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Um texto identitário negro : tensões e possibilidades em Cajazeiras, periferia de Salvador (Bahia)

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

Nelma Cristina Silva Barbosa

UM TEXTO IDENTITÁRIO NEGRO:

Tensões e possibilidades em Cajazeiras, periferia de Salvador

(Bahia)

SALVADOR 2009

(2)

UM TEXTO IDENTITÁRIO NEGRO:

Tensões e possibilidades em Cajazeiras, periferia de Salvador

(Bahia)

Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós - Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia.

Orientadora: Profª. Drª. Marinyze Prates de Oliveira

SALVADOR 2009

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Sistema de Bibliotecas - UFBA

Barbosa, Nelma Cristina Silva.

Um texto identitário negro : tensões e possibilidades em Cajazeiras, periferia de Salvador (Bahia) / Nelma Cristina Silva Barbosa. - 2009.

278 f. : il. Inclui anexos.

Orientadora: Profª. Drª. Marinyze Prates de Oliveira.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Comunicação, Salvador, 2009.

1. Negros - Salvador (BA) - Identidade racial. 2. Cultura afro-brasileira. 3. Salvador (BA) - Periferias urbanas. I. Oliveira, Marinyze Prates de. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Comunicação. III. Título.

CDD - 305.89608142 CDU - 316.356.4(813.8)

(4)

BANCA EXAMINADORA

_________________________________

Prof. Dr. Wilson Roberto de Mattos

_________________________________ Profª. Drª. Lindinalva Silva Oliveira Rubim

_________________________________ Profª Drª Marinyze Prates de Oliveira

(5)

NELMA CRISTINA SILVA BARBOSA

UM TEXTO IDENTITÁRIO NEGRO:

Tensões e possibilidades em Cajazeiras, periferia de Salvador

(Bahia)

Recebida em: __________/_______________/_________ Aprovada em: __________/_______________/_________

ORIENTADORA: PROFª. DRª. MARINYZE PRATES DE OLIVEIRA

Salvador 2009

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Aos meus irmãos Júlio César Silva Barbosa (Cáca) e Fernando Lemos Barbosa Júnior (Linho) pelas nossas andanças no mundo que motivaram o aprendizado nas formas do amar e do viver.

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...A Marcílio Santana Marcelino e Fernando Lemos Barbosa Júnior (Linho) pelo bálsamo que foram na minha vida em momentos de muita dor. Essas duas presenças me ancoraram e me sustentaram quando me faltaram forças e vontade de viver.

A Flávio José Barbosa, Hildonice Batista e Marilene Santana da Cruz, pela simplicidade e profundidade espiritual das palavras, gestos e atitudes; pelo amor que me ensinam a vivenciar.

A Blanch Mantel, pelo apoio mais do que profissional.

A Taíze Santos, Júnior e Paula Emanuele Novaes pela transcrição das entrevistas e pela paciência comigo nos momentos de tensão.

A Marinyze Prates de Oliveira pela generosidade, acolhida e estímulo. A solidariedade e disciplina dessa professora foram fundamentais para a concretização dessa dissertação.

A Wilson Roberto de Mattos, Ana Fernandes e Paulo César Alves pela atenção, cuidado e valiosas sugestões a esse trabalho.

Às lideranças comunitárias de Cajazeiras, especialmente Kilson Melo e Maísa Flores, que me ensinam outras formas de ser Salvador.

A dona Nininha e Lúcia Soares, pela confiança e carinho. Elas caminham ao meu lado desde a França e estão entre meus principais alicerces na vida. Merci beaucoup!!

A Lécio Mota e Antônio Mateus, “intelectuais da Residência Universitária”, pelos enredos dramáticos e hilariantes que me aliviavam o cansaço.

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a mudança da realidade de Salvador.

A Márcia Mignac, por me orientar no cuidado com o meu corpo quando a mente não mais o suportava. Voltar a ser artista foi essencial para retomar o processo criativo acadêmico.

À torcida formada pela legião de amigos que fiz nos caminhos por onde enveredei, a saber: São Paulo, Bahia, Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Rio de Janeiro, França, Itália, Alemanha, Portugal, Irlanda, Argélia, Líbano, Cuba, Estados Unidos...Todos estão presentes espiritualmente nesta dissertação.

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Quando você for convidado pra subir no adro Da Fundação Casa de Jorge Amado

Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos

De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos

Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos)

E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos

E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados E não importa se os olhos do mundo inteiro

Possam estar por um momento voltados para o largo Onde os escravos eram castigados

E hoje um batuque um batuque

Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária Em dia de parada

E a grandeza épica de um povo em formação Nos atrai, nos deslumbra e estimula

Não importa nada: Nem o traço do sobrado Nem a lente do fantástico, Nem o disco de Paul Simon Ninguém, ninguém é cidadão

Se você for a festa do Pelô, e se você não for Pense no Haiti, reze pelo Haiti

O Haiti é aqui O Haiti não é aqui

E na TV se você vir um deputado em pânico, mal dissimulado Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer Plano de educação que pareça fácil

Que pareça fácil e rápido

E vá representar uma ameaça de democratização Do ensino do primeiro grau

E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto E nenhum no marginal

E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco Brilhante de lixo do Leblon

E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo Diante da chacina

111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos

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E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba Pense no Haiti, reze pelo Haiti

O Haiti é aqui O Haiti não é aqui

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Este trabalho consiste na identificação e análise da constituição de um discurso identitário concernente à região de Cajazeiras, o maior complexo habitacional da América Latina, situado na periferia de Salvador. As moradias dessa região inicialmente foram construídas para compor um bairro-dormitório de trabalhadores, um lugar de passagem, sem possibilidade de troca entre os sujeitos, sem interação social. No entanto, essa lógica foi invertida pois embora contem com uma infra-estrutura precária, os habitantes têm buscado fortalecer ou reavivar maneiras de convivência e valores coletivos baseados fundamentalmente em uma cultura original: a cultura afro-brasileira. Partimos do pressuposto de que essa comunidade tem buscado construir um discurso identitário negro e por isso tem realizado algumas ações na transformação de marcadores de pertencimento de uma origem comum (a origem africana) tais como o reavivamento da memória coletiva negra no bairro ou a afirmação e proteção de símbolos como a pedra do Quilombo do Buraco do Tatu. Esse estudo de caso único teve como base teórica principal as contribuições de Muniz Sodré, Stuart Hall, Milton Santos, Poutignat & Streiff-Fenart, Marc Augé e Florestan Fernandes, entre outros, o que nos permitiu a compreensão de que esse fortalecimento da identidade negra também confere aos moradores desse bairro o sentimento de pertença à cidade de Salvador, que veicula como símbolo próprio a imagem da cidade-negritude, embora exclua a população afrodescendente (que predomina em Cajazeiras) das condições de cidadania. O direito de pertencer à cidade hoje é materializado não somente nas lutas pela qualidade de vida da população, mas em um desejo de ser reconhecido como parte integrante da marca Salvador.

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Ce travail est l´essayage d´identifier et analyser la constitution d´un discours identitaire de la région de Cajazeiras, le plus grand complexe habitationale populaire de l´Amerique Latine, située au banlieue de la ville de Salvador, Bahia, Brésil. Les habitations de cette région ont été construit pour former un quartier d´ouvrières, une place de passage, sans la possibilité d´échanges entre les individus, sans interaction sociale. Néanmoins, cette logique a été renversée parce-que tandis que ils ont une infra-structure faible, les habitantes se battent pour fortifier ou révigorer des maniéres de vivre et les valeurs collectives basée notamment sur une culture original: la culture afro-brésilienne. Notre hypothése était que cette communauté a cherchée la construction d´un discours identitaire noire et c´est pour ça que elle réalise quelques actions dans la transformation de frontières d´appartenance à une origine commune (l´origine africaine) tels que le ravivement de la mémoire collective noire au quartier ou l´affirmation et protection de symboles comme la pierre de Quilombo do Buraco do Tatu. Cet étude de cas unique a eu la base théorique principal sur les contributions de Muniz Sodré, Stuart Hall, Milton Santos, Poutignat & Streiff-Fenart, Marc Augé et Florestan Fernandes, parmi d´autres et ça nous avons permi d´avoir la comprehension suivante: cette fortification de l´identité noire offre aussi aux habitantes de quartier le sentiment d´appartenance à la ville de Salvador, qui divulgue comme leur symbole l´image de la ville-negresse, tandis que éloigne la population afrodescendente ( que est la plupart a Cajazeiras) de la citoyenneté. Le droit d´appartenir à la ville aujourd´hui est materialisé pas seulement dans les luttes pour la qualité de vie de la population, mais dans l´envie d´être reconnue comme une part intégrant de la griffe Salvador.

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AFA - Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia APA - Área de Proteção Ambiental

ASABA - Associação Afoxés da Bahia AR - Administração Regional

BNH - Banco Nacional de Habitação CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais

CEDURB - Companhia Estadual de Desenvolvimento Urbano CIA - Centro Industrial de Aratu

CONDER - Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia COPEC - Complexo Petroquímico de Camaçari

CPF - Cadastro de Pessoas Físicas

EPUCS - Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IES - Instituição de Ensino Superior

IDH - Índice de Desenvolvimento Humano

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPTU - Imposto Predial e Territorial Urbano

FCP - Fundação Cultural Palmares MNU - Movimento Negro Unificado

PDDU - Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano PNAD - Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PC do B - Partido Comunista do Brasil

PDT - Partido Democrático Trabalhista PT - Partido dos Trabalhadores

RA - Região Administrativa

RMS - Região Metropolitana de Salvador SAC -Serviço de Atendimento ao Cidadão

SEMUR - Secretaria Municipal de Reparação de Salvador

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UNEGRO - União de Negros Pela Igualdade

UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNIÃO - União das Associações de Moradores e Entidades Representativas de Cajazeiras e Adjacências

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FIGURA 1 - ROTA DE TRÁFICO DE ESCRAVOS DA ÁFRICA PARA O BRASIL

FIGURA 2 - OCUPAÇÃO DO ESPAÇO FÍSICO DA CIDADE DE SALVADOR – 1600/1940

FIGURA 3 - CASEBRE TÍPICO DE SALVADOR EM 1935

FIGURA 4 - OCUPAÇÃO URBANA DE SALVADOR (1940-1983) FOTO 01 - COMPLEXO CAJAZEIRAS

FOTO 02 - VISÃO DA APA JOANES – IPITANGA A PARTIR DE FAZENDA GRANDE II

FOTO 03 - RÓTULA DA FEIRINHA

FOTO 04 - CAMPO DA PRONAICA

FOTO 05 - TRECHO DA AVENIDA ASSIS VALENTE EM QUE FICA A PEDRA DO BURACO DO TATU

FOTO 06 - PEDRA DO QUILOMBO DO BURACO DO TATU

FOTO 07 - GRUPO DE CAPOEIRA ZUMBI GUERREIRO, DE CAJAZEIRAS 4 FOTO 08 - II MARCHA DA CONSCIÊNCIA NEGRA DE CAJAZEIRAS

FOTO 09 - COMÉRCIO DE CAJAZEIRAS

FOTO 10 - ESTUDANTES NA PEDRA DO BURACO DO TATU DURANTE 2ª MARCHA DA CONSCIÊNCIA NEGRA DE CAJAZEIRAS

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INTRODUÇÃO 18

O SUJEITO E O ESPAÇO VIVIDO 20

ESTUDO DE CASO 25

O LOCAL DE ESTUDO 28

CAPÍTULO 1 SALVADOR: CIDADE NEGRA, CIDADE DESIGUAL 33

1.1 A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO DE SALVADOR 40

1.2 A CULTURA NEGRA EM SALVADOR: REELABORAÇÃO E CONFRONTO 45

1.3 TENTATIVAS DE EMBRANQUECIMENTO DO ESPAÇO URBANO DE SALVADOR 53

1.4 CAJAZEIRAS: A ÚLTIMA FRONTEIRA DE SALVADOR 60

CAPÍTULO 2 CIDADE DA BAHIA: O ESPAÇO DA COR? 69

2.1 POBRES DE TÃO PRETOS! 74

2.1.1 A COR NO DISCURSO IDENTITÁRIO NACIONAL 76

2.1.2 A MESTIÇAGEM E A CONSTRUÇÃO DE UM MITO FUNDADOR 81

2.1.3 RACISMO À MODA DA CASA 84

2.2 CULTURA BAIANA: O LUGAR DA ORIGEM 87

CAPÍTULO 3 TRÂNSITOS... 95

3.1 DESENHANDO FRONTEIRAS 102

3.1.1 LEITURAS IDENTITÁRIAS 114

3.2 CAJAZEIRAS: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO DE PERIFERIA 118

3.2.1 UM PALITO PRA QUEBRAR É FÁCIL, AGORA TODOS EM UMA CAIXA É MUITO DIFÍCIL! 122

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CONSIDERAÇÕES FINAIS 141

BIBLIOGRAFIA 145

ANEXOS 155

ANEXO A – MAPA DO QUILOMBO DO BURACO DO TATU 156

ANEXO B – MAPA DE SALVADOR: ESTRUTURA

POLÍTICO-ADMINISTRATIVA 158

ANEXO C – MAPA DE SALVADOR: ADMINISTRAÇÃO REGIONAL XIV –

CAJAZEIRAS 160

ANEXO D – DISTRIBUIÇÃO DOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ EM

CAJAZEIRAS 162

ANEXO E – DISTRIBUIÇÃO DOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ EM

SALVADOR 164

ANEXO F – PROSPECTO DO GOVERNO DA BAHIA: OBRAS DA NOVA

AVENIDA DA FAZENDA GRANDE 166

ANEXO G – PROSPECTO DA CAJAVERDE 169

ANEXO H – REPORTAGEM SOBRE AS OBRAS NA AVENIDA ASSIS VALENTE 172

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INTRODUÇÃO

As demandas sociais estão cada vez mais presentes nos espaços educativos, especialmente no caso da universidade brasileira, criada no início do século XX sob uma intensa movimentação intelectual que, entre outras coisas, exigia a associação do que se produzia nos bancos da academia e o que se reivindicava naquela sociedade. Ao delinearmos um modelo próprio de instituição universitária, nós brasileiros, nos comprometemos formalmente com a criação de novos espaços para a produção do conhecimento articulado com as realidades locais. Através do ensino, pesquisa e articulação ensino-pesquisa-sociedade (ou extensão universitária) as instituições de ensino superior esforçam - se para realizar sua missão e contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária.

E foi justamente a partir de experiências de busca de construção coletiva de novas abordagens e de novos caminhos para a universidade que tive contato mais profundo com o tema da cultura e da identidade. Minha vivência universitária no campus da UFBA ampliou o desejo de “conhecer” sem deixar de “ser”. Morando na Residência Universitária 3, pude conviver com os sotaques e as formas baianas de viver tão distintas neste Estado continental. Meus colegas de “casa” provinham em sua maioria da zona rural ou periférica. Com eles eu passava muito tempo a discutir o que aprendíamos nas salas de aula e a relação com o que éramos e de onde vínhamos. Com eles eu aprendia novas maneiras de comunicar, de pertencer, de se afirmar e de sonhar. Mulheres, meninas, jovens, religiosos, negros, órfãos, sertanejos, litorâneos, agnósticos, indígenas, grapiúnas, baianos... Éramos todos muito diferentes, mas compreendíamos que naquele momento seríamos mais fortes se nos configurássemos enquanto um grupo específico em relação ao resto da universidade (o nosso “outro”). Vivíamos na tensão entre uma cultura desconhecida que se apresentava como a única e verdadeira (a academia) e os nossos construtos pessoais de lugar, de vida, de identidades.

Meu itinerário paralelo de militância política na juventude católica, no movimento estudantil e no Partido dos Trabalhadores encontrou, porém, maior articulação quando atuei no programa de extensão universitária UFBA em Campo, entre os anos de 1997 a 2002. Houve em mim o aguçamento da percepção da pluralidade de modos de vida e os

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pontos sensíveis numa definição de textos identitários seja enquanto sujeitos, seja enquanto objetos e isto me obrigava a rever todos os meus modelos de atitude e pensamento. Desenvolvi uma particular afetividade na criação do sentimento de pertença à universidade como um todo, assumindo papéis ou identidades múltiplas: pesquisadora, representante estudantil, residente, estagiária, estudante de Artes, entre outras. Pude ensaiar novas possibilidades de formação a partir de outras visões e temporalidades (a experiência da interdisciplinaridade me abria portas para campos e modos investigativos nem sempre abertos aos artistas plásticos). A idéia de conviver com o diferente criando interseções instigava um encantamento com as fronteiras de qualquer natureza (geográfica, lingüística, racial...).

Mobilizada por essas questões, ingressei nos estudos de pós-graduação em uma universidade estrangeira. Em outro país, entretanto, perseguiam-me ainda as reflexões sobre o quê ou quem eu era, e o que me fazia diferente das pessoas. De volta ao Brasil, iniciei minha carreira profissional de docente universitária e uma das atividades foi a coordenação da extensão universitária de um curso de Direito numa faculdade privada. Nessa ocasião realizei um projeto no âmbito dos direitos humanos e da diversidade em parceria com sujeitos moradores do bairro de Cajazeiras, em Salvador. Daí vieram as primeiras perguntas que me conduziram à elaboração do pré - projeto de pesquisa de mestrado, apresentado ao Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da UFBA, que resultou nesta dissertação. Provocada e seduzida intensamente pelo trânsito pessoal por diferentes lugares, pela vivência e “aprendência” em contextos comunitários distintos e convencida de que perguntas sobre a cultura e a identidade eram constantes nos meus questionamentos e trabalhos, busquei através da realização deste estudo, uma inteligibilidade maior e aprofundada a respeito das identidades, com o fito de entender como se dava a elaboração do texto identitário de Cajazeiras, periferia de Salvador, a partir de suas lideranças, considerando o seguinte contexto:

• Essa é uma parte da cidade que sofreu um recente processo de ocupação e urbanização precária em função da economia na década de 1970 e, enquanto projeto arquitetônico de um lugar de passagem, dormitório de operários, sem a possibilidade de um vínculo com o espaço, impedia a construção de identidades baseadas em fronteiras étnicas - contrariando o discurso oficial da identidade de Salvador que é referenciado hoje nas culturas negras ;

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• o bairro tem uma intensa mobilização política a favor de políticas públicas que assegurem a seus moradores qualidade de vida e inclusão na cidade;

• e que a escolha por um texto de identidade é também um posicionamento político, procurei compreender como tem se dado a construção dos discursos identitários do bairro de Cajazeiras a partir de seus representantes comunitários.

O SUJEITO E O ESPAÇO VIVIDO

As relações dos sujeitos com os espaços habitados se constituem cotidianamente através de seus usos – e desusos. É no cotidiano de um lugar que nos apropriamos dos usos, práticas e conceitos resultantes de relações sociais construídas na história e com a história; é onde acontece a consolidação do poder. Em tempos de globalitarismo, o lugar é constantemente ressignificado pelo homem, pois se nutre permanentemente de múltiplas referências, ligações, conexões locais, globais, temporais. A globalização, entretanto, enquanto procura homogeneizar comportamentos, culturas, também estimula o fortalecimento das identificações locais, forçando uma articulação entre diferentes elementos e identidades e substituindo as identidades nacionais por identificações híbridas (HALL, 2005). O sujeito na contemporaneidade fragmenta sua identidade (concebida anteriormente como unificada) ao reivindicar o direito de auto-representação de si, base comum de muitos movimentos sociais de hoje. Tudo isso tem gerado momentos teóricos legitimados pela fala dos sujeitos dos processos comunitários. As escolhas de pertencimento identitário do indivíduo acontecem numa construção relacional, ou seja, na representação do vínculo social que é mais relevante em relação a um “outro” definido em contraposição a um “nós” supostamente idêntico. A necessidade de compreensão das culturas e dos diversos contextos locais são cada vez mais presentes, pois “ nunca as histórias individuais foram tão explicitamente referidas pela história coletiva, mas nunca, também, os pontos de identificação coletiva foram tão flutuantes” (AUGÉ, 1994, p.39). As subjetividades constituem-se em algo fluido e móvel, pois são permanentemente negociadas. Este trabalho se propõe a compreender os discursos constituintes de um texto identitário verbalizado na periferia da metrópole

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soteropolitana por suas lideranças, palco de intensas disputas e negociações étnicas, como procuraremos evidenciar a seguir.

Fundada em 1549, Salvador foi um dos mais importantes portos marítimos e centros comerciais do mundo na época. Sua economia baseava-se na produção da cana-de-açúcar e, para sustentação desses empreendimentos coloniais, foi trazido um enorme contingente de escravos africanos, expulsando - se os indígenas para o interior e áreas menos habitadas. O trabalho daqueles homens e mulheres além de ser a força motriz daquela economia, acabou por resultar em uma das marcas do modo de vida do povo baiano, assim como do seu espaço urbano. Embora a cidade oficial ocupasse inicialmente uma pequena parte do território dedicada ao comércio e administração, diversos quilombos foram criados no seu entorno à revelia do sistema escravista. Tais comunidades eram constituídas de índios, mestiços e principalmente escravos fugidos. Símbolos da resistência negra, os quilombos também representaram para Salvador o início do povoamento de muitos bairros populares da atualidade. Numerosas foram as tentativas de excluir o povo negro do contexto dessa cidade, especialmente após a abolição da escravatura, em 1888. A cidade de Salvador, na ânsia de se modernizar, implantou sérias medidas de normatização e segregação social e racial do espaço urbano. As classes populares soteropolitanas, majoritariamente negras, foram obrigadas a ocupar áreas cada vez mais periféricas e carentes de infra-estrutura. Tal quadro não se alterou muito até os dias atuais: os bairros mais pobres são ainda aqueles de população predominantemente negra.

Após a década de 1970, com o novo viés econômico baseado na indústria do petróleo, a cidade abriu outros vetores de crescimento e um deles foi o miolo urbano, que outrora abrigara quilombos e onde havia grandes fazendas e pequenas propriedades rurais. Tal área, muito próxima do pólo industrial petroquímico, foi escolhida como endereço das habitações dessa nova classe trabalhadora. Nessa região, foi construído o maior complexo habitacional da América Latina: o Complexo Cajazeiras. O empreendimento não resolveu o déficit de moradias, mas se viu cercado de favelas em muito pouco tempo. Os edifícios de Cajazeiras inicialmente foram construídos para compor um bairro-dormitório de trabalhadores, o que acabou não ocorrendo devido às estratégias de relacionamento que os novos habitantes desenvolveram ao longo do tempo. O

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Complexo foi concebido para ser um lugar de passagem, sem possibilidade de troca entre os sujeitos, sem interação social, um não-lugar como sugere o teórico Marc Augé:

Vê-se bem que por “não-lugar” designamos duas realidades complementares, porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços. Se as duas relações se correspondem de maneira bastante ampla e, em todo caso, oficialmente (os indivíduos viajam, compram, repousam), não se confundem, no entanto, pois os não - lugares medeiam todo um conjunto de relações consigo e com os outros que só dizem respeito indiretamente a seus fins: assim como os lugares antropológicos criam um social orgânico, os não-lugares criam tensão solitária” (AUGÈ, 1994, p.87).

Essa lógica inicial foi invertida, pois embora contem com uma infra-estrutura precária, os moradores têm buscado fortalecer ou reavivar maneiras de convivência e valores coletivos baseados fundamentalmente em uma cultura originária: a cultura afro-brasileira. Com base nos estudos de Muniz Sodré, podemos compreender por cultura afro-brasileira as reminiscências dos modos de vida dos grupos negros ancestrais reinterpretados e recriados em solo brasileiro. É o conjunto de estratégias de continuidade do ethos africano no Brasil, reconstruindo uma africanidade originada do cruzamento de múltiplas culturas. Apesar das iniciativas oficiais de desarticulação desse processo de consolidação do que compreendemos como cultura afro-brasileira, a presença negra se fez permanente em Salvador. A religiosidade de matriz africana, as expressões artístico-culturais, as peculiaridades da ocupação do espaço urbano, entre outros aspectos, são características de uma cultura baiana, vendida hoje como a autêntica cultura negra. A cidade de Salvador, desde o período final do século XIX, esforça-se para acompanhar as tendências contemporâneas e a principal delas é a entrada e permanência no mercado internacional de cidades às custas de uma segregação racial e social cada vez maior. A capital baiana passou a ser ela própria a mercadoria.

Num período que compreendeu os séculos XVI até o XX, houve declaradamente políticas de negação e perseguição às estratégias de sobrevivência dos descendentes de escravos. Objetivava-se a limitação dos espaços de sociabilidade dos afrodescendentes, seu esfacelamento enquanto grupo humano e sujeitos, assim como sua exclusão da nova sociedade baiana que surgia pautada na regulação da vida urbana. Num segundo

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momento, a partir do século XX, assistiu-se à apropriação da cultura de origem africana com a finalidade de promover a cidade de Salvador, criando - se como sua imagem-síntese a negritude dentro de uma democracia racial. Pode-se facilmente contestar esse mito – segundo o qual todas as raças têm igualdade de oportunidade – através das análises dos dados sócio-econômico e culturais e além das denúncias dos movimentos sociais, que atestam, entre outras coisas, que a pobreza na capital da Bahia, bem como no resto do país, tem cor e endereço. A pobreza de Salvador é negra e mora na periferia da cidade.

A área do Complexo Cajazeiras foi construída de modo a não permitir outra leitura da história dos negros, senão a da subserviência, da inferioridade e da não-memória. Esses trabalhadores mais uma vez enfrentariam as péssimas condições de habitabilidade: a ausência de equipamentos públicos coletivos, a arquitetura depreciada, os sistemas de transporte e saneamento básico extremamente precários estão entre tantos outros problemas ainda enfrentados por esses moradores. Cajazeiras é um sítio relativamente novo para a totalidade da habitação urbana da capital porque teve um traçado inicial voltado para a moradia de operários do pólo petroquímico da Região Metropolitana de Salvador. Entretanto, naquelas pranchetas de desenho arquitetônico as memórias e marcas do passado de resistência à escravidão e ambientes de trocas entre os sujeitos e o espaço vivido daquela parte de Salvador não tiveram lugar. Mas seus moradores encontraram múltiplas formas de se opor a isso e se constituir enquanto grupo na cidade.

Paradoxalmente, a cidade escolheu algumas áreas como símbolo da negritude, espaços estes bastante comprometidos com a herança colonial. A região de Cajazeiras ressente-se por não estar oficialmente situada dentro destas áreas. Ela foi consolidada nas últimas três décadas sob o apagamento dos referenciais (afro-brasileiros) característicos dos aspectos que delineiam a imagem-síntese soteropolitana. A imagem oficial da cidade se apega à herança dos povos negros em função da indústria do turismo, mas no dia-a-dia nega aos sujeitos dessa cultura a integração a Salvador, deixando-os à margem dos benefícios de políticas públicas de atenção à população. O texto identitário soteropolitano, além de afirmar a presença do afro-brasileiro, se referencia no passado colonial especialmente no quesito espacial. O bairro de Cajazeiras é relativamente jovem e não possui edificações centenárias como outras áreas históricas da metrópole.

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A cultura afro-brasileira consubstancia-se num vasto e rico patrimônio material e imaterial, todavia a arquitetura obedece a uma idéia de uso do solo e de valores diferenciada daquela atribuída às culturas euro-referenciadas. O cuidado com as áreas verdes, a natureza, por exemplo, constitui-se em emblema disto. Cajazeiras abriga muita mata, edifícios, barracos, casas simples e sem reboco; sua forma física sintetiza as desigualdades na capital. A imagem e o texto identitário da capital da Bahia estão subordinados ao mercado turístico e excluem, portanto, um bairro de trabalhadores pobres nas representações do produto “Salvador”. Por isso, a análise da constituição de um discurso identitário referenciado na cultura afro-brasileira partiu da noção de que “a identidade é uma construção que se elabora em uma relação que opõe um grupo aos outros com os quais está em contato”(Cuche, 2002, p.182)”.

Muito do que hoje há em Cajazeiras como estrutura física minimamente adequada à demanda citadina se deu pela organização política dos setores sociais para a conquista e manutenção dos direitos básicos. Sendo o sujeito pós-moderno alguém sem uma identidade fixa, essencial ou permanente e visto que a escolha de um determinado texto identitário é resultante de um posicionamento político (HALL, 2005), torna-se pertinente investigar o percurso, as determinantes e os atores da construção dessa identidade particular, uma vez que os processos de identificação são cada vez mais provisórios, variáveis e problemáticos. Compreendendo a identidade como um processo, observamos que os habitantes de Cajazeiras têm buscado o fortalecimento do referencial negro, criando mecanismos e dinâmicas de afirmação da mesma, tais como: valorização das iniciativas culturais negras como a capoeira, o movimento hip hop, as religiões de matriz africana; recuperação, defesa e divulgação de marcos históricos do povo negro da cidade de Salvador presentes naquela região, entre outros. Essas seriam algumas das fronteiras étnicas criadas pela população para determinar a pertença, bem como manifestá-la ou excluí-la (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998).

Nosso estudo pressupõe que essa comunidade tem buscado construir um discurso identitário negro e tem escolhido o reavivamento dessa memória coletiva no bairro afirmando e protegendo símbolos como a pedra do Quilombo do Buraco do Tatu, também conhecida como Pedra da Onça, Pedra do Ramalho ou Pedra de Xangô. Consideramos essas como algumas ações na transformação de marcadores de pertencimento de uma origem comum (a origem africana). Esse fortalecimento da

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identidade negra também confere aos moradores desse bairro o sentimento de pertença à cidade de Salvador, que veicula como símbolo próprio a imagem da cidade-negritude, embora exclua em grande medida a população afrodescendente (que predomina em Cajazeiras) das condições de cidadania.

ESTUDO DE CASO

Ao tentar identificar e analisar a constituição de um discurso identitário concernente ao Complexo Cajazeiras, periferia soteropolitana, observamos que o estudo de caso único seria a estratégia mais interessante para a pesquisa. O estudo de caso preocupa-se com a compreensão de uma instância particular, onde o objeto é tratado como único, mesmo sendo o resultado de outras relações. Ou seja:

...investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos.

Em outras palavras, você poderia utilizar o método de estudo de caso quando deliberadamente quisesse lidar com condições contextuais – acreditando que elas poderiam ser altamente pertinentes ao seu fenômeno de estudo (YIN, 2001, p.32).

A pretensão de analisar o constructo identitário de Cajazeiras reporta-se inevitavelmente a um conjunto de referências do sujeito, ao seu contexto. Sabendo da dimensão geográfica da área de estudo e da inexistência da delimitação de bairros em Salvador, privilegiamos a descrição local feita por lideranças cajazeirenses, legitimadas pela participação nas principais entidades locais. Perseguimos também a identificação de elementos que contribuem para representações identitárias do bairro de Cajazeiras, como por exemplo, alguns símbolos ou territórios ressignificados pela população local. Observamos ainda os principais experimentos comunitários realizados dentro do objetivo de consolidar uma identidade própria no bairro, bem como comparar suas principais características. Levantamos alguns trabalhos de pesquisa sobre a área, que ainda são poucos, e fizemos uma revisão de literatura que nos permitiu uma comparação

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mais circunstanciada. O próprio conceito de identidade deixa aberta a noção não só de uma, mas de várias identidades possíveis para um indivíduo. Então, preferimos ouvir dos próprios sua autodefinição. No intuito de estudar a identidade, utilizamos um outro recurso muito importante na pesquisa: a entrevista , porque ela pode se dar em situações imprevisíveis, mas sempre terá caráter flexível e aberto. Ao entrevistarmos alguém, tomamos consciência de um outro ponto de vista possível não só verbalmente, mas também por outras linguagens. Contudo, o entrevistador - pesquisador deve ter sempre uma estratégia, uma coordenação de idéias e objetivos da condução dessa atividade, já que o controle pode ser efetuado através de um roteiro básico flexível. Partimos do pressuposto de que a comunidade de Cajazeiras está construindo um texto identitário referenciado na cultura afro-brasileira em Salvador. Nossas entrevistas, realizadas com as lideranças comunitárias culturais, religiosas e políticas nos apresentaram narrativas de vida e conhecimento de acontecimentos nem sempre diretamente observáveis. As questões centrais de nossas entrevistas consistiram em ouvir dos entrevistados a definição do que é Cajazeiras, seus limites, o que tal região representava para ele (a) e para a cidade de Salvador, bem como a descrição do percurso histórico da instituição à qual pertence. Muitas pessoas descreveram suas realidades interpretando-as e apontando interpretações/percepções de terceiros. Alguns outros sujeitos foram reentrevistados com o propósito de se obterem mais informações e apreensão de variações de uma situação estudada. As entrevistas foram gravadas e transcritas, para facilitar a sua análise. Não se pode esperar de um processo de análise que conceitos bem formulados ou bem articulados apareçam de uma vez. Um relato não se constitui apenas de razões, mas também da expressão de identidades negociadas e construídas. Como consideramos o documento uma importante fonte de dados, optamos por realizar uma pesquisa documental, pois esta permitiu analisar a expressão dos problemas através dos próprios indivíduos. Incluímos aí as formas escritas como prospectos informativos, projetos, planos, atas de reuniões, relatórios, comunicações oficiais e lançamos mão de pesquisa eletrônica para termos acesso a textos jornalísticos, imagens e artigos científicos disponibilizados na rede mundial de computadores.

Estudamos os discursos de lideranças comunitárias do Complexo Cajazeiras no período de março a novembro de 2008. Analisando como essas pessoas percebem o bairro e se percebem no local em que moram, bem como a relação deste espaço com a cidade e a sua trajetória de mobilização política, pudemos refletir sobre questões concernentes ao

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processo de construção de um texto identitário dessa população. Foram realizadas entrevistas com várias pessoas (homens e mulheres) com idades e profissões variadas, mas com a mesma condição de poder (membros de associações representativas do bairro), tendo como tema os pontos já citados anteriormente. Nosso critério de escolha foi o da heterogeneidade, pois os indivíduos possuem uma sócio-história diferenciada, garantindo diversidade de discursos. E é justamente esse caráter heterogêneo que confere semelhança nos discursos quando transcritos e analisados. Inicialmente listamos algumas lideranças do bairro e certas organizações. Percebemos que a União das Associações de Moradores de Cajazeiras (UNIÃO) e a Cajaverde aparecem constantemente nos meios de comunicação, denunciando as condições precárias da vida na periferia e reivindicando melhorias para o bairro. O contato com elas foi relativamente fácil, em decorrência de nossa experiência anterior no bairro como coordenadora de um projeto de extensão universitária1. Todas as entrevistas foram realizadas em Cajazeiras, sempre em um ambiente mais informal e relaxado para a conversação, tais como as sedes das entidades, casa ou local de trabalho dos entrevistados. No geral, todos aqueles procurados como informantes foram extremamente receptivos e solícitos, nos proporcionaram total acesso a documentos (no caso de membros de entidades) e outros dados e informações. Encontramos mais resistência por parte da União, pois tudo é concentrado em uma única pessoa, a qual não nos permitiu consultar documentos da entidade e também não soube dizer como poderíamos encontrar os demais membros da sua diretoria.

A análise das transcrições de 17 entrevistas foi feita através de uma leitura cuidadosa do material. Isso implicou também em retomada das leituras posteriormente, para que fossem testadas ou detectadas novas interpretações. Nessa fase, procuramos identificar frases, metáforas ou palavras que expressassem imagens ou significados específicos, destacando-as. Feito isso, identificamos discursos que pareciam mostrar o desenho do processo de construção de um texto identitário para Cajazeiras. Identificados tais discursos, passamos à fase de estudo dos efeitos discursivos. Buscamos analisar, por exemplo, as implicações da afirmação de uma identidade negra para aquela população soteropolitana e da construção identitária referenciada na alteridade (no caso, a parte da cidade de Salvador não incluída no território de Cajazeiras). Organizamos extratos dos

1

Trata-se do projeto de extensão universitária “Cidadania, diversidade e direitos humanos em Fazenda Grande 2”, do curso de Direito da Faculdade Unyahna, coordenado pela autora entre 2005 e 2007.

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textos que respondiam às questões centrais das entrevistas e as possíveis conseqüências dos discursos, pois estas partes pareciam representar claramente os componentes dos discursos.

O LOCAL DE ESTUDO

Foto: Fernando Vivas.

Cajazeiras ocupa uma área do miolo urbano (centro geográfico) de Salvador, às margens da BR 324, limitando-se com a Estrada Velha do Aeroporto, bairro Castelo Branco e Represa do Ipitanga (APA Joanes Ipitanga). Existem em Cajazeiras treze conjuntos habitacionais que contam com quase duas mil casas e apartamentos (NUNES, 2007). Essa região testemunhou inúmeras batalhas pela liberdade do povo negro escravizado no Brasil, tais como os quilombos ali existentes no passado, a exemplo dos Quilombos do Urubu e do Buraco do Tatu. Ironia do destino, ou não, tornou-se o maior conjunto habitacional da América Latina e o maior número de conjuntos habitacionais da cidade. O Estado desapropriou três grandes fazendas ali situadas: Jaguaripe de Cima (também conhecida por Fazenda Grande), Cajazeiras e Boa União. As terras pertencentes à primeira ainda estão em disputa judicial com os herdeiros. A fazenda Jaguaripe de Cima foi adquirida em 1858 pelo coronel Francisco José de Matos Ferreira Lucena, que a vendeu para Manuel da Anunciação Torres. Este, através de adjudicação,

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as transferiu para seu filho Manuel Leocádio de Jesus em 1875. Cem anos depois, um decreto estadual iniciou o processo de desapropriação de cerca de 16 milhões de m2 (ROCHA, 2001). Convivem com esses conjuntos hoje inúmeras ocupações situadas nas encostas e vales da região.

O Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2000 mostrou que a densidade demográfica bruta nesta Região Administrativa (RA) era de 84,91 habitantes por hectare, a taxa de alfabetização atingia 95,04% e era ocupada por 118.197 mil pessoas. Esse número é contestado por seus moradores, os quais alegam que o bairro possui entre 400 e 600 mil moradores (COSTA, 2006) resultantes da soma de 20 pequenos bairros (SOUZA, 2001). Os conflitos se agravam à medida que a prefeitura municipal se vale desses números para a implementação ou regulação dos serviços públicos que, no entanto, não conseguem responder à demanda existente, que é sempre muito maior.

Partindo - se do centro da cidade de Salvador em direção a Cajazeiras, gasta-se cerca de duas horas. A distância do centro da cidade e a ausência de infra-estrutura faz com que o transporte coletivo seja um dos principais problemas enfrentados. A água também chega com irregularidades (SODRÉ, 2007). Quando o deslocamento é na direção oposta (Cajazeiras – Centro), percebe-se a intimidade dos moradores com os motoristas e cobradores de ônibus. Para passar o tempo da viagem, quando esta é realizada longe dos horários de pico, vêem-se freqüentemente senhoras sentadas preparando peças de crochê. É comum um morador se referir à região central como “cidade” ou ainda referir-se ao destino final de referir-seu trajeto como uma ida a “Salvador”. O principal terminal de ônibus que atende aquela população é uma estação de transbordo: a Estação Pirajá. Mas ela visivelmente não corresponde à expectativa do transporte coletivo de qualidade. Reclama-se constantemente do número insuficiente de veículos e condições precárias em que funcionam. Neste lugar existe um funcionário que se coloca na porta de acesso ao veículo especialmente nos horários de maior demanda ( entre 6:30 e 9 horas da manhã e entre 17 e 20 horas). Sua função é a de “controlar” o número de passageiros por carro. A cena é desoladora: um homem uniformizado barrando a entrada de pessoas com métodos nem sempre gentis, pois são constantes os conflitos entre eles, envolvendo desde agressão verbal até física. Mesmo com esse funcionário, as empresas de ônibus não conseguem evitar a superlotação. Tornou-se muito comum a visão de um veículo de

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transporte coletivo lotado e com pessoas literalmente penduradas nas suas portas e, algumas vezes, até nas janelas.

É na Estação Pirajá que está instalada uma casa lotérica na qual é possível ver as filas quilométricas formadas pelos beneficiários da rede de programas de proteção social como o Programa de Segurança Alimentar Fome Zero, do governo federal. Aquele é um dos principais pontos de convergência de moradores das áreas mais pobres da cidade, concentradas no miolo urbano e no Subúrbio Ferroviário. A Fundação Bradesco, implantada no bairro há 22 anos, é uma das principais referências educacionais. Além de já ter formado 3.301 alunos do ensino médio e fundamental (184 em curso técnicos), já diplomou 11.837 pessoas nos seus cursos profissionalizantes (HERCOG, 2007). A participação desta Região Administrativa na renda municipal representava, em 2001, apenas 2,5%. Seus chefes de família em geral têm uma renda entre 3 e 5 salários mínimos e há a previsão de que continuem assim até o ano 2013, quando ainda apresentarão “dificuldades para promover melhoria generalizada no padrão de vida de sua população” (SALVADOR, 2001, p.130).

Devido ao tamanho da área escolhida como unidade-caso desse estudo, delimitamos nosso trabalho em duas entidades constituídas por moradores que se proclamam representantes da região de Cajazeiras: a União das Associações de Moradores de Cajazeiras, representante maior de 32 associações, e a organização não-governamental Cajaverde, também preocupada com a qualidade de vida dos habitantes da região. Sabe-se que cada Sabe-setor tem sua associação, no entanto, escolhemos essas duas que falam em nome de todo o povo cajazeirense, atribuindo a si mesmas uma abrangência territorial bem maior que cada organização setorial dos habitantes. São constituídas por membros anteriormente sublinhados como lideranças comunitárias dessa área, pois todos são comprovadamente oriundos de conselhos, associações, entidades ou são dirigentes locais de movimentos sociais. Durante a década de 1990, os movimentos sociais de bairros soteropolitanos sofreram um arrefecimento no seu potencial mobilizador. Alguns atribuem esse fenômeno à vitória do projeto neoliberal. Capitaneado pelo ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso, o neoliberalismo preconizava a desresponsabilização do Estado na regulação da economia. No caso de Salvador, houve um perfeito alinhamento ideológico com essa política nas esferas estadual e municipal. Nesse processo, muitas lideranças comunitárias foram cooptadas, silenciando ou

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enfraquecendo o movimento popular. Neste ínterim, entretanto, vimos o fortalecimento da sociedade civil através de organizações não-governamentais (ONG´s) e outras iniciativas de solidariedade social. Ambas as entidades citadas ocupam espaços políticos que poderiam ser descritos como ideologicamente distintos, mas não menos importantes. Muitas vezes, embora defendam os mesmos ideais, colocam-se em posições opostas, traduzindo a pluralidade no modo de fazer política. Paradoxalmente, todas as conquistas de melhoria para o bairro foram inegavelmente obtidas através de intensa mobilização social.

Entrevistamos integrantes de outros agrupamentos, mas apenas como informantes complementares. Ouvimos representantes do Afoxé Filhos do Congo, da Associação de Amigos Protetores da Pedra do Ramalho, da Associação de Comerciantes de Cajazeiras e da Ong Mude, Salvador! Um detalhe muito importante a respeito dos entrevistados, membros da União e da Cajaverde, é que a maior parte deles não pertence só a uma agremiação, mas a diversas outras, tais como os movimentos negro (MNU, Unegro, movimento Hip Hop), estudantil (grêmios escolares), de mulheres, ambientalista (Agenda 21, Conselho Municipal do Meio-Ambiente, Conselho Estadual de Recursos Hídricos), partidos políticos (PT, PCdoB, PDT) além de conselhos municipais de saúde, de segurança, grupos de música, teatro, dança, capoeira e demais entidades representativas de moradores de Cajazeiras.

Diante disso, o estudo aqui apresentado sob o título Um texto identitário negro: tensões e possibilidades em Cajazeiras, periferia de Salvador (Bahia), pretende demonstrar como tem se dado a construção dos discursos identitários em Cajazeiras, periferia de Salvador. Para atender a este objetivo, a dissertação foi dividida em quatro partes:

• Capítulo 1 - Salvador: cidade negra, cidade desigual: neste bloco nos dedicamos a apresentar a capital da Bahia, apresentando brevemente seu histórico, de modo a situar o leitor no processo de ocupação do espaço urbano da primeira capital do Brasil. Refletimos também sobre a cultura afro-brasileira, a presença dos povos negros no desenho da forma urbana, bem como sua contribuição para o tecido social urbano e os modos de apropriação do espaço.

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Caracterizamos a área de abrangência dessa investigação (o bairro de Cajazeiras) e sua configuração na metrópole soteropolitana.

• No Capítulo 2, Cidade da Bahia: espaço da cor? abordamos o fato de o negro na identidade oficial baiana ocupar lugar privilegiado, mas no cotidiano da cidade ser freqüentemente excluído. Evidenciamos a relação entre a cor e a pobreza, a periferização de zonas urbanas como conseqüências do racismo. Discorremos ainda sobre a criação dos discursos identitários nacional e soteropolitano, ambos pautados na afirmação do mito da democracia racial.

• No Capítulo 3, Trânsitos..., descrevemos a constituição de um discurso identitário de Cajazeiras referenciado na cultura afro-brasileira. Delineamos algumas fronteiras étnicas identificadas nas falas das lideranças comunitárias, os elementos instituintes de uma origem comum – a negra. Apresentamos a delimitação subjetiva dos limites do território de Cajazeiras, enquanto apropriação do espaço por seus moradores em oposição aos limites oficiais; relatamos sucintamente a história de Cajazeiras como um conjunto de lutas muito associadas à história social dos negros, tendo como principal símbolo a proteção à pedra do Quilombo do Buraco do Tatu.

• Nas Considerações Finais, analisamos as implicações da construção desse texto identitário negro no contexto da cidade de Salvador e da construção identitária referenciada na alteridade (no caso, a parte da cidade de Salvador não incluída no território de Cajazeiras). Alertamos para o fato de que a luta pelo direito de pertencer à cidade hoje é materializada não somente nas batalhas pela qualidade de vida da população de Cajazeiras, mas em um desejo de ser reconhecido como parte integrante da “marca” Salvador. Afirma-se a identidade do bairro, do lugar, através de elementos simbólicos da cultura afro-brasileira como a Pedra do Quilombo do Buraco do Tatu. Percebe-se, porém, que o maior estimulador desse movimento é ainda o desejo de poder participar da dinâmica da cidade-mercadoria, alterando seu posto de bairro esquecido e excluído de Salvador.

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SALVADOR: CIDADE NEGRA, CIDADE DESIGUAL

Salvador, a maior expressão urbana portuguesa no Hemisfério Sul no século XVI, nasceu nesse período com a missão de ocupar e proteger o novo território português e fazer escoar toda a economia da colônia, sendo um posto de abastecimento no Atlântico Sul. A economia era agroexportadora de produtos como a cana-de-açúcar, fumo e algodão, e o principal porto articulava-se com as principais rotas comerciais mundiais daquele tempo. O lucrativo empreendimento da escravidão de negros africanos fez com que a escravidão dos índios perdesse a importância econômica para os colonizadores (ANDRADE; BRANDÃO, 2006). E toda a base da riqueza e opulência dessa época foi o tráfico de escravos, a mão-de-obra escrava negra, que trabalhava nas lavouras canavieira e fumageira, que enriqueceram e tornaram suntuosa a cidade de Salvador. A contribuição africana é fortemente visível na cidade ainda hoje. Até os fins dos anos de 1980, os negros representavam 84,1% da força de trabalho da Região Metropolitana de Salvador – RMS (SANTOS, 2001).

O desenvolvimento urbano da primeira capital do Brasil, desde sua fundação, é marcado pela desigualdade. Tomamos a palavra desigualdade nesse contexto no sentido de diferença, injustiça e diversidade. A cidade foi pensada e concebida de fora para dentro,

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ocupando primeiro as suas bordas e privilegiando a visão do mar em função da sua defesa. O processo da colonização lusófona previa um núcleo matriz composto por uma cidade fortaleza, dividida entre Cidade Alta e Cidade Baixa. Este núcleo, constituído por duas partes, mantinha na “Cidade Alta” o centro administrativo, político e religioso e de moradias; e na “Cidade Baixa”, a zona comercial da praia, do porto e seus armazéns. Para sustentar os empreendimentos coloniais no Brasil, e este da cidade de Salvador, foram trazidos à força milhões de homens e mulheres africanos pelos lusitanos, a maioria oriunda da Senegâmbia, chamada Guiné, e de Angola (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006).

Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 44-46), os traficantes envolvidos com o comércio de negros na Bahia foram responsáveis pelo suprimento de escravos para inúmeras regiões do Nordeste brasileiro. A partir da metade do século XVIII e até o final do tráfico (1850), estes escravos tinham sua origem sobretudo na região do Golfo do Benin (atual Nigéria). Através desta rota do Benin, os traficantes baianos importaram cativos que aqui foram chamados de dagomés, nagôs, tapas, haussás, jejes, entre outros (figura 1-rota de tráfico de escravos da África para o Brasil).

Fonte: http://www.zulunationbrasil.com.br/colunas/onegronabiblia3.html

FIGURA 1 - Rota de tráfico de escravos da África para o Brasil

Neste sentido, a rota do tráfico desses povos tinha como principal destino o Brasil e, mais precisamente, o porto de Salvador. O cruzamento do Atlântico acontecia a bordo

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de navios negreiros, construídos para o transporte da lucrativa mercadoria: os negros africanos. Amontoados nos porões, seminus, submetidos a maus tratos de todo o tipo, muitos não suportavam a longa travessia e morriam no caminho. É importante ressaltar que nos portos os escravos negros eram alojados em grandes cercados ou barracões. Durante esse período de espera, ocorria um enorme número de mortes, uma vez que esses barracões eram pequenos para a quantidade de pessoas e tinham uma construção precária, sendo insalubres e mal ventilados. Lá ficavam por muitos dias e até meses à espera de que a quantidade de carga humana dos navios fosse completada e então partiam para um destino totalmente desconhecido. Os sobreviventes não eram postos à venda imediatamente, pois a aparência saudável era fundamental para efetuar o comércio. Debilitados, eles permaneciam algum tempo em Salvador sob um regime de engorda e de tratamento. Isso poderia levar meses a depender do tipo de necessidade de cada cativo.

Embora a cidade de Salvador tenha se tornado um dos mais importantes entrepostos comerciais do mundo daquela época, foi o tráfico de escravos a atividade comercial mais lucrativa (COSTA, 1989). A força motriz da cidade era a exploração da mão-de-obra escrava. Aos poucos, o trabalho definia a ocupação do espaço urbano, pois havia uma adensada presença negra, seja no espaço físico, seja no espaço social soteropolitano. Até meados do século XIX, a cidade dependia completamente do braço escravo para funcionar. Dada a sua importância, Salvador aumentava constantemente a população de trabalhadores escravizados. Albuquerque e Fraga Filho (2006) ilustram esse quadro informando que, em 1808, foi realizado um censo na cidade de Salvador e em treze localidades rurais do Recôncavo. Essa pesquisa demonstrou que os negros livres, mestiços pobres e os libertos, ao lado da população escrava, já representavam um imenso contingente populacional: 41,8 % dos que viviam em Salvador eram negros e mulatos livres contra 20,2 % de brancos (europeus e brasileiros). Ana de Lourdes Costa (1989, p.40) nos informa que no ano de “1860, Maximiliano de Habsburgo estimou em 120.000 o número de seus habitantes, sendo 80.000 negros e 40.000 brancos” vivendo na capital da Bahia.

As relações diversificadas de trabalho entre senhor e escravo no meio urbano, segundo Costa (1989), permitiam diferentes formas de ocupação do espaço urbano e sustento do escravizado. Uma nova modalidade de trabalhador surgia no século XIX nas principais

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cidades: o escravo de ganho, ou aquele que trabalhava fora da casa do seu senhor, devendo pagar periodicamente uma quantia determinada pelo seu dono, tendo o direito de ficar com a sobra do seu ganho. Podia também morar em casas ou quartos alugados, longe do seu senhor. Escravos de ganho exerciam atividades de

carregadores de cadeira, estivadores, carregadores de carga (carreto), carregadores de lenha, e no comércio ambulante vendendo os mais variados produtos, como doces, frutas, peixes, tecidos, etc. Podiam ainda ser aguadeiros, artesãos, como alfaiates, barbeiros e oficiais de sapateiro, lavadeiras e engomadeiras, além de rendeiras, bordadeiras e costureiras que tinham o produto do seu trabalho vendido para fora da residência do seu senhor (COSTA, 1989,p.44).

A organização desse tipo de trabalho resultou na criação dos chamados cantos de trabalho, grupos formados por esses profissionais que, reunidos em pontos estratégicos da cidade, ofereciam seus serviços à população. Além do escravo de ganho havia também o escravo de aluguel e o doméstico.

Desenvolveu-se em Salvador, portanto, um comércio importador-exportador e local que abastecia as demais cidades baianas, os subúrbios e povoados vizinhos. Na Cidade Baixa, área comercial, aglutinava-se a população tanto livre quanto escrava. Era ainda no porto e na rua que se consolidava o mercado de trabalho do negro em Salvador. A rua tornara-se também um importante meio para a resistência e práticas negras de territorialização, ameaçando posteriormente o projeto de civilização branca preconizado pelas elites dominantes (MATTOS, 2000).

Os setores industrial e manufatureiro se destacaram através da indústria têxtil, em menor proporção, até o final da primeira metade do século XIX. Havia ainda a metalurgia dedicada à fabricação de peças de reposição para engenhos e embarcações a vapor, manufaturas de fumo, calçados, sabão, óleos, carvões, velas e fósforos.

Entretanto, o sistema escravista se enfraquecia cada vez mais. A rebeldia escrava estava presente em toda parte: lentidão na execução das tarefas, revoltas e fugas individuais e coletivas, sabotagem da produção, desobediência sistemática, suicídios, fugas reivindicatórias (ausência temporária do trabalho em troca da negociação de melhorias nas condições de alimentação, trabalho e moradia, cumprimento de acordos, entre outras

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questões); formação de quilombos (comunidades constituídas por grupos de negros fugidos organizados).

Os escravos baianos logo se tornaram conhecidos no Brasil pelas rebeliões que realizavam, especialmente nesse período. Destaca-se então a força da ligação entre a religiosidade e a solidariedade étnica negras sustentando tais movimentos. A Bahia contou ainda, por exemplo, com cerca de trinta revoltas em um curto período (1814, 1816, 1822, 1826, 1827, 1828, 1830 e 1835), a maioria protagonizada por haussás e nagôs. Destas, a mais séria foi a Revolta dos Malês1, em 1835, derrotada pela polícia baiana (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006). Muitos negros libertos participaram ativamente em movimentos que resultaram em lutas tais como as ocorridas em Salvador por ocasião da Revolta dos Búzios ou Conjuração Baiana (1798) 2; a independência do Brasil, entre 1822-23 ou ainda a Cemiterada (1835) 3.

Por outro lado, a Inglaterra, maior potência econômica da época, pressionava o Brasil pelo fim da escravidão, pois este era um forte concorrente da exportação do açúcar das colônias inglesas no Caribe. Algumas medidas afetaram a prática do tráfico negreiro, restringindo-o no Brasil, tais como: a proibição do tráfico ao norte da linha do Equador, aprovada pelo Congresso de Viena, em 1815, e a concessão dada pelo príncipe-regente português Dom João VI aos ingleses do direito de visita e busca em navios suspeitos (1817). A cultura do café no Sudeste fez com que entre 1830 e 1840 o número de pessoas seqüestradas na África e trazidas à força para o Brasil aumentasse significativamente (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006).

Também a sociedade brasileira se manifestava contra o escravismo justificando-se ora através do argumento do temor de uma africanização do país, ora pela condenação da escravidão e de seus horrores. O fato é que muitos setores se pronunciavam como

1

A Revolta ou Levante dos Malês ocorreu em janeiro de 1835, em Salvador. Foi organizada por negros nagôs muçulmanos (malês), que sabiam ler e escrever em árabe. A ousadia desse movimento deixou em alerta a classe senhorial de todo o resto do Brasil, que adotara medidas mais rígidas de controle dos cativos.

2

A Revolta dos Búzios ou Conjuração Baiana de 1798 é um marco na História do Brasil porque pretendia obter a independência do domínio português sobre a Capitania e proclamar a república baseada no princípio de uma sociedade igualitária. O movimento expressou a insatisfação da sociedade em relação à metrópole, o repúdio às desigualdades sociais e à discriminação racial que os negros e mestiços sofriam, mas foi abortado prematuramente.

3

A Cemiterada, em 1836, foi a revolta de irmandades negras aliadas a algumas brancas contra a proibição de sepultamentos nas igrejas.

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favoráveis à abolição da escravatura e esse movimento tomará mais corpo a partir da segunda metade do século XIX.

A carta de alforria era um meio legal de se obter a liberdade. Ela garantia ao forro o direito à família, propriedade e herança. Mas, segundo Mattos (2000), uma lei aprovada depois da Revolta dos Malês proibia o africano de ter bens de raiz, isto é, propriedade imobiliária como terra e casa. No entanto, essa determinação não era totalmente obedecida. A alforria nem sempre representava uma melhoria nas condições de vida, mas era sempre uma condição melhor do que a de cativo. A maioria dessas cartas, embora fosse fruto da vontade do senhor, implicava em muitos esforços para o seu pagamento na forma de dinheiro, mercadoria ou outro acordo entre senhor e escravo. A compra da liberdade exigia anos de trabalho, o apoio de grupos solidários em caixas de poupança, irmandades ou doações. Estas estratégias beneficiavam principalmente os escravos urbanos, domésticos e mineiros. A concessão da maior parte das alforrias gratuitas foi feita para os que eram mais próximos dos seus senhores, tais como os filhos ilegítimos, amas-de-leite, escravos da casa e os idosos que já não podiam trabalhar. Muitos libertos idosos não tiveram outra alternativa senão a de se internar na Santa Casa para passar o resto da vida no hospital e asilos de mendigos ou engrossar o número de miseráveis vagando pelas ruas.

O liberto, egresso da escravidão, teve ainda que enfrentar o desafio da busca pela inserção em um mercado de trabalho racista e retraído por causa das sucessivas crises econômicas. Ainda que não tivessem mais a interferência direta dos (ex) proprietários em suas vidas, era necessário obter atestados de “boa conduta” para ser autorizado pela polícia a trabalhar como ganhador, morar em um novo lugar ou ser naturalizado como brasileiro. Livres, essas pessoas dedicavam-se também à plantação de roças onde cultivavam gêneros de subsistência. Outros regressaram à África após a liberdade, sobretudo para fugir do preconceito e repressão que os africanos, principalmente aqueles muçulmanos, passaram a sofrer após a já citada Revolta dos Malês. Mattos (2002) aponta que uma taxa anual era cobrada dos africanos forros de ambos os sexos, sem que lhes fosse especificada a razão. Previa a mesma lei que, caso um africano denunciasse outro envolvido em projeto de insurreição, estaria automaticamente livre da taxa citada e no caso de o denunciante ser escravo, seria libertado mediante pagamento de seu valor de mercado ao proprietário. A necessidade do controle e punição dessa

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população fez com que esse tipo de lei fosse sancionada. Ainda dentro de uma política deliberada de exclusão, estipulavam-se, entre outros impostos, taxas para africanos livres que trabalhassem em saveiros ou cadeiras de aluguel.

Ao que parece, a impossibilidade de exclusão imediata desses segmentos negros nas atividades de serviços urbanos, fez com que o poder público adotasse o mecanismo da taxação progressiva e ascendente, não só como forma de aumentar as rendas provinciais, mas também como estratégia indireta para alcançar o objetivo da exclusão, num lapso de tempo suficiente para articular formas de substituição da mão-de-obra africana e escrava, nesses ramos de atividades. Dessa forma, a necessária continuidade dos serviços não ficaria comprometida (MATTOS, 2000, p.132).

A guerra da independência e as transformações da conjuntura internacional foram as principais causas do declínio econômico baiano, ocorrido a partir de 1821. A economia baiana, extremamente dependente dos negros, passou por sucessivas fases durante aquele século, nomeadas segundo Costa (1989, p.27) como: 1787 a 1821 - Prosperidade; 1822 a 1842/45 - Depressão; 1842/45 a 1860 - Recuperação; 1860 a 1887 - Grande Depressão; 1887 a 1897 - Recuperação; 1897 a 1905 - Crise. Conseqüentemente, diminuiu-se a demanda da mão-de-obra escrava em função dessa crise, seguida de um relativo “barateamento” dos custos da alforria. A partir da promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em 04 de setembro de 1850, que extinguia o tráfico negreiro, instalou-se um período de transição do regime escravagista para o trabalho livre, mas sem a certeza da brevidade do fim da escravatura. Apesar disso, o tráfico continuava e se mantinha como atividade mais lucrativa da província (COSTA, 1989). As crises significaram o aumento do custo de vida e oneravam a manutenção de cativos, dificultando sua sobrevivência.

O declínio da escravatura já era visível em fins do século XIX, quando a população livre e liberta negra do Império (4.200.000 negros e mestiços livres) superava a de 1.500.000 escravos (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p.157). Nessa conjuntura, o Império tomou algumas iniciativas para a substituição do trabalho escravo, como a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, que considerava livre a criança nascida das mulheres escravas, ficando sob responsabilidade dos senhores de escravos até os oito anos de idade.

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Paralelamente, o movimento abolicionista se fortalecia no país, envolvendo sujeitos de diversas origens sociais. Foram criadas inúmeras associações abolicionistas como a Sociedade Abolicionista Dois de Julho, da Faculdade de Medicina da Bahia, fundada em 1852 por estudantes, ou o Clube Castro Alves, formado por mulheres. Tal movimento promovia eventos para arrecadação de fundos para a compra de alforrias, mobilizando enorme quantidade de pessoas nas grandes cidades do país. Em 13 de maio de 1888, foi promulgada, finalmente, a lei que extinguia a escravidão - a Lei Áurea - sem, entretanto se pronunciar em relação à reparação aos ex-escravos. Albuquerque e Fraga Filho (2006, p.196) informam que, nesse momento, 90% dos cativos já eram livres por meio de fugas ou alforrias.

Até o século XIX, a imigração branca, predominantemente portuguesa e masculina, foi o fator que estimulou muito a miscigenação (MATTOSO, 1992). Até esse momento, os dois mais importantes grupos étnicos que predominaram na constituição da cidade aportavam em Salvador: os portugueses e os africanos com seus respectivos descendentes, a exemplo dos Iorubas (MOURA, 1998).

1.1 A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO DE SALVADOR

O planejamento inicial da metrópole colonial não foi suficiente para conter o processo de ocupação da cidade que rapidamente se expandia interior adentro (SAMPAIO, 1999). A figura 2, abaixo, revela a ocupação do espaço físico de Salvador a partir do século XVII, denominado século de ouro da Bahia.

Referências

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