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As mudanças urbanas mais significativas para Salvador ocorreram efetivamente a partir do século XIX, especialmente, durante a Primeira República (1889-1930). Conforme Araújo (2006), a elite urbana que se fortalecia desde a fuga da família real portuguesa para o Brasil (1808) se consolidava cada vez mais através das mudanças ocorridas nas cidades. No centro dos conflitos existentes no processo de formação desses grupos sociais encontrávamos novas e estigmatizadas as relações de gênero, idade/geração, classe e raça. Essas elites, entretanto, não pouparam esforços para a implementação do modo de vida urbano, sobretudo em Salvador. Alguns fatores definiam sua unidade, quais sejam: educação, ocupação e carreiras políticas. Essa elite baiana era branca na pele ou na mentalidade, pois além do dinheiro, possuía estudos superiores, concentrados nas áreas de medicina, direito e engenharia e vasta experiência de governo devido ao seu relacionamento com a burocracia estatal.

No período que segue à abolição da escravatura no país, a Primeira República (1889- 1930) também as intervenções de política urbanística não consideravam a cidade como um todo, priorizavam melhoramentos pontuais no centro e ignoravam o resto, que crescia incessantemente. As ações realizadas ainda não concebiam a cidade na sua totalidade, nem detinham seu crescimento, mas eram concebidas segundo a ideologia da época, que preconizava o vínculo entre urbanização e normatização do uso do espaço público e privado pelos habitantes, especialmente aqueles das classes populares. Em nome dos ideais de civilidade, moralização dos costumes, controle, combate e prevenção de doenças, assim como as tentativas de controle social e de desafricanização dos costumes, foram também estabelecidas regras de comportamento (gestos, vestuário, trabalho, entre outros) através dos novos modos de sociabilidade. Desejava-se uma sociedade homogênea, mas isto era impossível diante da realidade baiana na qual predominavam a pluralidade de modos de vida e a influência africana. Tudo o que fugia do desenho homogeneizador era tratado como desvio. Aos negros era associada a idéia de barbárie, atraso, falta de higiene, incivilidade:

No contraponto a essa elite dita civilizada, encontramos as camadas populares. Uma população, que com o processo de abolição da escravatura, ia se constituindo ao mesmo tempo pobres e livres e, em sua maioria, negros e mestiços, fazendo das ruas soteropolitanas os seus domínios. Os afrodescendentes demarcavam as linhas divisórias entre os grupos da elite baiana e a “barbárie da cultura popular afrodescendente”. Dessa maneira, o negro dentre outros tipos humanos, na mentalidade dessa elite, mais do que nenhum outro segmento das camadas populares passava a representar o anticivilizado. Pobres e pretos, homens e mulheres, crianças, velhos e adultos, livres, libertos e cativos (até a abolição de 1888), mendigos e vadios, através de uma complexa rede de distinções e diferenciações reguladoras da gramática urbana, se reconheciam e se diferenciavam mutuamente, constituindo seus lugares na geografia da cidade (ARAÚJO, 1989, p.149).

Os engenheiros higienistas e sanitaristas da época pensavam seus trabalhos com base na estética, na salubridade do meio físico e na circulação viária. Estes eram formados por instituições acadêmicas que reproduziam amplamente as teorias raciais que justificavam o atraso do país pela sua miscigenação. As concepções científicas e filosóficas de origem européias eram adaptadas ao Brasil, sofrendo pequenas transformações, sem, entretanto, representar possibilidades otimistas para os brasileiros. Tais profissionais adotaram a idéia de que as classes populares (negras e mestiças) eram classes perigosas e a disciplinarização do seu comportamento era a solução. Daí a segregação espacial à qual foram submetidas: tiveram que passar a ocupar as áreas mais longínquas do centro.

Fonte:SAMPAIO, 1999, p.182.

Os pobres de Salvador que habitavam as freguesias urbanas viviam em edifícios que abrigavam inúmeras famílias (cortiços), cômodos construídos nas áreas disponíveis como os quintais ou terrenos dos sobrados, muitos divididos apenas por uma parede, o que favorecia o alastramento de doenças e incêndios. Moravam também em casas térreas, construídas com materiais diversos, tais como pedra e cal, tijolo, adobe, telhados de telha ou palha, sendo que estas últimas representavam 72, 1% das moradias da cidade em meados do século XIX (COSTA, 1989).

Não havia distinção entre os espaços dos ricos e dos pobres: as habitações eram erguidas lado-a-lado. Viver ao lado do rico, entretanto, não significava viver em condições de salubridade. Não havia um sistema regular de abastecimento de água, e nem esgotamento sanitário. Os dejetos eram jogados na rua. A cidade era muito suja. Os pobres, por suas condições de moradia, eram considerados os responsáveis pela disseminação das doenças.

Segundo Araújo (2006), a situação não se altera muito nas primeiras décadas do século XX devido às condições precárias de vida do trabalhador que pioravam com a carestia dos gêneros alimentícios, instabilidade do emprego e da compressão salarial, além do crescimento demográfico. O trabalhador livre via na cidade a possibilidade da venda de sua força de trabalho, agravando ainda mais a problemática urbana.

A urbanização da cidade começou, então, sem a industrialização em seu espaço. Pavimentação e alargamento de ruas importantes, construção da Rua Ladeira da Montanha, que liga a cidade baixa à cidade alta; construção do porto, cais e armazéns, entre outros, foram medidas aplicadas em Salvador. As construções também passaram a estar sujeitas à aprovação do poder público e deveriam atender critérios de higiene e estética. Previa-se também o estímulo à edificação de habitações para as classes pobres e operárias, tais como a isenção de impostos, havendo a seleção de determinadas áreas para a moradia dessas pessoas.

As vilas operárias deveriam ser próximas dos postos de trabalhos, obedecer aos padrões de higiene e da arquitetura moderna, assim como oferecer escolas e outros espaços estimulantes do trabalho. As casas eram alugadas aos empregados e pertenciam aos seus respectivos patrões, acrescentando-se a este último mais uma arma de controle em

relação a seus subordinados. Muniz Sodré (2002) chama a atenção para este período e para as condições de vida e moradia dos descendentes de escravos nas cidades:

Considere-se, por exemplo, o problema da habitação popular. As esporádicas intervenções do Estado nesse setor visavam a reforma dos alojamentos de um abstrato “operário”, categoria que incluía os pouco numerosos trabalhadores da indústria nascente, mas que não se preocupava com os subempregados, desempregados ou toda a mão - de - obra não contabilizada pelos registros de assalariamento do capital. Os negros, que entravam maciçamente nessa zona excluída pelos processos e socialização reconhecíveis, encontram na esfera do consumo um vazio a ser preenchido por táticas econômicas de sobrevivência e por estratégias de persistência étnica – agrupamentos conscientes (quilombos, terreiros), ou não-conscientes (vegetativos), capazes de oferecer alguma proteção contra o desejo latente de genocídio por parte das elites governantes ( SODRÉ, 2002, p.117).

As áreas planejadas para a elite expandiam a cidade em direção às praias do litoral sul e somente nesse momento a cidade passa a ser vista como mercadoria, devendo valorizar- se esteticamente para competir no mercado internacional. É no século XX que Salvador adota feições capitalistas a partir de uma incipiente industrialização e começa a existir uma preocupação com equipamentos de consumo coletivo para a população que possibilitasse a regulação do meio ambiente e a construção de infra-estrutura para tal. Surgiu, em 1935, um primeiro esquema de modernização da cidade, que se articulava principalmente pela ligação bairro-centro, ocupação das cumeadas, sistema viário nos talvegues e uma preocupação com a habitação social que implicavam áreas de expansão para cidade. Thales de Azevedo (1996, p.67) alerta para o fato de que, nessa época,

[a] maioria das pessoas de cor vive, como toda a classe baixa, em bairros pobres nos contornos da cidade ou em pequenos aglomerados de casas modestas intercaladas nas áreas residenciais das classes mais altas; porém nestas vivem, ao lado dos brancos, muitas famílias de cor de status intermediário ou superior.

A partir dos anos 1940, Salvador passou a sofrer grandes transformações no seu tecido urbano. Datam dessa época também os primeiros registros de criação de “invasões” de terreno, ou seja, ocupações de terrenos organizadas pelo movimento social pró-moradia, atualmente chamadas também de ocupações espontâneas. O Estado Novo (1937-1945) influenciaria o pensamento e a prática política da época na convivência com a dinamização da indústria brasileira no pós-guerra. Criou-se, em 1943, o Escritório do

Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador (EPUCS) que impulsionou a efetivação de um esquema traçado para a modernização da cidade. O enfoque era global e originou muitas das configurações que temos hoje:

...o EPUCS articulava-se a partir de dois grandes sistemas viários: as vias de penetração e as vias de irradiação distribuídas em cintas concêntricas e linhas radiais. Do plano ainda constavam proposições especiais nas áreas de saúde, saneamento, serviços, segurança, educação, cultura e habitação. As vias davam uma nova dimensão na configuração da cidade, indicando as áreas para a expansão urbana de Salvador (SOARES, 2007, p.08).

Com a morte do idealizador do EPUCS, professor Mário Leal Ferreira, houve uma sucessão de tentativas de continuidade do seu plano urbanístico, mas sem sucesso. O desenvolvimento industrial que experimentava Salvador e o conseqüente aumento do fluxo migratório das décadas seguintes estimularam as preocupações com o tecido urbano. A descoberta do petróleo em áreas da cidade (Subúrbio Ferroviário) incentivou a economia regional e Salvador se tornou a principal referência nordestina de industrialização moderna (SOARES, 2007).

A partir dos anos 1960, foram determinados três vetores de expansão para Salvador: subúrbio ferroviário no litoral da Bahia de Todos os Santos, orla marítima atlântica/norte e central (miolo urbano). Além do crescimento demográfico, a cidade se transformou com mudanças econômicas, administrativas e sociais como, por exemplo, a transferência da região industrial que ficava no interior do perímetro urbano para os municípios de Camaçari (constituição do Complexo Petroquímico de Camaçari — COPEC — e Simões Filho (Centro Industrial de Aratu - CIA). Isso determinou a criação de bairros residenciais que abrigassem as novas classes média e alta, aumentou a demanda por habitação popular, estimulando a criação de conjuntos habitacionais que recebessem os trabalhadores, sem, no entanto, conter o crescimento de bairros periféricos que abrigavam operários de baixa renda, migrantes e desempregados.

A criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU) nos anos 1960 expressam a preocupação institucional com a formatação de planos e diretrizes urbanísticas, sem apresentar, porém, resultados práticos significativos.

Ocupação urbana (1940) ocupação urbana (1970)

Ocupação urbana (1976) ocupação urbana (1983)

Fonte:SAMPAIO, 1999, p.182

FIGURA 4 - Ocupação urbana de Salvador (1940-1983)

Nos anos 1970, criaram-se o Centro Industrial de Aratu (CIA) e o Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC). Tinha-se como estratégia a fixação de seus trabalhadores em cidades da então criada Região Metropolitana de Salvador (RMS), mas isto não ocorreu. Esses trabalhadores (muitos oriundos de outras cidades e estados) não se estabeleceram nos municípios vizinhos à capital da Bahia, preferindo viver em Salvador que, embora possuísse uma infra-estrutura precária em vários sentidos, respondia por mais de 80% dos habitantes da RMS. O CIA e o COPEC representaram, à época de sua instalação nos anos 70, a solução para a letargia da economia baiana. Criou-se uma nova centralidade periférica industrial para atender as demandas do Complexo Industrial de Aratu, em Simões Filho, e o Complexo Petroquímico de

Camaçari. Embora esses novos postos de trabalho estivessem fora de Salvador, a metrópole concentrava a melhor infra-estrutura da RMS, e atraiu muitos migrantes, tendo que se reestruturar para receber esses trabalhadores, constituintes de novas classes sociais. Houve um crescimento desenfreado da população ocupando favelas, além da criação de bairros residenciais para as classes média e alta e de conjuntos habitacionais populares em áreas próximas aos postos de trabalho, como o Complexo Cajazeiras, que aqui nos interessa mais de perto.

A habitação e o planejamento urbano estavam entre as principais preocupações do governo, que então considerava a questão habitacional como o cerne de todos os problemas sociais daquele tempo. Criou-se a Companhia Estadual de Desenvolvimento Urbano (CEDURB) que operacionalizou a concretização de três grandes projetos urbanísticos para a RMS: Projeto Urbanístico Integrado Narandiba, Projeto Urbanístico Integrado Caji e Projeto Urbanístico Integrado Cajazeira. A lógica era ter um planejamento integrado, aqui compreendido como a proximidade entre casa e emprego.

O Projeto Narandiba justificava-se pela proximidade com o recém - instalado pólo de atividades comerciais na região conhecida como Iguatemi, que prometia abrigar 100 mil pessoas. O Caji, ao norte, mas em outro município, Lauro de Freitas, teria 30 mil habitações e seria um novo pólo urbano. O Complexo Cajazeiras seria um grande núcleo habitacional, com inicialmente “seis mil novas habitações, toda a infra-estrutura necessária, centros vizinhos de comércio e serviços” (ALMEIDA, 2005, p.40) o qual pretendia ainda frear o aumento da ocorrência de “invasões”. Dados do IBGE (SOARES, 2007) asseguram que a população de Salvador em 2007 era de 2.892.625 habitantes, sendo que cerca de 63% dela vivia em áreas ocupadas informalmente.

Os Conjuntos Cajazeiras 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10 e 11 ficaram prontos até 1986, mas o 9 não saiu do papel. Foram construídas até aquele momento 10.866 unidades habitacionais, entretanto, uma boa parte da população com rendimento de até dois salários mínimos, público - alvo desse projeto, não fora contemplada com a moradia. Entre 1979 e 1987, foram instaladas 6.824 habitações através de “ocupação espontânea

ou invasão5” do espaço, representando 30% do total de moradias de Cajazeiras (ALMEIDA, 2005). O Estado passou a intervir nessas áreas somente a partir de 1997 e as áreas privilegiadas com serviços urbanos ainda se concentram nos bairros de classes média e alta.