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3.1 DESENHANDO FRONTEIRAS

3.1.1 LEITURAS IDENTITÁRIAS

A identidade é construída socialmente e desenha escolhas políticas de grupos humanos. A reivindicação das identificações encontra-se num quadro de dividendos políticos, sendo necessária uma observação primordial do lugar de fala desses sujeitos contemporâneos, por isso acentuamos que no presente estudo optamos por trabalhar com as representações das lideranças comunitárias, que não são a totalidade dos cajazeirenses, mas são aqueles que se apresentam como interlocutores perante a Cidade do Salvador, além de serem moradores, sujeitos que constituem a história do bairro.

Não podemos ignorar, contudo, que essas declarações identitárias ocorrem em situação política especial, diferindo das proferidas em períodos totalitários de antes. As políticas públicas favoráveis à participação e à reparação – que são conseqüências da pressão exercida pelos movimentos sociais – têm estimulado a organização de setores populares em função da inclusão de áreas historicamente preteridas do processo de desenvolvimento social. Os meios institucionais que operacionalizam esses instrumentos políticos (conselhos consultivos e esferas do governo federal, estadual e municipal) também têm sofrido mudanças profundas com o enfraquecimento de estruturas arcaicas de poder local, a exemplo das oligarquias baianas. Vivemos atualmente no Estado um momento em que muitos representantes de movimentos sociais estão integrando o quadro de gestores públicos, fortalecendo demandas anteriores e espaços de interlocução com as comunidades. Portanto, a perspectiva de

melhoria das condições de vida no bairro (ou inclusão na cidade) é bem maior que antes, pois muitos recortes dessas políticas são feitos direcionando-se às “minorias”, como no caso das mulheres, dos negros ou dos homossexuais. Todavia, isto não quer dizer que o embate pela integração – ou pertencimento – de Cajazeiras à cidade de Salvador deixe de acontecer. Ao contrário, ele retoma o fôlego.

Ao se reportarem à cidade de Salvador era muito comum ouvirmos dos sujeitos entrevistados expressões como “lá fora”, “na cidade”, “lá dentro de Salvador”... É como se, na percepção deles, Cajazeiras não fosse parte de Salvador. Não só pela sua distância física dos centros econômicos, culturais e políticos, mas, sobretudo, pela história de exclusão de sua população em relação à cidade. A capital baiana exclui Cajazeiras porque não tem tido interesse em executar políticas públicas de promoção do desenvolvimento social desta parte pobre, negra e desprovida de um aparato visual que lhe confira uma dimensão histórica e artística como a da cidade turística. No entanto, Cajazeiras é, em si, uma continuação da cidade, espaço resultante da vivência histórica dos povos marginalizados na Bahia.

Essa relação permite o aflorar da problemática da cultura, pois ela é constantemente palco dos conflitos e negociações que a transformam. A cultura problematiza a relação do indivíduo consigo próprio e com o social (a sua cultura) através de conflitos, alianças, redefinição da posição social. As cidades são o palco dessa situação, pois elas facilitam e induzem o relacionamento de diversos textos identitários. Mas o processo identitário depende de um Outro. Esse “outro” aqui é a cidade de Salvador apartada de Cajazeiras, aquela construída pelo imaginário da baianidade, pelo marketing do turismo, como reflete Dinho Melo:

Agora o triste é que o sistema usa o negro pra vender a imagem da cidade como a maior cidade negra fora da África, atrai o turista pra isso, mas ao mesmo tempo ou no entanto não dá espaço ao negro assim. Você tem, você nunca teve um Secretário de Turismo -nem na prefeitura, nem no governo do Estado afrodescendente, um secretário no primeiro escalão. Mas você tem o negro, a capoeira, o acarajé, toda a sua culinária, a cultura e religião, como atrativo para o turismo, mas você não tem um negro como é, primeiro escalão, como divulgador dessa cultura. É engraçado, como é que você tem uma população que é usada para atrair o turista, mas você tem na linha de frente o afrodescendente dizendo como é que ele quer que o turista veja. Aí não tem, aí é que entra a música de Gilberto Gil, de Edson Gomes, do Ilê Aiyê denunciando tudo. O

turista ele pode ver o Olodum, o Ilê Aiyê, mas ele não sabe assim a raiz da problemática de que é.

Manuel Castells reforça que a construção da identidade acontece no meio das relações de poder e sugere três formas e origens desse processo: identidade legitimadora, identidade de resistência e identidade de projeto (CASTELLS, 2006). A identidade legitimadora seria aquela legitimada pela sociedade civil. Em nosso caso, a identidade legitimadora é a baianidade, discurso oficial da cidade, visto que foi

...introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de se expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais, tema este que está no cerne da teoria de autoridade e dominação de Sennett, e se aplica a diversas teorias do nacionalismo (CASTELLS, 2006, p.24).

A capital da Bahia nos anos 1990 consolidou sua condição de cidade enquanto mercadoria, que entra na disputa do mercado internacional, vendendo sua própria imagem. Nesta ótica, a metrópole selecionou espaços urbanos para representarem suas imagens-síntese, reformando-os sem resolver os problemas da exclusão social ao qual o povo negro da cidade está sujeito. A imagem desse novo produto, o Bahia é o resultado dos vetores da cultura local e da estrutura da cultura midiática, elementos fundamentais da globalização cultural. O “produto Bahia” insere-se no mercado cultural assegurado por sua diferenciação (seus agentes / produtos culturais) divulgada pela mídia. Mas tudo foi amparado em uma diretriz política governamental de associação entre política, comunicação e cultura. É importante frisar que atualmente a presença negra resultante da perseverança das estratégias culturais dos descendentes de africanos figura nesse cenário como personagem principal: a cultura afro-baiana.

A identidade de resistência, “criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que

permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos” (CASTELLS, 2006, p.24) é percebida em Cajazeiras quando notamos a materialização da intenção de responder à situação de não incorporação (ou exclusão) desses moradores na identidade legitimadora da cidade de Salvador.

As lideranças demonstram uma consciência da importância do bairro para o contexto de cidade, da sua relevância na hora de eleger os representantes da cidade e de seu diferencial em relação a outras áreas. Isto é muito claro nas palavras de Kilson Melo, membro do Conselho de Moradores de Fazenda Grande 2, morador há 18 anos e coordenador da Cajaverde, e nas de Alfredo Venceslau, da Associação de Micro Empresários de Cajazeiras:

Pra Salvador hoje nós aqui em Cajazeiras, nós temos o maior coeficiente eleitoral da Bahia. É, então isso tem um preço muito grande, um valor muito grande, um valor político muito grande. E eu penso que os governos municipais que passaram esqueceu muito Cajazeiras, deixou Cajazeiras muito de lado. E pra Salvador eu penso que é uma parte, né? Nós temos aqui cerca de 40% da água que toda Salvador bebe. Sai daqui do nosso quintal! Uma área vasta ainda de Mata Atlântica preservada, e aí eu falo um pouco da questão do Rio Ipitanga, né? Chega a 5 Km de assoreamento, mas ainda tem muito verde que a gente tem que estar aproveitando, né, eu acho que é o pulmão né, que a gente fala né, de como tem [Parque] Pituaçu que tem uma grande área, nós temos aqui Cajazeiras que tem uma área maior ainda de remanescente da Mata Atlântica, né. Hoje também pegando a questão cultural, é, hoje concentra um dos maiores locais de terreiros, né, pegando Salvador, um crescimento muito grande de terreiros por conta das áreas verdes chegaram vários terreiros pra aqui pra Cajazeiras. E a questão cultural também, eu penso que, é hoje Cajazeiras como as grandes periferias também de Salvador é um caldeirão cultural! Agora falta, né, políticas públicas pra que Cajazeiras se sinta parte de Salvador .

Agora tem uma coisa que precisa se registrar: não tem nada em Cajazeiras hoje... e que Cajazeiras hoje não é a de ontem, não é a de ontem! É fruto da sua luta e fruto do processo natural da condição. Mas não tem nada em Cajazeiras que tenha vindo de mão beijada, que tenha vindo aqui porque o Senhor Governador, porque o Senhor Prefeito, porque o Senhor Vereador, porque o Senhor Presidente da República achou que deveria colocar em Cajazeiras, veio e disse, olha, convocou a comunidade e daí: “Eu estou aqui pra fazer uma surpresa pra vocês: está aqui! ”Não! Nada aqui aconteceu dessa forma, tudo veio através de uma luta, até mesmo as empresas de maior porte foi a comunidade que deslocou, foi lá.

Uma vez que o sentimento de não pertença ou exclusão da cidade do Salvador é bastante comum, há aqueles que reagem em sentido contrário, vislumbrando a total

independência de Salvador. Existe atualmente um grupo de lideranças que defendem com convicção a emancipação de Cajazeiras, como se pode observar no depoimento de Ramalho de Souza Barreto, presidente da Associação Ambiental e Protetora da Pedra do Ramalho, morador da Fazenda Grande 2 há 13 anos:

Cajazeiras e Salvador têm uma parceria muito boa. Se combinam muito bem. O que eu acho que na realidade as recardações [arrecadações] que podem ser feitas por aqui não ficam aqui, vai pra lá pra Salvador. Aí o quê que acontece quando se precisa fazer alguma coisa em beneficio da comunidade daqui? Aí é onde vem as dificuldades. Por que vem essas dificuldade aí? Porque a gente não entende o porquê essa situação. Então, no meu entender eu acredito eu que se emancipar Cajazeiras a população dessa comunidade melhora muito, melhora muito eu acredito...