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O planejamento inicial da metrópole colonial não foi suficiente para conter o processo de ocupação da cidade que rapidamente se expandia interior adentro (SAMPAIO, 1999). A figura 2, abaixo, revela a ocupação do espaço físico de Salvador a partir do século XVII, denominado século de ouro da Bahia.

Fonte: Atlas escolar Bahia: espaço geo-histórico e cultural.2ª ed. João Pessoa: Grafset, 2004

FIGURA 2 – Ocupação do espaço físico da cidade de Salvador – 1600/1940

Desde esse século, tem-se notícia de agrupamentos de escravos fugitivos ou mocambos se instalando na parte mais continental da capital baiana. Havia também algumas fazendas e o aparecimento de quilombos no entorno da cidade oficial. Tais quilombos foram os principais responsáveis pelo povoamento da cidade em bairros periféricos, consolidados posteriormente. As roças espalhadas no interior da cidade também foram a alternativa encontrada para a sobrevivência dos libertos.

Segundo informa Costa (1989), os limites do termo de Salvador permaneceram inalterados até meados do século XX, quando foram emancipados os municípios de Simões Filho e Lauro de Freitas. O espaço urbano da cidade era divido em “freguesias”, ou seja, as menores delimitações do território eclesiástico, que tinham como sede uma igreja matriz sob a responsabilidade de um pároco. Essas, por sua vez, podiam ser urbanas e rurais. As freguesias urbanas de Salvador eram: Salvador na Sé, Nossa Senhora Conceição da Praia, Santíssimo Sacramento do Pilar, Santo Antônio Além do Carmo, Nossa Senhora da Penha em Itapagipe, Sacramento em Santa Ana, Nossa Senhora de Brotas, São Pedro Velho, Sacramento da Rua do Passo e Nossa Senhora da Vitória.

As freguesias suburbanas ou rurais eram aquelas nas quais os habitantes se dedicavam principalmente à agricultura. Pouco povoadas, concentravam maior densidade demográfica próximo às igrejas matrizes, além de serem constituídas majoritariamente por pobres. Eram estas: São Bartolomeu de Pirajá, Nossa Senhora do Ó em Paripe, São

Miguel em Cotegipe, Nossa Senhora da Piedade em Matoim, Santo Amaro de Ipitanga, São Pedro no Sauípe da Torre, Senhor do Bonfim da Mata, Santa Vera Cruz em Itaparica, Santo Amaro em Itaparica, Nossa Senhora da Encarnação do Passé (COSTA, 1989).

No final do século XVIII, já se percebia a necessidade de rever o traçado inicial de cidade-fortaleza, porém somente no século seguinte conseguiu-se realizar algumas intervenções pontuais (SOARES, 2007).

A abolição da Escravatura, em 1888 — assim como a Proclamação da República (1889) — integravam um quadro social de afloramento dos conflitos da sociedade brasileira, desejosa de uma rápida inserção na modernidade ocidental. Essa última representava, antes de tudo, uma passagem do modo de vida colonial para um predominantemente disciplinar, configurado “a partir de e na atualização de práticas urbanas” (ARAÚJO, 2006).

A civilização tão almejada pela elite baiana materializava-se principalmente no processo de reforma urbana iniciado nessa época, o qual estimulava a segregação dos indivíduos. Houve inclusive tentativas de substituição do trabalhador negro pelo do imigrante europeu, mas todas foram fracassadas. A preocupação com o controle da população negra e mestiça livre desencadeou uma série de medidas de caráter normativo e disciplinar, nas quais o trabalho era a questão central, pois a partir dele seriam reguladas as relações sociais. Tais reformas buscavam dar à cidade um ar de salubridade e estética, ou seja, pretendia-se transformar a cidade de Salvador em mercadoria.

Segundo Moura (1998), entre o último quartel do século XIX e os anos 1950, o expoente comercial do Atlântico perdeu seu posto, distanciando-se do dinamismo da economia nacional e mundial. Somente com a implantação da indústria de extração e refino de petróleo a partir de 1953 é que essa posição foi alterada. Os anos seguintes, especialmente a década de 1970, potencializaram a industrialização com a constituição de um pólo petroquímico e conseqüentes transformações urbanas. Além disso, houve mudanças de hábitos,

...sobretudo no que concerne à integração da informação e da fruição estética aos circuitos da mídia (...). A entrada de Salvador no circuito da produção e consumo mediáticos também acontece de forma a combinar os dois vetores: a força do passado e o gosto pela novidade ( MOURA, 1998, p.25-26).

Cosmopolita e tradicional, Salvador procurou se adaptar aos arranjos econômicos que se apropriaram dos seus símbolos e encontraram-se “desigualmente distribuídos na paisagem” (RIBEIRO, 2006, p.40). Ana Ribeiro (2006), em sua análise sobre a acumulação do capital simbólico de uma cidade, afirma que estes acúmulos

resultam de investimentos culturais pretéritos, da consolidação de hábitos, da inventividade popular e da produção artística com reconhecimento internacional. Áreas da cidade, monumentos naturais e artificiais, corpos e gestos transformam-se em focos (ou nichos) da acumulação primitiva de capital simbólico. A apropriação do passado acontece de forma mais ou menos sutil, envolvendo desde a adoção de espaços públicos por empresas privadas até processos, mais diretos e violentos, de controle do patrimônio coletivo (RIBEIRO, 2006, p.41).

Na ótica do teórico Milton Moura (1998), a imagem de Salvador tem sido veiculada desde os anos 20 como a da tradição, privilegiando sempre o passado e marcada pela malemolência, lentidão, preguiça e experiência sensível primária e imediata. Neste contexto, o rádio foi o grande parceiro, pois foi a partir dele que se consolidou a divulgação de tal imagem. O mercado fonográfico lançara nesse período intérpretes como Dorival Caymmi, representante da “tradição baiana”. O samba, elevado à categoria de música nacional pelo governo de Getúlio Vargas, reverenciava a Bahia como a mãe preta da pátria, e os símbolos baianos, carregados de etnicidade, alcançaram o patamar de símbolos nacionais. É emblemática, por exemplo, a obrigatoriedade da existência de uma ala de baianas nos escolas de samba, oficializados em 1937, ou ainda a interpretação musical de Carmem Miranda, que era portuguesa, mas apresentava-se até mesmo nos Estados Unidos cantando o território brasileiro vestida de roupas típicas de baiana:

Enfim, é como se o próprio traço de a Bahia ter ficado à margem da “modernidade” e representar a permanência do tradicional, de um passado tal como se imagina que tenha decorrido se constituísse como importante ingrediente na moderna música brasileira, sempre de olho na cena internacional. Ou seja, configura-se a Bahia como uma importante “reserva de identidade nacional” no complexo sistema de representações do Brasil de hoje (MOURA, 1998, p. 26).

A lógica econômica atual dessa cidade apropriou-se deste arcabouço histórico-cultural, oferecendo a cultura e o seu patrimônio histórico e artístico para o consumo, estimulando a criação de barreiras sociais e enfraquecendo oficialmente o diálogo entre as classes. Vende-se a cultura negra da Cidade da Bahia. A terceira maior cidade do país, atualmente, tem pouco mais de 2,6 milhões de habitantes, dos quais 54,8% se identificam como pardos e 20, 4% como negros (Censo IBGE-2002). É a principal cidade da Região Metropolitana de Salvador (RMS), que tem 3,3 milhões de pessoas (IBGE, 2004), sendo 80% destas consideradas negras.

Salvador tem um processo histórico de urbanização bastante peculiar. Ela contraria a característica predominante da urbanização do país, que é a de segregar as classes populares em áreas periféricas. Marcada pela autoconstrução, a capital baiana permitiu a existência próxima de classes abastadas com as menos favorecidas. Esse aspecto demonstra que seu desenho urbano foi traçado com a presença da herança histórica do período colonial. Naquele tempo, muitas vezes os pobres e os ricos, na zona rural, viviam muito próximos ou na zona urbana dividiam a mesma casa (exemplo dos sobrados em que os andares eram ocupados de acordo com a classe social do indivíduo). Mais recentemente, adotou-se o modelo centro/periferia (SILVA, 2006), tendo como emblema a construção de alguns conjuntos habitacionais. Contudo, isto apenas corrobora o fato de que a segregação espacial no Brasil é feita por classes econômicas em cruzamento com variáveis étnico-raciais. Complementa Scherer - Warren :

...a exclusão social é racializada, engendrada, etarizada e espacializada, ou seja, tem cor, gênero ou sexo, idade ou localização. A pobreza mais extrema tende a ser preta, feminina, bastante jovem ou idosa e localiza-se nas periferias urbanas e nos bolsões de economia de subsistência rural (SCHERER - WARREN, 2004, p.58).

Os expressivos índices de pobreza e desigualdade social da cidade de Salvador4 têm sido usados para justificar a busca de financiamento internacional para inúmeros

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Salvador é a terceira maior aglomeração de pobreza metropolitana do país, segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio - PNAD. A pesquisa realizada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, em 2004, mostrou que ocupa a 8ª posição em IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) entre as doze capitais brasileiras. O IDH é um indicador que analisa a longevidade (esperança de vida ao nascer), educação e renda. Nesta metrópole, 64 % dos negros recebem até 2 salários mínimos (SM) ao mês. Mas no ano de 2003, 82,2% dos domicílios da Região Metropolitana de Salvador estavam na categoria de até 3 SM per capita ( SILVA, 2006).

projetos. Além de a miséria ser objeto de intervenções políticas pontuais, é o tema predominante nos discursos dos movimentos sociais pela afirmação e conquista de direitos. É oportuno lembrar que, mesmo após a Abolição da Escravatura, os descendentes de escravos não foram inseridos no projeto de nação brasileira. Eles não experimentaram medidas de promoção à cidadania, tendo sido largados à mercê da sorte. Suas próprias iniciativas de subsistência, soluções muitas vezes precárias de moradia, alimentação, trabalho, entre outros, lhes permitiu a sobrevivência em condição socialmente inferior. A metrópole descrita acima exemplifica bem isso, pois é comprovado que até hoje os seus bairros com maior número de habitantes negros estão entre aqueles mais pobres, sendo que os mais abastados são ocupados por população predominantemente branca, conforme enfatizam Inaiá Carvalho e Gilberto Corso Pereira:

Como a posição na estrutura social e apropriação do espaço urbano são estreitamente articuladas, o território soteropolitano termina por assumir diferentes “cores”. [...] O miolo e o subúrbio, que apresentam as condições mais precárias de habitabilidade e uma menor oferta de equipamentos e serviços urbanos, concentrando áreas classificadas como populares e subproletárias abrigam, predominantemente, os pretos e os pardos. Eles se concentram especialmente em bairros como a Liberdade (onde há uma forte identidade étnica, por conta de movimentos sociais e culturais ali sediados), São Caetano, Tancredo Neves, Pau da Lima e Cajazeiras (CARVALHO; PEREIRA, 2006, p.98)