• Nenhum resultado encontrado

UM PALITO PRA QUEBRAR É FÁCIL, AGORA TODOS EM UMA CAIXA É

3.2 CAJAZEIRAS: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO DE PERIFERIA

3.2.1 UM PALITO PRA QUEBRAR É FÁCIL, AGORA TODOS EM UMA CAIXA É

Viver em Cajazeiras estimulou a participação política de muitas pessoas. O bairro recebeu pessoas de diversos lugares, sem nenhum vínculo entre si. Aos poucos, os elos de ligação com o espaço e com o outro foram se fortalecendo e ações coletivas começaram a ser articuladas, em função da resolução de problemas emergentes, sem necessariamente passar por uma formação política, partidária ou teórica , como explica Alfredo Venceslau, coordenador da Associação de Micro-Empresários de Cajazeiras:

Olha, é... Não tinha liderança, não tinha líder, é... Os moradores e moradoras movidos pela necessidade, movidos pela carência plena é... Todos numa condição basicamente de autodidata. Foram discutindo, falando por acaso sobre as dificuldades e aí começaram a dar sugestões, mas como começar, por onde ir? E aí vinha sempre vinha uma sugestão de um e de outro e daí começou enfim é... a organização dos moradores de Cajazeiras, foi assim que se deu, movidos pelas necessidade, pela carência...

Cajazeiras foi urbanizada durante a ditadura militar e no início dessa pesquisa, notamos um grande paradoxo do movimento popular nessa região. Mesmo com um histórico de reivindicações e intensas mobilizações a favor dos direitos e da cidadania, percebe-se que muitas lideranças encontram-se ainda hoje comprometidas politicamente com os mesmos grupos que dominavam o poder durante o regime autoritário. Descobrimos que esse fenômeno se deve ao fato de que o acesso às moradias se dava oficialmente por sorteio, e extra-oficialmente também por indicação de políticos. Daí o estabelecimento de uma dívida de gratidão dos primeiros beneficiados para com os cedentes do

10

benefício, que na verdade sempre foi um direito conquistado, não um favor. Inicialmente, as moradias era muito simples, como relata Alfredo Venceslau:

...essas casas era na sua maioria era de zero quarto, um quarto. Tinha um embrião chamado zero quarto, não tinha quarto, é... Não tinha quarto, era sala, cozinha e banheiro. Outras tinham de um quarto, sala banheiro e poucas dois quartos, poucas com dois quartos. Então pra daí as pessoas sem condição, ninguém tinha condição, não tinha reboco, não tinha piso, nem as casas, nem os apartamentos. Os sanitários eram no bloco, todos por bloco, tinha um... a pia da cozinha de granito, não, não era granito, era de... parecido com granito, tinha muita diferença, era de cimento liso com as pedrinhas por cima que pareciam granito mas na verdade era de cimento a pia, era isso mesmo. Não tinha porta no quarto, só a porta da frente e a porta do banheiro.Todas as unidades foram entregues dessa maneira e as pessoas, elas tinham como base de teto três salários, dois salários, e a maior parte tudo família. Então um pai de família, mãe de família, família grande, e sem condições de ampliar, sem condições naquele momento de construir, isso tinha as suas questões evidente.

Algumas unidades habitacionais ficaram trancadas e vazias por um longo tempo, pois seus proprietários se recusavam a vir morar em um lugar com condições tão ruins de habitabilidade. Então muitas famílias invadiram essas casas, tornando-se proprietárias à força. Os primeiros moradores eram funcionários públicos municipais e estaduais num tempo em que não havia regulamentação para concursos públicos e as contratações eram feitas seguindo critérios de favorecimentos políticos e pessoais. Deste modo, pode-se entender a relação clientelista estabelecida: brigava-se por elementos pontuais, mas a fidelidade aos benfeitores acabou prevalecendo diante das primeiras conquistas coletivas.

Cada setor entregue à população recebia uma sede para o Conselho de Moradores, que recebia verbas governamentais e as administrava. As eleições eram acompanhadas e organizadas pela própria Urbis e não demorou para que houvesse uma oposição a isso, visto que o processo eleitoral dos primeiros representantes dos moradores era extremamente orientado e controlado pelo Governo do Estado. A criação de Associações de Moradores foi a grande reação, pois essas entidades eram desvinculadas da Urbis e, portanto, mais propícias à organização de um movimento social forte, com poder de mobilização e liberdade de opinião. Desde então essa população vem tentando inserir e validar os meios democráticos de participação política na gestão dessa parte da cidade. Os processos eleitorais dos representantes continuam sendo palco de grandes disputas. Ainda hoje vemos as lideranças sustentadas por políticos (vereadores,

deputados e aspirantes), especialmente os mais conservadores, descendentes das oligarquias baianas que a todo custo tentam se manter no poder.

A visão difundida do papel dessas entidades nas comunidades é a da cristalização de uma forma assistencialista de lidar com a coletividade. Elas acabam por mediar favores individuais como consultas médicas, empregos, doação de alimentos ou enterros em troca do apoio ao “caridoso” parlamentar. Algumas associações não se sentem constrangidas ao assumir que “trabalham com” algum político. Outros conseguem até benefícios maiores como o asfaltamento de uma rua, mas limitam suas ações a essa conquista, muitas vezes personalizando o movimento. O líder se torna um embaixador e porta-voz do parlamentar apoiado, agregando para si o símbolo de grande poder frente à prefeitura ou Assembléia Legislativa e reduzindo a possibilidade de uma articulação coletiva em função do bem de toda a Cajazeiras.

Esse bairro tem o maior coeficiente eleitoral da cidade, mas não possui um representante na Câmara dos Vereadores. Em períodos eleitorais, suas lideranças dividem-se no apoio aos candidatos de outros bairros ou mesmo em diversas candidaturas locais à vereança. Apenas uma vez conseguiu-se eleger um morador de Cajazeiras como vereador, mas ele não conseguiu fazer um segundo mandato. A grande referência política para a esquerda dessa região foi a presença de um ex-guerrilheiro do Araguaia, Jaime Bonfim, já falecido, que havia sido preso e perseguido político durante a ditadura militar. Deste modo, os livros que possuía eram precavidamente escondidos, mas essa literatura esquerdista nutriu vários jovens cajazeirenses nos anos oitenta. Bonfim também foi o principal mobilizador em Cajazeiras das primeiras eleições presidenciais e montou o comitê do então candidato Luís Inácio Lula da Silva, em 1989. Em torno desse comitê uma nova corrente de pensamento se firmava em Cajazeiras, estimulando a militância nos Partidos dos Trabalhadores (PT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e nos movimentos sociais em geral.

Com a intensidade dos movimentos populares reavivada na abertura democrática do país e nas questões específicas de Cajazeiras, tais como a ausência de transporte e telefone público, as lideranças locais resolveram criar uma entidade que aglutinasse todas as outras associações para aumentar seu poder de negociação face aos órgãos públicos. Começaram fundando o Fórum da Cidadania de Cajazeiras, registrado até em

cartório, no entanto, esse Fórum teve uma breve vida política devido às disputas internas. Substituíram-no pela União das Associações de Moradores e Entidades Representativas de Cajazeiras e Adjacências (União), que representa mais de trinta e cinco entidades entre conselhos e associações de moradores, clube de mães e organizações não-governamentais. A União foi criada em 1993, mas a consulta aos documentos dessa entidade (livro de Atas de reuniões, estatuto e resoluções dos simpósios) nos foi negada por seu presidente, que concentra praticamente todo o poder de decisão. A organização está sob a presidência da mesma pessoa praticamente desde sua fundação. Percebemos que é uma entidade incontestavelmente representativa sob o ponto de vista oficial, embora sua organicidade pareça um tanto quanto precária. Os membros da diretoria têm pouco contato entre si e raros foram aqueles entrevistados que tinham como contactar os demais colegas da entidade. Tudo parece centralizado na figura do seu presidente, que também não tinha contato com todos os seus diretores. Fomos informados de que realizam reuniões periódicas e Congressos, mas não pudemos consultar os documentos relativos a esses encontros. A União reúne-se quando há algum projeto a ser desenvolvido na comunidade e a discussão política parece vir em segundo plano. Além disso, mantém um curso de informática para adolescentes e está empenhada no desenvolvimento de um projeto de ação cultural envolvendo os jovens da região, patrocinado por órgãos públicos, o CajaArte.

Durante as entrevistas, com exceção da Cajaverde, ninguém assumiu suas preferências políticas e nem seu envolvimento com a militância de partidos políticos, principalmente os ligados ao carlismo11, que se enfraqueceu após a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições presidenciais de 2002. O presidente eleito, Luís Inácio Lula da Silva desfrutava de igual prestígio e carisma que Antônio Carlos Magalhães (ACM) entre as classes populares de Salvador e os números das eleições demonstravam que Lula e ACM, posicionados ideologicamente em lados opostos, eram lideranças aclamadas pelo povo soteropolitano.

Em 2006 o PT elegeu o seu primeiro governador na Bahia, o que mudou radicalmente as atitudes da maioria dos representantes de moradores. De estigmatizados e isolados,

11

O termo carlismo designa o grupo de apoiadores de Antônio Carlos Magalhães, político conservador, autoritário e muito influente no Estado, falecido em 2007.

os esquerdistas passaram a ser respeitados como prováveis captadores de benesses para a região.

Fonte: Arquivo Cajaverde

FOTO 08 – 2ª Marcha da Consciência Negra de Cajazeiras, em 2007

A Cajaverde parece ter se tornado um reduto do pensamento da esquerda de Cajazeiras, conseguindo reunir pessoas ligadas ao PT e ao PCdoB, militantes de movimentos sociais (movimentos negro, estudantil, popular, ambientalista, de mulheres) e representantes de moradores. A Cajaverde – Organização Ambiental e Cultural de Cajazeiras é uma organização-não governamental, fundada em 20 de setembro de 2005, na Fazenda Grande 2. Seus objetivos e finalidades são:

I) Defender o e proteger o meio ambiente e recursos naturais, preservando áreas ecologicamente importantes, conservando a biodiversidade e estimulando a criação de unidades de conservação; II) Estimular e desenvolver o pleno exercício da cidadania através da qualificação profissional através da educação e do resgate das tradições culturais da sociedade;

III)Promoção e geração de renda comunitária;

IV)Promover a assistência social beneficente nas áreas de meio ambiente, infância, adolescência e educação para pessoas carentes e minorias;

V)Difundir atividades educativas, culturais e científicas realizando pesquisas, conferências, seminários, cursos, treinamentos, editando publicações , vídeos, processamento de dados, assessoria técnica nos campos ambiental, educacional e associado- cultural, bem como comercialização de publicações, vídeos, serviços e assessoria, programas de informática, camisetas, adesivos, materiais destinados a divulgação e informação sobre o objeto do Cajaverde

-ORGANIZAÇÃO AMBIENTAL E CULTURAL DE CAJAZEIRAS desde que o produto desta comercialização reverta para a realização desses objetos.

VI) Estimular a parceria, diálogo local e solidariedade entre os diferentes segmentos sociais, participando junto a outras atividades que visem interesses comuns. (ESTATUTO SOCIAL DA CAJAVERDE..., 2005, p.01)

A Cajaverde retomou a antiga proposta de uma entidade que discutisse e representasse a coletividade dos movimentos populares daquela área e vem tentando articular o Fórum Cajazeiras desde 2005, sem muito sucesso. Porém, tem conseguido atrair diversas entidades para apoiar suas campanhas de mobilização como as Caminhadas do Dia da Consciência Negra, Dia da Água e Pelo Parque Ecológico de Cajazeiras. A logomarca da Cajaverde é a Pedra do Buraco do Tatu.