fou-cault, aprenderia Foucault. Além disso, tive professores que me encaminharam para um tipo de especulação teórica. A obra de Max Weber me foi apresentada pelo professor Gabriel Cohn.

Soletrando Wittgenstein

Em Filosoia houve livros simples, mas importantes, como A Religião de Platão, de Victor Goldschmidt. Num primeiro momento, tomei contato com esse livro na Faculdade de Direito, com o professor Tércio Ferraz. Um livro mui-to interessante, uma espécie de introdu-ção geral. Outro importante em minha formação foi o clássico Aristóteles, de W. D. Ross.

Os professores e livros mais marcan-tes são aqueles que oferecem uma espé-cie de roteiro de pesquisa. Ou seja, não é somente o conteúdo substantivo, mas também o abstrato, as idéias propostas, os

Por Ronaldo Porto Macedo Júnior

O promotor de Justiça do Estado de São Paulo, professor

Ronaldo Porto Macedo Júnior, revela os interesses: da filosofia

clássica ao encanto com as vanguardas

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caminhos sugeridos. O professor José Ar-thur Giannotti, meu orientador de mes-trado, foi uma dessas pessoas. Conheci-o durante a graduação, enquanto participa-va do projeto PET/CAPES – havia uma dissertação ao inal do curso. Giannotti concordou em trabalhar comigo. E, após ler minha iniciação cientíica, me orientou a trabalhar com Lógica. Disse também para me preparar, pois ele daria um curso na pós-graduação sobre o Trac-tatus, do Ludwig Wittgenstein. Confes-so ter tomado um susto, nem sequer havia concluído a graduação. Naquela época, Filosoia para mim eram Aristó-teles, Platão, Nietzsche. Não sabia nem soletrar Wittgenstein. Ele também me deu textos e um livro de Gottlob Frege, um matemático alemão, além de outro livro chamado Logic and Knowledge, do Bertrand Russel.

Comecei a ler tudo aquilo muito apli-cadamente, mas não entendia nada! Fi-chava os livros e brigava com os textos... Até que fui atrás de Luiz Henrique dos Santos, um especialista em Wittgens-tein. Naquele momento, inclusive, ele trabalhava na tradução fantástica que fez do Tractatus, e ministrava um curso so-bre o livro. A partir daí icou melhor. Eu conseguia entender o que ele falava.

Essa lição me deu um clique: para alguns assuntos em Filosoia há uma porta de entrada certa. É algo impor-tante, mas demorei a entender. Se uma pessoa comprar o Tractatus numa livra-ria, por exemplo, levá-lo para casa e ten-tar ler, não aprenderá nada, será inútil! É diferente de tentar ler um livro de

Aristóteles ou Descartes – talvez a pes-soa não entenda tudo, e certamente não entenderá, mas o resultado não será nulo. O Tractatus é resultado zero se alguém não lhe apontar qual é a ques-tão. A partir do estalo, iz outros cursos em Filosoia – a maioria em Lógica e Filosoia da Linguagem.

Outro ponto importante foi realmen-te a Filosoia clássica, especialmenrealmen-te a questão da metodologia de leitura ilo-sóica. Tive outro professor extrema-mente importante na minha formação chamado Oswaldo Porchat, um dos ilósofos mais destacados da USP. Es-pecialista em ceticismo, ele dava cursos sobre David Hume. Pessoas como Por-chat, Giannotti e Lebrun reforçam uma visão na qual acredito piamente: para estudar Filosoia é necessário dominar bem alguns autores.

Sempre repito para os meus alunos: é mais importante ler os clássicos do que se apegar a um livro qualquer intitulado “História da Filosoia”... Obviamente é importante ter uma visão histórica da ilosoia do pensamento e, em algum momento da vida, ler essa história de cabo a rabo. Mas é fundamental ler au-tores com os quais, e a partir dos quais, possamos pensar questões contemporâ-neas. David Hume certamente foi um desses autores.

Reconciliação com o Direito

Outro autor impactante: Michel Foucault, especialmente sua obra As Palavras e as Coisas. Foi também por meio de um curso que tive acesso ao

pensamento de Foucault, e com um livro fantástico chamado L’État Provi-dence. Em português seria “O Estado Providência”. Já insisti com várias edito-ras para que o traduzam, mas nenhuma se entusiasma – o livro é grande. Escrito por um ex-assistente do Foucault, cha-mado François Ewald, é uma espécie de análise foucaultiana do Direito, das transformações do Direito moderno. Um livro importante porque, de alguma forma, estabeleceu uma espécie de pon-te possível entre o Direito e a Filosoia.

Como disse há pouco, eu fazia o cur-so de Direito, mas não gostava. Às ve-zes brinco: ia lá para fazer prova [risos]. Embora estudasse, não tinha uma forte ligação com a faculdade. E quanto mais me entusiasmava com Filosoia, menos me interessava por Direito. Tinha uma visão muito polar: ou as questões eram discutidas seriamente, em profundi-dade, com rigor acadêmico, ou eram debatidas pelo mundo da retórica, do discurso vago, rebarbativo. Claramente, eu apostava na linha mais crítica, estava cético e mal-humorado com a Faculda-de Faculda-de Direito.

O curso do professor Lebrun sobre

L’État Providence foi interessante por-que apresentava a análise de um ilósofo, também formado em Direito, sobre as transformações da racionalidade jurídica no direito da responsabilidade civil. Ou seja, um tema básico e elementar em termos de Direito. Não era uma discus-são abstrata do conceito do Direito. Não! Era responsabilidade civil. Um estudo sobre como os acidentes de trabalho na

Tive acesso ao pensamento de Foucault com um livro fantástico, L’État Providence, escrito por um ex-assistente dele, François Ewald. Se tiver que escolher um único diretor, seria Stanley Kubrick. Clarice Lispector li ainda na escola, mas nada com o mesmo impacto que tive ao ler A Paixão Segundo G. H.

OS TÍTULOS

QUE FIZERAM

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França do inal do século XIX e uma série de transformações sociais tinham impactado a racionalidade jurídica uti-lizada pelos tribunais franceses na inter-pretação – e a relação desses fatos com o conceito ilosóico. É um livro bem grande, são cerca de novecentas páginas, mas é delicioso. De alguma forma, o li-vro me mostrou um campo interessante para ser explorado com o Direito. L’État Providence me despertou para uma nova forma de ler autores juristas.

Pelas lentes foucaultianas consegui enxergar uma ruptura no modo de pensar – formas de racionalidade di-ferentes. Assim, inclusive, encontrei o tema de minha dissertação de mestrado. Inicialmente havia proposto algo sobre Carl Schmitt. Mas, antes de me deci-dir inalmente por ele, passei por outros temas. Na época o mestrado era muito mais longo. Hoje as pessoas demoram cerca de dois anos e meio. Eu demorei sete anos – o que é inviável para os pa-drões atuais. Para o bem ou

para o mal, mudei de tema várias vezes: passei pela ilo-soia moral de Hume, houve algum entusiasmo com Witt-genstein, mas era preciso sa-ber muita lógica e matemáti-ca, cheguei até a escrever um paper de conclusão sobre o Foucault... Por im, retornei ao Schmitt, mas demorei a encontrar a questão-problema.

A leitura de L’État Providence me levou a uma série de outras leituras, in-clusive outras obras do Foucault. Mas depois de trabalhar alguns temas do Carl Schmitt percebi um momento de mudança importante no pensamento dele: uma transição nos anos 1930. Ele era famoso pelos manuais. Digamos que a vulgata dele seja “um autor decisionis-ta”. Aconteceu algo interessante: defendi minha dissertação em 1993, numa época especialmente difícil para os meios de pesquisa, pré-internet, pré-computador... Não tínhamos todos os textos aqui no Brasil. Quando alguém ia para a Eu-ropa, pedíamos para tirar xérox [risos]. Em determinado momento, me caiu nas mãos uma tradução italiana antiga do Schmitt, um texto sobre os três tipos de pensamento jurídico. Lendo, cons-tatei: “Aqui o Schmitt diz com todas as letras que houve uma mudança no

pen-samento dele”. Houve, digamos assim, um ponto de inlexão. Assim encontrei o tema para a minha dissertação.

Gosto pelas vanguardas

Tive um professor de História da Arte durante o colegial chamado Amaury Sanchez. Também lecionava literatura – ele era fascinado por Gui-marães Rosa e James Joyce. Lembro-me de uma frase dita por ele numa das au-las: “A grande ruptura com a literatura romântica se dá com Ulisses, de James Joyce”. Claro, fui atrás do livro e li a tra-dução do Antônio Houaiss. E comprei vários outros porque era difícil. Como era paródia da Odisséia, fui ler Odisséia, iz cursos de literatura grega. Sempre gostei de literatura, mas iquei absolu-tamente encantado. Ainal, o que era literatura moderna?

De alguma forma, encontrei a porta para a literatura das vanguardas. Fantás-tico. Para mim signiicava uma maneira

nova de fazer e de pensar a criatividade e a escrita literária. Na minha época, líamos apenas literatura nacional. Nada contra! Mas eram escolhas chatas. Hoje não existe um preconceito tão grande com a literatura internacional. Fico en-cantado com as possibilidades de leitu-ra do meu ilho, por exemplo. Quando olho para trás, percebo o quanto aquilo era transgressor, subversivo. E vinha acompanhado de um aparato de legiti-mação: as vanguardas! Os concretistas foram uma espécie de chave de leitura, não só para literatura mesmo, mas até para artes plásticas. Ulisses realmente me encantou. Depois li outras obras do Joyce, como Dublinenses e O Retrato do Artista Quando Jovem, mas nada me deu aquela sensação.

Havia lido Clarice Lispector ainda na escola, Laços de Família e A Hora da Estrela. Mas não havia tido o mes-mo impacto que tive ao ler A Paixão

Se-gundo G. H. Curiosamente, estava nos Estados Unidos fazendo o doutorado quando o li. É um discurso vertiginoso, te deixa sem fôlego. Clarice Lispector tem uma escrita única. Não é uma es-crita descritiva, parece parafusar os neu-rônios diretamente. Da mesma forma, já tinha lido contos fantásticos do Gui-marães Rosa, mas nada tão fantástico quanto Grande Sertão: Veredas. Foram poucos os livros que li tantas vezes...

A primeira vez que li Ulisses, me sen-tia decifrando algo – o vocabulário era esquisito, estava motivado para decifrar. Em certo sentido, a Clarice Lispector me mobilizava mais, pois havia uma entrada menos intelectualizada, menos de decifração. A autora é muito provo-cativa. É certamente criadora de uma das obras mais fantásticas da literatura brasileira. Como também Grande Ser-tão: Veredas, absolutamente vertiginoso em algumas passagens. Cada frase faz pensar, evoca sensações, relexões. Mas são obras que devemos ler no momento em que tivermos a cabeça aberta para receber a linguagem, o estilo dos au-tores. Entendo que alguém comece a ler e ache chato. É preciso maturidade.

Também aprecio as van-guardas em música e cinema. Infelizmente, muitas obras excelentes não foram digita-lizadas. Comprei vários LPs de Arnold Schoenberg e John Cage... Adorava ou-vir, tentando entender, com a paciência de quem quer entender o signiicado das coisas. O ilme Julieta dos Espíritos, por exemplo, dirigido Fellini, foi para mim um desses casos enigmáticos. Era possí-vel vê-lo como espécie de relato biográi-co, os delírios de Fellini. Tinha também a mudança das cores durante o ilme, os cenários da Julieta começavam rosa, ter-minavam mais vermelhos... Meu cineas-ta predileto é Scineas-tanley Kubrick. Se tiver que escolher um único diretor, seria ele. Assisti a seus ilmes mais antigos, ainda não conhecia todos. Cito O Iluminado, Full Metal Jacket e mesmo esse último,

De Olhos Bem Fechados. Kubrick é fantástico, um gênio – com inúmeros e diferentes estilos. Essas são algumas das minhas referências.

(pela transcrição: Camila Mamede)

Clarice é provocativa e criou uma

obra fantástica. Como Guimarães

e seu

Grande Sertão: Veredas

,

absolutamente vertiginosoem

algumas passagens

Referências

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