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Mística e Psicanálise: Experiências do desejo e do amor do Absoluto

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DO DESEJO

E DO AMOR

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Título Mística e Psicanálise

Experiências do desejo e do amor do Absoluto Autora

Eugénia Magalhães Direitos Reservados

¤ Esfera do Caos Editores e Autora Design da capa

Design Glow Impressão e Acabamento Europress - Indústria Gráfica

Depósito Legal 400612/15 ISBN 978-989-680-157-1 1ª Edição Novembro de 2015

ESFERA DO CAOS EDITORES Campo Grande Apartado 52199 1721-501 Lisboa esfera.do.caos@netvisao.pt

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Eugénia Magalhães

Prefácio

José Augusto Ramos

EXPERIÊNCIAS

DO DESEJO

E DO AMOR

DO ABSOLUTO

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Ao meu marido Fernando e aos meus filhos Ana Paula e João Artur

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Prefácio

Espaço da mística na arte de ser humano

13

Introdução 21

1 Enquadramento biográfico e conceptual 27

1.1. Notas biográficas dos místicos 27

1.1.1. Al-Hallaj 27

1.1.2. Al-Gazzali 28

1.1.3. Ibn Arabi 28

1.1.4. Mestre Eckhart 29

1.1.5. Santa Teresa de Ávila 29

1.1.6. S. João da Cruz 30

1.2. Síntese de conceitos essenciais 31

1.2.1. Mística 31

1.2.2. Traços gerais da mística cristã e islâmica 34

1.2.3. Teologia e antropologia apofática 44

2 Da experiência à experiência subjetiva mística 49

2.1. Experiência como definição de existência humana 49

2.2. A subjetividade como estrutura significante do Homem 55

2.3. Experiência de existência e experiência

de transcendência – ipseidade e alteridade 57

2.3.1. O “Mundo do Imaginal” de Ibn Arabi 62

2.3.2. O conceito de Huwa Huwa 65

2.4. Da possibilidade de uma meta-estrutura

da experiência subjetiva mística 67

2.4.1. A iniciativa divina 71

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2.4.5. Referência às estruturas cognitivas presentes

no conhecimento de Deus pela experiência mística 74

2.4.6. A contemplação mística 75

2.4.7. A conaturalidade 76

2.4.8. O clarobscuro 76

3 A experiência subjetiva mística como desejo

do Absoluto Ausente e gozo do Absoluto Presente 79

3.1. Um começo – a iniciativa 80

3.2. Uma exigência – o essencial 82

3.3. Uma atitude – a aniquilação 92

3.4. Um tempo – a noite 97

3.5. Um espaço – o vazio e o nada 100

3.6. Uma dinâmica – o ir e o vir de uma presença e ausência 104

3.7. Um acontecimento – a União Mística 111

3.8. Uma consequência – a reformulação do eu pelo Outro 121

3.9. Uma inquietação – o lugar para o Nós 127

3.10. Uma resposta – a centralidade do Amor 130

3.11. Um poema – a expressividade

estética e erotizada de uma relação 137

4 Experiência subjetiva mística:

infantilismo psíquico, evasão, despersonalização,

desontologização? – um diálogo com a psicanálise 153

4.1. Freud: a religião e a mística 153

4.1.1. Totem e Tabu (1913) 154

4.1.2. O Futuro de uma Ilusão (1927) 158

4.1.3. O Mal-Estar na Cultura (1930) 159

4.1.4. Moisés e o Monoteísmo (1939 [1934-38]) 161

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despersonalização, evasão ou desontologização 166

4.2.1. A experiência mística como experiência de criatividade 178

4.2.2. A superação da perspetiva de uma realidade

psicológica para uma realidade em face do ser 184

Conclusão 191

LISTA DE ABREVIATURAS 199

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Espaço da mística na arte de ser humano

José Augusto Ramos

Centro de História - ULisboa

O tema da mística, seja em termos humanísticos seja mesmo em sentido reli-gioso, apresenta-nos de imediato as duas faces contrapostas que inevitavel-mente compõem qualquer realidade, como acontece nas moedas. Por um lado, os assuntos místicos apresentam variados e inegáveis dimensões de atrativo, mas, por outro, concentram frequentes motivos de cuidado e de rejeição, senão mesmo de repugnância, em setores e valores humanos que nos são particular-mente sensíveis.

A mística oferece, logo de imediato, uma vantagem clara. É com ela que mais facilmente se costuma identificar o cerne vivo da realidade religiosa, na sua dimensão mais autêntica, mais clara e mais eficaz. As dimensões religiosas da moral, da disciplina e da ortodoxia são bastante mais visíveis, mas são tam-bém menos profundamente representativas dos conteúdos religiosos. Multi-dões entusiastas e meios de comunicação poderosos correm atrás de figuras como a do Padre Pio de Pietrelcina, que, apesar de tudo, foi ainda contempo-râneo de muitos de nós. É junto de personagens de grande intensidade mís-tica que multidões imensas descobrem uma experiência de religiosidade que se lhes apresenta como a mais autêntica e simultaneamente se lhes revela como a mais eficaz, em toda a gama de milagres e de significados.

Diante de tais dados ou, por outra, apesar deles, o homem comum poderá sentir-se frequentemente num estado de grande perplexidade. Será que a mís-tica se deve entender como um estado da máxima autenticidade na experiên-cia religiosa ou, pelo contrário, terá de ser considerada como uma modalidade psico-emocional marcada por aspectos de anormalidade? E, se fizermos esta pergunta aplicada ao teor de vida humana implicado nestas duas modalidades, a perplexidade pode tornar-se mais acentuada. Será provavelmente muito difícil evitar um tal estado de perplexidade, quando se observam ou se anali-sam certos fenómenos da experiência e da cultura religiosas.

Ao longo da história, vai-se repetindo esta ambivalência, de forma per-sistente. Desta maneira, destacam-se figuras, que parecem revelar-se como representando a mais lídima autenticidade do fenómeno religioso, mas podem

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fórmula do equilíbrio e da felicidade de modelo humano? É de qualquer modo, incontornável recolhermos daqui a certeza de que, ao estudar os assuntos da mística, se está a estudar religião, muito simplesmente.

Com o distanciamento que a história acrescenta, as figuras místicas avul-tam particularmente como representantes do religioso na sua dimensão mais concreta e real, ultrapassando mesmo a representatividade que poderia advir do conjunto de doutrinas e de dogmas com que é costume identificarem-se e descreverem-se as religiões. Estes conteúdos formais e doutrinais poderiam representar uma identidade mais essencial, mas, face à relevância das grandes figuras vivas, ficam relativizados e relegados para uma dimensão mais teórica e distante. Aliás, ultrapassando a capacidade de verdade das formulações dou-trinais, as figuras místicas podem desenhar e representar, com todo o direito, uma dimensão de representatividade mais universal para a experiência reli-giosa. Neste caso, a mística estaria a prestar um serviço não somente à religião mas também à causa do humanismo, porque recupera dimensões de humani-dade na experiência dos humanos.

Por aqui poderíamos ver representado o núcleo essencial de uma univoci-dade que se presta para tentar formular uma definição do horizonte humano. A unidade do humano é uma razão justificada para o projeto que este livro se propôs, isto é, o de comparar experiências místicas abarcando o espaço de duas religiões, o cristianismo e o islamismo, as quais, apesar das cumplicida-des históricas que seguramente as ligam, são, no entanto, bastante diferentes entre si.

Um dos pontos salientes da perplexidade com que os fenómenos místi-cos se nos apresentam está, desde logo, no facto de eles representarem um ponto de bifurcação drástica entre a afirmação e a negação, no respeitante à pertinência com que podem ser encarados os fenómenos religiosos.

Por um lado, o homem comum sente cada vez mais justificada uma ati-tude de prudência e mesmo de radical agnosticismo, no tocante à capacidade epistemológica para se formularem conteúdos de tipo religioso. Por outro lado, parecem ser homens igualmente comuns aqueles em que se sublinha, de maneira radical, a afirmatividade profunda de certas vivências religiosas, como são os místicos de ontem e de hoje. É importante também o grande número daqueles que nesses espaços descobrem o vislumbre de uma essência sua que, por momentos, parecem intuir e suspeitam mesmo desejar, sem a conseguir, entretanto, assegurar nem afirmar.

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desgarramento, que se apercebe no interior das grandes experiências místicas. Momentos de ateísmo dramático e picos de entusiasmo religioso podem repre-sentar os ritmos dialécticos da mais autêntica vivência religiosa e mística. Podemos deparar-nos com estes sentimentos antitéticos como sendo aquela relação em que as duas faces referidas de uma moeda traduzem precisamente a mesma realidade. Fazem-no de uma forma antitética. Estas realidades con-trastantes aconselham-nos a manter uma atitude serena e pacífica relativa-mente às doses contrapostas de luz e de sombras que assediam e habitam continuamente o horizonte do nosso olhar, particularmente quando se trata de horizontes de profundidade, na fronteira do inefável e do insondável. São as profundezas abissais da mitologia comum a que se alude frequentemente nos Salmos, onde o inefável e imprescindível se insinua tanto como se esconde. É o inelutável encanto de quem se encontra em estado de sonhar, com todas as certezas e incertezas que esse estado de íntima gravidez comporta.

Em suma, o processo epistemológico, em si mesmo, contém analogias muito claras com os percursos de uma experiência mística. Com efeito, ele implica uma definição de identidade e uma verificação e medição de relacio-namento estrutural, com a formulação de um nível de realidade que foi atin-gido e de outros que continuam em espera, no caminho do conhecimento. Com efeito, toda a experiência é uma síntese de conhecimentos, intuições, desejos significativos e níveis de eficácia. Ora, a mística outra coisa mais não é também do que a evolução integrada de uma experiência de conhecimento com modalidades especialmente enriquecidas. É tradicional associar-se o con-ceito de mística com acepções e temáticas de tipo gnóstico, modalidade de linguagem que funde muito a seu jeito a penetração do conhecimento e o enriquecimento das emoções.

Com os dados que integram estas experiências e pela maneira como elas se descrevem, encontramo-nos, por conseguinte, posicionados nas fronteiras do inefável, às portas do indizível. Estes domínios designam-se com o termo de apofáticos, palavra grega que se justifica, porque se esquivam de maneira sistemática a qualquer tentativa de expressividade É por isso que são tão fre-quentes as incidências de temas apofáticos, em assuntos de misticismo. Este apofatismo tem o seu quê de limitação, mas também pode funcionar como excesso. É o excesso de uma luz que cega, diria S. Boaventura, grande narra-dor dos itinerários místicos dos humanos. E esta inefabilidade relativamente a certos aspectos da experiência mística pode não ter a ver com razões de

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perti-e à sua perti-exprperti-essão vperti-erbal. Pperti-elo quperti-e sperti-e podperti-e dperti-eduzir, nperti-em toda a rperti-ealidadperti-e cabperti-e nas palavras; e os conteúdos dos estados de alma também não, apesar de pare-cerem encontrar-se muito mais próximos da capacidade de consciência e, por isso, mais próximos da formulação.

Esta área de vivências, intensas, profundas e personalizadas é a zona cons-tituinte para o que poderíamos designar como uma metafísica da consciência. Esta descobre-se e define-se como assente num processo de estruturação rela-cional, onde a relação que dá estrutura à consciência se estabelece com uma alteridade de modelo dialogal. A consciência, portanto, manifesta-se como estrutura e como ímpeto de dialogalidade. A consciência é o seu acto, como diria Jean Paul Sartre a propósito da liberdade. “Mon acte”, diria Jean Paul Sartre, para uma formulação do humano intenso, que, aparentemente, nada deveria ter a ver com a mística. A dimensão última de tudo aquilo que é essencial e outro vai assumindo progressivamente a caracterização de um rosto humano de comunhão e de partilha. É a face do Tu. É o caminho da des-coberta da alteridade como um dado que integra a própria estrutura da cons-ciência: progredindo do Todo como alteridade e como espelho ao Tu como rosto, companheirismo e parceria, convívio e comunhão. No livro do Génesis (Gn 2,18), a alteridade para o humano adâmico é definida como uma “ajuda como em frente dele” (‘ezer kenegdô). É um rosto que se vê e se confronta. É a mulher. E o amor é um acto místico.

O sentido do Tu na estrutura da consciência significa e representa um elemento de companhia e de prazer. Isto dá sentido e expressividade aos temas ligados ao erotismo, recurso metafórico que é de utilização tão frequente e tão pertinente na textura dos discursos místicos. Mesmo nos horizontes alargados e menos comprometidos da vida real, o tu representa sempre uma proximidade afetuosa e amorosa. No entanto, estas conotações reportam-se especificamente aos domínios da consciência e não incidem forçosamente sobre os estritos domínios da sexualidade. Os dinamismos próprios de um discurso de erotismo oferecem espaços de analogia metafórica com a experiência mística, que é regida pelas leis da relação amorosa, diz-nos a Autora (p.37).

Poderão detetar-se tendências para algum fetichismo ou realismo exces-sivo, nas configurações imagéticas que se vão processando no âmbito das expe-riências místicas, tanto formuladas mentalmente como em forma de discurso. Este teor realístico acentuadamente progressivo pode enquadrar-se bem nas perspetivas de doseamento da realidade, que se joga no interior das metáforas,

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siva do erotismo ou da sua vertente sexual. A este respeito, a mística pode con-tribuir com razões acrescidas de compreensão. E parece-nos bem arguta e pene-trante a definição destas realidades no âmbito do mundo do imaginal, segundo definição de Ibn Arabi, que é um dos místicos estudados nesta obra (p. 51).

Esta maneira de traduzir a experiência mística assenta sobre um relaciona-mento consciente com uma imagem da totalidade, com uma divindade com as caraterísticas de uma pessoa e do seu modo de se relacionar e se envolver. Neste sentido, os místicos têm um papel específico e deram-nos um contributo especial, para valorizar a conceção pessoal de Deus. Esta é uma caraterística patrimonial que a religiosidade do mundo ocidental herdou diretamente das civilizações milenares do antigo Oriente pré-clássico, nomeadamente como coordenada mar-cante dos monoteísmos em que Deus é visto como pessoa. Daqui decorre um significado muito especial para a Bíblia, que se assume, desta maneira, como texto medianeiro e revelador, um texto diretor.

O Transcendente considerado como pessoa é uma intuição arreigada das culturas do Oriente pré-clássico. E, se aquelas não se preocuparam com garantir a prova da existência de Deus ou simplesmente não conseguiram cunhar para isso uma fórmula apodítica, conseguiram, pelo menos, dar transparência viva e intensa a uma definição estrutural da consciência humana, em modalidade dialogal integrada. Cada texto de oração dirigida a Deus, nessas culturas, pode considerar-se um discurso com algum recorte místico. E os Salmos são o livro milenar de todas as modalidades místicas.

Emanuel Lévinas, ao longo de toda a sua obra, inscreveu este dado estrutu-ral como uma fórmula nuclear e de pleno direito, no edifício do seu próprio sistema filosófico. Apesar da origem religiosa judaica dos seus termos, ele não o pretende apresentar como “religioso”, mas precisamente como filosófico, isto é, como uma reflexão de que se sente humanamente responsável. E assim, quando as suas formas discursivas nos podem parecer identificar-se conti-nuamente como referências de judaísmo, ele declara assumi-las e registá-las simples e decididamente como filosofia.

Em nome deste enraizamento no húmus matricial do antigo Oriente pré--clássico e também em nome da comunhão cultural que foi sendo processada, lenta e profundamente, ao longo dos séculos, justificar-se-ia plenamente incluir, neste exercício de comparatismo sobre os discursos místicos, exemplos de mística no judaísmo, que, nestes domínios, tanto partilhou de si quer com o cristianismo quer com o islamismo, cabendo-lhe de direito o papel de grande

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cativo e laborioso em si mesmo. Fica aqui, no entanto, a referência a mais este horizonte de pertinência. O futuro fará justiça a todos os possíveis.

Estas ressonâncias personalísticas da mística justificam que os espaços de comparação tenham, nesta obra, sido escolhidos no interior das tradições monoteístas derivadas das culturas do Próximo Oriente antigo, que constituem para a cultura humanística, poética e religiosa um espaço verdadeiramente matricial. Fica-nos ainda o desafio de fazer entrar neste jogo de espelhos as imagens e os discursos, tal como eles se nos podem apresentar provenientes de contextos culturais ainda mais distantes do que destes.

Na sua imensa variedade, as experiências místicas apresentam-nos o eu e as suas experiências, em formas de expressividade particularmente tensas, mas, por vezes, também em figurinos de saudável normalidade. Assim vai desfilando diante dos nossos olhos uma verdadeira galeria de seres humanos atraentes e, por vezes mesmo, encantadores. Não obstante isto, estas figuras podem também apresentar doses e aspetos difíceis de encaixar comodamente, num modelo de humanidade acessível e apetecível, para partilhar numa reali-dade quotidiana. Como em qualquer processo de definição e de registo de imagens, reconhece-se a representatividade e a pertinência acrescidas que podem existir nos casos excessivos. Estas dimensões e modalidades excessivas parecem ser formas úteis e servem de apoio para valorizar as vidas mais comuns, aquelas em que os valores da mística se podem e, possivelmente, devem realizar em modelos de vida mais sóbrios e normais, recheados com os mesmos sentidos e sabores do essencial, mas, em compensação, enriquecidos com o encanto familiar das vidas de fórmula humana mais universal, mais leve e humildemente acolhedoras das realidades humanas comezinhas. Ao longo da história podemos acompanhar muitas épocas de movimentos de democratização da mística, umas vezes de forma mais entusiástica e outras vezes de forma mais controlada.

A impressão geral que nos pode ficar ao percorrer mais longamente os textos de mística é aquela desconfortável sensação de os ver girar continua-mente, e de uma forma demasiado pleonástica e repetitiva, à volta de uma mesma zona semântica. No entanto, esta circularidade semântica carateriza todo o discurso místico e tem a ver com a própria fusão de sentidos e com a inefabilidade que caracteriza tudo aquilo que é integrado e profundo. O essencial é circular. E o que isto significa é que, por estes terrenos, tudo se movimenta à porta das tautologias. Na verdade, este é precisamente mais um

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rentemente superficiais, para nosso grande escândalo, por vezes grande. Aqui está outra das perplexidades que podem envolver o tema da mística.

Este trabalho vem prestar um serviço de grande mérito, ao facilitar o acesso a um espaço humano recôndito, mas rico e incontornável. Celebrar a investigação aqui feita, a qual se baseia no exercício académico exigido para uma tese de mestrado, equivale a sugerir e entusiasmar outros mais, para que empreendam temas em espaços inovadores e pertinentes como este. Congra-tulamo-nos sinceramente com a sua Autora, pelo facto de, com este passo, ter aberto um caminho de longos percursos, para si e para muitos outros.

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Introdução

É louco o homem que neste mundo Se cansa e cessa de louvar a Deus. As aves o não fazem e alma não têm. Só as anima o sopro do vento.

(Cultura celta, irlandês, anónimo do séc. XI: “Louvores a Deus”, in Rosa do Mundo, de Monteiro, 2001, p. 609)

Os homens e mulheres de todos os tempos procuraram ler o seu tempo, os seus acontecimentos, na trilogia do equilíbrio: interpretando o passado, agindo no seu presente e, simultaneamente, perspetivando a dimensão das suas espe-ranças no tempo que havia de vir. Assim se torna significante o tempo que vivem: na sua apropriação dele e na dialogia estabelecida.

Mas a presença do humano no tempo não é, ainda e apenas, interpreta-tiva. Ela é criativa, no processo coletivo de dimensionar a vida para a felici-dade, transformada em itinerário pessoal na singularidade de cada indivíduo.

Ora, toda a experiência humana tem para a psicologia uma importância única, enquanto objeto central do seu estudo. De igual modo, e revertidos os termos, a psicologia tem para a experiência humana uma dimensão nevrálgica, enquanto hermenêutica singular do comportamento humano. Esse é, sem dúvida, um labor inconcluso, o do conhecimento verdadeiro da mente humana, o do sentido das experiências dos seres humanos, o da razão de ser dos seus comportamentos, apesar dos grandes e contínuos avanços nesta área. Como trabalho interpretativo, ele é contínuo, mas é, naturalmente também, polémico. A psicologia e a psicanálise são disso boas testemunhas, no que à polémica e à construção científica sobre o humano, a partir dela feita, diz respeito.

Entendemos, assim, que todas as manifestações da vida humana, sejam elas os fenómenos de cultura, a política, a religião, a obra de arte, a música, a dança, etc., constituem foco de interesse para a psicologia. Todas estas mani-festações se estendem nela, para além de uma focalização das doenças psíqui-cas e do conhecimento concreto de nós próprios, do nosso corpo e da nossa personalidade. Todas elas nos ajudam a aprender a conhecer o indivíduo, na linha da grande paixão de Freud: tudo o que nos rodeia pode conter uma pequena solução para decifrar mais um enigma da vida humana, do modo de

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pensar e agir; todo o pormenor é importante, é sempre um alargar o domínio daquilo que parece já claro, mas que, de facto, não o é.

É neste foco de interesses múltiplos e de utilidade para o interpretar do humano que introduzimos a questão da mística, nomeadamente a experiência subjetiva mística, enquanto, respetivamente, fenómeno da expressão humana e trabalho de interpretação significante. Trata-se de uma temática polémica, complexa, multifacetada, não só pelos significados e pelas conotações a ela associada, mas também pela natureza desta experiência humana e religiosa, presente em várias religiões, assim como pela utilização variada do seu termo, etc. O que é facto, também, é que a mística tem sido matéria de interesse por parte de vários saberes, o que denota uma confluência muito útil de várias interpretações. Enquanto experiência humana, adquire interesse por parte da psicologia, da filosofia, da antropologia e da sociologia; enquanto manifesta-ção do Divino, tendo Deus como objeto, ela interessa à teologia.

Resultado de investigação realizada no âmbito do Mestrado em Psicolo-gia Clínica, este nosso trabalho visa, na área em que se situa, a da psicoloPsicolo-gia, o estudo da experiência subjetiva mística, procurando perscrutar, nos discur-sos místicos, tudo aquilo que possa ser tomado como vestígio e rasto para o conhecimento duma tal experiência.

O nosso intuito é tentar descrever a experiência como ela é, exigindo de nós uma abstração, neste modo de estudo, da natureza dos factos. Não está em causa, nesta obra, algum tipo de defesa a favor ou contra a veracidade dos factos, nem tampouco qualquer valorização ou desvalorização das crenças aqui traduzidas pelos místicos por nós abordados. Como preocupação subja-cente está, acima de tudo, um cuidado de neutralidade e isenção, face ao que foi dito pelos místicos e ao seu agir, num respeito pelas atitudes de fé mani-festadas.

Todo o místico está inserido numa época, cultura, religião e história pes-soal, que o definem como pessoa e como místico. É neste contexto que ten-tamos abordar a experiência que ele nos relata, considerando-a sempre em função de toda a sua vida mental e moral, à semelhança de todos os outros seres humanos.

Contudo, a natureza da experiência mística transporta em si dificuldades difíceis, sobretudo para a área da psicologia, a que não somos alheios. Desde logo, o facto destas experiências não se produzirem por vontade pessoal, e, por isso, não se poderem provocar artificialmente, nem em nenhum campo laboratorial, como, de igual modo, não se pode esperar que aconteçam na sua repetição; elas não dependem, nem no tempo nem no modo, da iniciativa e da

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vontade do próprio místico, no seu próprio dizer. Uma outra dificuldade reporta-se à dimensão intimamente pessoal desta experiência, à sua subjetivi-dade, à qual temos acesso pelos seus escritos; uma narração marcada pela subjetividade e pela capacidade de recordação do ato vivido. Daqui resulta uma outra preocupação tida neste nosso trabalho: a de selecionar, na profusão e riqueza dos discursos místicos, as descrições que mais e melhor traduzem os estados da experiência, as suas angústias, as suas alegrias, as suas opções de vida, as suas atitudes, as descrições do êxtase, os seus pensamentos, as suas orações, os seus pedidos de auxílio e desejos, etc. A abordagem fenomenoló-gica da linguagem utilizada ganha, assim, um papel determinante. Há sempre uma interpretação e uma mediatização por parte do místico sobre a sua expe-riência mística, decorrente, simplesmente, do seu natural contexto cultural, histórico e social. Há sempre uma intensidade na experiência narrada pelo místico, traduzida pelo mesmo como indizível; facto que denuncia a fragili-dade de uma linguagem como instrumento eficaz ao serviço da experiência mística e facto que empurra o místico para a descoberta de novas formas de linguagem, num ato de criação extraordinário: a profundidade e a expressivi-dade da linguagem, nas suas formas simbólica, apofática e erotizada.

Neste domínio, impõem-se opções, face à extensão e diversidade de auto-res místicos. Sem prejuízo dessa dificuldade, parece-nos evidente a vantagem da diversidade no corpo de autores, quanto ao credo, cultura e época, pelo que essa diversidade pode concorrer para igual variedade de descrições da experiência mística. Havendo uma natural necessidade de imposição de limi-tes epistemológicos, o nosso olhar recai sobre três autores místicos cristãos – Mestre Eckhart (1260-1328), Santa Teresa de Ávila (1515-1582), São João da Cruz (1542-1591) – e, de igual modo, três místicos islâmicos – Al-Hallaj (c.857-922), Al-Gazzali (1058-1111) e Ibn Arabi (1165-1240).

Na análise cruzada da experiência mística destes autores cruzam-se, também, a multiplicidade de meios e de visões que a suportam: a linguagem própria da psicologia e a natureza das suas temáticas, mas também as da filo-sofia, da antropologia e da teologia. É nesta integração de interpretações que a leitura da experiência mística é assegurada de modo mais próximo da sua própria realidade. E é nesse entrecruzamento de visões que se sugere a nossa própria leitura. Em linha distinta das que perspetivam a experiência subjetiva mística como infantilismo psíquico, evasão, despersonalização, desontologi-zação, propomos a leitura da mística como experiência de criatividade e questionamo-nos se esta não poderá ser analisada na visão de uma superação da perspetiva de uma realidade psicológica para uma realidade em face do Ser,

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como experiência de procura da verdade, como um jogo dos limites, como procura desejada de transcendência do sujeito e de relação com a Alteridade.

É deste encontro entre a mística e a psicanálise que nos ocupamos neste livro. É nesse entrecruzamento que nos propomos ler as experiências daque-les que, desejando-O, amaram o Absoluto. Cremos que o tema irrompe, quer queiramos quer não, numa sociedade atual que, como diz Fauteux (1995), nos transforma em tudo exceto naquilo que nós somos, em que o que nós somos fica tantas vezes suprimido por baixo de um eu narcísico, superficial, falso. Há uma cultura da fruição imediata, uma cultura do hedonismo, à qual o indivíduo se entrega. É uma sociedade que parece possuir uma força e poder único; moldando o indivíduo com uma intensidade invisível, mas eficaz. Satis-fazendo narcisicamente o indivíduo, constrói-lhe “não-lugares”, na expressão de Marc Augé (2006), isto é, espaços de não-história, de não-identidade, de não-relação, em substituição dos espaços definidos como “Lugar”, ou seja, espaços que se podem definir como identitários, relacionais e históricos.

Neste mundo, onde os setores mais “avançados” são simultaneamente os mais anónimos, porque votado à individualidade solitária, onde os indivíduos sofrem, assim, transformações de excesso e onde as palavras de ordem pare-cem ser a superabundância, a instantaneidade e a ubiquidade permanentes – na linha ainda de Augé –, a mística irrompe como experiência humana que questiona, na raiz, tudo isto. Será por ser uma atitude da não espera? Por ser uma atitude da procura permanente de um outro? Será pela enorme exigência que imprime a si própria? Haverá, por certo, outras experiências válidas e que poderão lançar algumas questões à forma como hoje vivemos. Nestas páginas, chamamos a palco a experiência subjetiva mística, por tudo o que ela pode representar como surpresa de si mesma, naquilo que nela temos de possibili-dade, ainda, de descoberta.

Como Diniz (1994) relembra, todos nós trabalhamos com uma teoria ou com uma filosofia, seja ela explícita ou implícita. A importância desta forma de agir humano reside no facto de assumirmos a capacidade de a explicitar, ou seja, de sermos capazes de a pôr em palavras, a fim de pensarmos sobre ela e de a corrigirmos, assim como de nos mantermos abertos às coisas novas e inesperadas, ou a sínteses mais ricas e de melhor qualidade, num “ato de fé” – expressão de Bion que o autor recupera aqui. É ser capaz de uma síntese da atitude emocional com a atitude racional, que mais não é do que uma reconfi-gurada atitude especificamente humana.

Foi este – é este – o nosso percurso. Não o fizemos sós, em 2009, por ocasião da investigação académica que está na sua origem. Não o fizemos sós,

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também, agora que o revisitámos e oferecemos. Devem-se, por isso, as pala-vras de gratidão que estão longe de qualquer conveniência: ao Professor Doutor Frederico Pereira, pela forma de fazer pensar para além do banal; ao Sheikh David Munir, Imã da Mesquita Central de Lisboa, pela visita esclare-cida à mística islâmica, acompanhada pela ajuda preciosa do Professor Doutor Adel Sidarus, amigo pronto; ao Professor Doutor José Eduardo Franco, força de inquebrantável entusiamo, estímulo permanente na transformação do estudo em obra; ao Professor Doutor José Augusto Ramos, eterno apaixonado da histó-ria e da cultura das religiões, que, sem restrições e com notável aleghistó-ria, acei-tou escrever o Prefácio às páginas que se seguem e que nos acompanha, hoje, em novas incursões que este estudo nos abriu.

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Enquadramento biográfico

e conceptual

1.1. Notas biográficas dos místicos

1.1.1. Al-Hallaj

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Al-Hallaj (c.857-922) nasceu em Tur, actual território do Irão. Muito jovem, é levado pelo pai para Wasit, onde é introduzido na ascese e se torna hâfiz (aquele que recita o Corão de cor). Com vinte anos vai para Basra, onde casará e receberá o hábito sufi, vivendo aí uma vida ascética profunda. Ao fazer a sua peregrinação a Meca, acaba por aí ficar, permanecendo à entrada do templo, durante um ano, em jejum e silêncio permanentes. Na viagem de regresso, iniciou as suas pregações públicas. A sua fama de santidade começa a alastrar-se, provocando, simultaneamente, a atração de discípulos, o ciúme de alguns seus companheiros sufis e o desconforto das diversas facões políti-cas. Al-Hallaj voltaria ainda a Meca, em peregrinação, por duas outras vezes. É aí que se oferece em sacrifício. Antes de realizar a segunda das três peregrina-ções, instalara-se com a mulher e os quatro filhos em Bagdade, principal cen-tro cultural da época. Na volta desta peregrinação viaja até aos confins do mundo islâmico, travando contacto com pessoas e com doutrinas hinduístas e budistas. A terceira peregrinação havia de anteceder o processo de incom-preensões, de agressões e, por fim, do martírio que iria sofrer em 27 de março de 922, quando, depois de no dia anterior ter sido humilhado com uma coroa sobre a cabeça e ser maltratado pelos guardas, a cabeça de Al-Hallaj é cortada, o seu corpo é salpicado de óleo e as suas cinzas são lançadas ao rio Tigre.

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Foram utilizadas para esta nota biográfica as seguintes fontes: Vitray-Meyerovitch, E. (1995). Anthologie du soufisme; Azevedo, M. (2000). Mística Islâmica: Actualidade e con-vergência com a espiritualidade cristã.

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1.1.2. Al-Gazzali

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Al-Gazzali (1058-1111) nasceu e morreu em Tus, localidade do atual Irão, onde fez os primeiros estudos. Viria, depois, a estudar o sufismo em Nishapur, com Al-Juwayni, e em Bagdade, onde, em 1091, se tornou professor da sua célebre universidade. Escreveu, por então, inúmeras obras de direito, tornando-se extraordinariamente afamado. É neste contexto que passa por uma crise religiosa profunda – à qual não é estranha o escândalo, a seus olhos, da sumptuosidade da vida de sultões, vizires e califas – que o faz deixar o ensino e iniciar um retiro que havia de durar, aproximadamente, dez anos. É nesse período que faz a sua peregrinação a Meca, passando uma larga tempo-rada em Damasco, Jerusalém, Hebron e Medina. Visita lugares santos e ensina nas suas mesquitas e madrassas. Vive como um sufi, praticando a meditação e a ascese. Escreve e ensina como ato contínuo de vida. Alguns anos antes da sua morte, Al-Gazzali regressa a Bagdade e volta a dar aulas na universidade que deixara, quebrando um juramento que fizera em Hebron, junto ao túmulo de Abraão, de não voltar a ensinar nestes centros. Com o exercício do ensino e da escrita, com a doutrina que partilhava, lecionando em pequenas escolas, ele foi um reformador do islamismo. Passou o fim dos seus dias em Tus, sua terra natal, onde viveu num mosteiro, na companhia de alguns discípulos.

1.1.3. Ibn Arabi

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Ibn Arabi (1165-1240) nasceu em Múrcia e morreu em Damasco. Filho de uma aristocrata família árabe de grande piedade, ele cresce num território de diferentes tradições: islamismo, cristianismo e judaísmo. Até à idade adulta habita em Sevilha, para onde se mudara com seus pais aos 8 anos, aí tendo recebido a educação no seu lar, nas madrassas e nas mesquitas. É aos 30 anos que parte em viagem, inicialmente para Túnis, empreendendo inúmeras via-gens no território do que hoje apelidamos a Espanha Islâmica e no Magrebe. Durante essas viagens estabeleceu contacto profundo com os grandes filóso-fos, teólogos, juristas e místicos do mundo islâmico de então. Aproveitou esses

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Foram utilizadas para esta nota biográfica as seguintes fontes: Vitray-Meyerovitch, E. (1995). Anthologie du soufisme; Azevedo, M. (2000). Mística Islâmica: Actualidade e con-vergência com a espiritualidade cristã; Al-Ghazali, consultado em 21 de novembro de 2009, através de http://www.science.uva.nl/~seop/entries/al-ghazali/.

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Foram utilizadas para esta nota biográfica as seguintes fontes: Vitray-Meyerovitch, E. (1995). Anthologie du soufisme; Azevedo, M. (2000). Mística Islâmica: Actualidade e con-vergência com a espiritualidade cristã; Ibn-Arabi, consultado em 21 de novembro de 2009, através de http://www.science.uva.nl/~seop/entries/ibn-arabi/.

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contactos não só para deles muito aprender, como também para lhes transmi-tir as suas próprias inspirações. Entre esses contactos, destaque para aquele que teve, após um longo período de retiro espiritual de 14 anos, com Aver-róis, grande comentador andaluz de Aristóteles. A peregrinação a Meca de Ibn-Arabi, em 1201, significou uma viagem sem retorno já que foi a partir dela que levou a cabo extensas viagens pelo Egipto, Síria, Anatólia, Turquia, Iraque, contactando com os sábios islâmicos destas paragens. É em Damasco que se fixará em 1223, onde instruirá um vasto conjunto de discípulos e onde escreverá um considerável número de obras até à sua morte.

1.1.4. Mestre Eckhart

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Mestre Eckhart (1260-1328) nasce na região alemã da Turíngia e, sem que disso haja absoluta certeza, terá morrido em Avinhão. Teólogo, filósofo e pregador dominicano, a sua atividade é tão larga quanto a escala das viagens que realiza por vastos territórios do Norte da Europa e que concorrem para a igualmente diversa obra que escreve. Os territórios e as culturas que visita levam-no a escrever e a pregar em diferentes línguas, com particular destaque para o médio alemão e o latim. Homem do seu tempo e da Igreja do seu tempo, Mestre Eckhart vive as vicissitudes dos conflitos do Santo Império Romano--Germânico; o império, marcado pelo interdito que concorre para a cessação de qualquer vida religiosa, provoca, no entanto, a resposta de uma efervescên-cia religiosa, com fortíssima expressão para os leigos que denunefervescên-ciam uma expressiva sede espiritual, pretendendo ser alimentados de uma forma muito mais substancial do que o eram. Sendo os mosteiros o principal lugar de vida espiritual, tendo eles uma notável expressão, até numérica, Mestre Eckhart, à imagem dos seus demais confrades, consagrar-se-á à assistência desses mos-teiros, constituindo os seus Sermões e Tratados a súmula do seu repositório místico e doutrinal.

1.1.5. Santa Teresa de Ávila

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Teresa de Ávila (1515-1582) nasce na cidade que lhe dará nome, fazendo apagar o seu de família, Teresa de Ahumada, e sobrepondo-se, tantas vezes ao seu de religião, Teresa de Jesus. A sua mãe morre aos 13 anos. Teresa passa

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Foi utilizada para esta nota biográfica a seguinte fonte: Mestre Eckart (2009). Tratados e sermões.

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Foi utilizada para esta nota biográfica a seguinte fonte: Santa Teresa de Jesus (2000). Obras completas.

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uma adolescência conturbada, feita de amizades consideradas perigosas para a época, leituras de cavalaria não recomendáveis, chegando ela mesma a escre-ver uma obra dessa natureza que, entretanto, se perdeu. Em 1535, Teresa entra no Mosteiro da Encarnação, recebendo hábito em 1536. Se a infância e a adolescência tinham sido anos de forte assalto pela doença, os próximos não o serão menos, passando igualmente por forte agonia e aridez espiritual. É ape-nas em 1554 que Teresa recomeça uma vida espiritual de maior consistência e grande regularidade, sendo a partir desta data que são narradas as suas fortes experiências místicas. É em 1560 que toma a decisão de fundar um Carmelo reformado, o que ocorre em 1562, sucedendo-se uma intensa atividade de fundação de numerosos Carmelos, que concorressem para uma vida de intenso recolhimento, conjugando ela própria a atividade da sua animação pela sua constante visita, com a atividade da escrita e a de um recolhimento profundo, até morrer em Alba de Tormes, em 1582.

1.1.6. S. João da Cruz

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São João da Cruz 1591), de seu nome de batismo João de Yepes (1542--1591), nasce e morre em Espanha, respetivamente, em Ávila e em Úbeda. Com 25 anos, entra no convento do Carmelo, para onde é atraído, em parti-cular, pela dimensão contemplativa. Já depois de professar votos, o percurso que se segue de estudos de filosofia e de teologia, onde se destaca como aluno brilhante, deixa-o particularmente insatisfeito face ao modo como passa a viver a sua experiência contemplativa, equacionando mudar-se para a Car-tuxa. É nesta altura, em 1567, que se encontra com Teresa de Jesus, que está a fundar um segundo convento para as Carmelitas Descalças. Teresa convida João da Cruz a iniciar a vida reformada dos Carmelitas, que abraça essa mis-são cerca de um ano mais tarde, depois de concluídos os estudos em teologia, levando-a a cabo no próprio Carmelo. Os anos que se seguem, entre 1568 e 1591, são os do amadurecimento consecutivo, em experiência e em estilo, da nova vida abraçada. Assume múltiplas funções por toda a Espanha, ao longo deste período até à morte: mestre de noviços, reitor, diretor espiritual, defini-dor, prior, provincial, terminando desprovido de qualquer ofício. Em todas as missões e circunstâncias, João da Cruz persegue, no entanto, para si e para os seus frades o cumprimento da vontade de uma vida mais intensamente con-templativa. Fá-lo num momento de grandeza política e militar, com as

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Foi utilizada para esta nota biográfica a seguinte fonte: São João da Cruz (2005). Obras completas.

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rias que isso acarreta; fá-lo no balanço da Reforma e da Contra-Reforma, dos desvios dos hereges e de todos os visionários.

1.2. Síntese de conceitos essenciais

1.2.1. Mística

O termo mística, pela sua polivalência, remete-nos para uma utilização muito variada de significados, quer em contextos culturais, quer religiosos, quer mesmo históricos. Presente nas diversas religiões – sendo um dos seus ele-mentos característicos – este termo surge como ato humano e religioso, mani-festado em diferentes tipos de experiências, o que o transforma num conceito complexo, multifacetado e extremamente rico naquilo que nos oferece de lei-tura da ação humana, ao longo dos séculos.

Surgindo na segunda metade do século XVI, o substantivo “mística” expres-sava já um sentido de oculto, secreto, misterioso. As Sagradas Escrituras não se socorrem da palavra mística. Já a literatura cristã, muito marcada pelo plato-nismo da escola de Alexandria, faz emergir uma escrita mística como meio para decifrar os mistérios de Deus, tal como encontramos em autores como Cle-mente de Alexandria, Pseudo-Dionísio e Santo Agostinho (Schwartz, 2005).

As três palavras “mito”, “mística”, e “mistério”, denunciam elas mesmas uma ligação linguística. Todas elas derivam do verbo grego  (muste-rion = mistério): fechar os olhos. Neste sentido, as três palavras “mergulham as suas raízes numa experiência de trevas e de silêncio” (Armstrong, 1996, p. 240-241; Cf. também Augustine, 2002).

De facto, no início, o significado de “mística” estava todo ele impregnado de um conceito de secreto – conotação religiosa, porque se refere à divindade – entendido sobretudo como um conhecimento a que só alguns podiam ace-der, como é o caso, por exemplo de uma iniciação cultural, cujos ritos eram vedados a estranhos (Sutter, 1983).

Armstrong (1996, p.240) salienta, neste âmbito, um facto curioso. A autora relembra-nos que o Deus dos profetas “era mais ativo na história e nos acontecimentos políticos da época do que nos tempos sagrados e primordiais do mito. No entanto, quando os monoteístas se voltaram para a mística, a mitologia voltou a afirmar-se como principal veículo da experiência religiosa”.

Com o passar do tempo, a palavra ganha um sentido e uso profanos. Apesar de atualmente se empregar a palavra como adjetivo ou substantivo, ela denuncia constantemente o seu significado primitivo. Esta pressupõe, de certa

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forma, um aspeto a-racional ou suprarracional de uma coisa, de um conheci-mento ou de um ideal. Sutter (1983) acrescenta que a mística aponta para uma nota frequentemente emotiva ou inclusive sentimental, de onde resultam princípios ou ideais reconhecidos como implícitos e invioláveis: caso do racismo ou a mística do comunismo, entre outras.

Para além desta significação, não podemos ignorar que a palavra mística acarreta, por vezes, um sentido pejorativo; a sua interpretação ganha a corres-pondência de sonhador e dirige-se, por vezes, àquele que perdeu o contacto com a realidade.

No Ocidente, por exemplo, palavras como “mito”, “mística” ou “misté-rio” são muitas vezes assumidas como desconfiança ou mentira, necessidade de esclarecimento, forma confusa de pensamento, desequilíbrios psicológicos, segundo Armstrong (1996). No entanto, a autora chama a atenção para as alterações que foram ocorrendo a partir dos anos sessenta, que, embora se tenham dado paulatinamente, não deixam de ser significativas. Armstrong nomeia, como responsáveis por esta mudança, a redescoberta de religiões e filosofias Orientais e o interesse crescente pela psicanálise. No tocante a esta disciplina, Armstrong chega mesmo a afirmar: “o atual entusiasmo do Oci-dente pela psicanálise pode ser visto como um desejo de algum tipo de mís-tica, pois encontra-se entre as duas disciplinas semelhanças notórias. A mito-logia foi muitas vezes uma tentativa de explicar o mundo interior da psique, e tanto Freud como Jung se voltaram instintivamente para os antigos mitos, como a história grega de Édipo, para explicar a nova ciência” (pp. 241-242).

Se perscrutarmos mais atentamente o significado religioso, podemos per-cecionar, no conceito de mística, a influência de Platão. Esta influência encon-tra-se nas suas ideias de que a divindade é transcendente à nossa inteligência. Porém, a inteligência pode gozar de certo conhecimento da divindade que, sendo obscura, é real e permite aos privilegiados penetrar na esfera divina. Trata-se, assim, de um conhecimento místico impossível de se expressar tão perfeitamente como acontece com o conhecimento racional, exigindo, por isso, o recurso às imagens e aos símbolos. Estes expressam, naturalmente, um significado mais concreto do que aquilo que dizem por si mesmos, ou seja, um sentido místico. Podemos afirmar, então, que a palavra mística contém dois significados: um aplicado em primeiro lugar ao próprio conhecimento divino e o outro, aplicado ao significado secreto dos vocábulos que têm que comunicá-los (Sutter, 1983).

Nem todo o conhecimento divino é místico; o conhecimento místico tem um carácter suprarracional, é de algum modo intuitivo, simples. Diferente da

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escola neoplatónica, o conhecimento místico cristão é efeito de uma ação especial de Deus, que faz sentir a sua presença. Neste sentido religioso da experiência dita mística está essencialmente patente uma experiência de Deus, passiva, simples, livre. Trata-se de uma experiência passiva, pois, em termos ontológicos, toda a atividade da criatura depende da iniciativa de Deus, de quem recebe toda a perfeição. O sujeito sente-se como que iluminado por Deus e a Ele dirigido. Os relatos exprimem uma oscilação da sua intensidade, dependente da presença ou ausência da iniciativa que, porventura, o sujeito possa ter tido na experiência. Na iniciativa assumida pelo sujeito está a cons-ciência de que sozinho é incapaz de reunir em si todas as forças, para alcançar tal experiência. Na passividade está a recusa plena do automatismo e a noção de que é um sujeito livre, logo capaz de resistir ao movimento Divino.

Esta experiência mística é simples. Esta simplificação não poderá ser enten-dida, na perspetiva dos místicos, como um empobrecimento. Sutter (1983) con-trasta a noção de simplificação mística da simplificação patológica; nesta, a vida parece girar em torno de ideias fixas, tornando-se cada vez mais incapaz de abrir-se a adaptar-se à realidade concreta em movimento, numa rigidez progressiva – em causa está uma desagregação. Ao contrário, continua Sutter, a vida mística enriquece-se continuamente e, mesmo gravitando à volta de parcas ideias centrais, vai percebendo cada vez melhor os seus diversos aspe-tos e as suas infinitas possibilidades de aplicação, numa liberdade de ações, permanente – em causa está uma síntese.

Para além destas dimensões, o sentido religioso da mística entende este tipo de experiência como uma experiência do Divino. O ser humano que a vivencia tem consciência de entrar em contacto com a divindade. Uma expe-riência relatada como vaga, indefinível e indizível por palavras. Esta experiên-cia suporta os sentimentos de consolo, da delíexperiên-cia, do gozo, do horrível da “noite”, das humilhações interiores e exteriores, do abandono, os fracassos, do esquecimento …

Há uma sede de absoluto, uma rutura de todo o apego e de todo o con-tingente, numa vocação de interioridade que são dimensões comuns a todas as correntes místicas (Ancilli, 1983). A mística tem um dinamismo próprio que inicia com o desapego do mundo exterior com a vitória sobre as paixões, prossegue, depois, numa atitude de meditação e de contemplação, finalizando com a união completa com o Absoluto. De forma, particular, este desenvolvi-mento, para a mística monoteísta, dá-se sobre as exigências e a dinâmica do amor (Ancilli, 1983).

Toda a mística se centraliza, assim, numa experiência em si radical e imediata do Uno, do homem com Deus. No entanto, como frisa Boff (1983),

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esta experiência imediata de unidade tem subjacente, como transfundo, a experiência não menos significativa da dualidade e da separação: Deus-cria-ção; eu-mundo, uno-múltiplo. Uma experiência destas, de disjunção, “faz sofrer e exaspera o desejo de unidade” (Boff, 1983, p. 16).

A mística incorpora o significado da experiência de um Absoluto (o ser em si, a natureza, o todo) ou de Deus e a respetiva doutrina (Freitas, 1991). Esta experiência é entendida como conhecimento direto e imediato, sendo igualmente fruitiva, uma vez que é um conhecimento beatificante em que a alma do místico se revê e se compraz no objeto. Diz-nos, ainda, Freitas, que a experiência mística é fruto de um desejo misterioso, profundo e incoercível de união com o Absoluto e, nesse sentido, vai ganhando formas cada vez mais elevadas à medida que as culturas e religiões ganham em rigor crítico e soli-dez natural.

Podemos, então, salientar três aspetos essenciais, para a compreensão da mística, que iremos reencontrar ao longo desta nossa obra. Um primeiro aspeto, prende-se com a ideia de que a mística é parte integrante de todas as religiões, muito embora a forma de explicar a sua relação seja diferente. Um segundo aspeto, expressa o facto de a peculiaridade da mística cristã assentar mais na Revelação, enquanto a mística religiosa em geral radica na experiência subje-tiva do fenómeno religioso (García, 2003). Um terceiro aspeto, é o de que não há antagonismo entre as místicas, há, isso sim, uma solidificação cada vez visível, por via do diálogo que se vai estabelecendo entre elas.

Nos discursos místicos que estudámos e que tentamos neste trabalho sintetizar, encontramos, de facto, a narração da experiência mística como uma experiência interior que é imediata, passiva e ativa, fruitiva, simples, livre, uma experiência de união que é verdadeiramente uma experiência do Divino e do humano.

1.2.2. Traços gerais da mística cristã e islâmica

Uma breve síntese das características essenciais da mística cristã e sufi parece-nos importante, uma vez que parece-nos dará o contexto dos tratados místicos por nós analisados. Apenas teremos como preocupação a apresentação das linhas--mestre destas místicas, enquanto enquadradoras dos autores místicos de que nos ocupamos.

Olhando para a história do monoteísmo podemos perceber que este não era originalmente místico.

Tanto o Judaísmo, como o Cristianismo, como o Islamismo são fés essen-cialmente ativas (Armstrong, 1996) e o seu agir tem como objetivo o

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cumpri-mento da vontade de Deus num aqui, num agora, num para sempre e em qual-quer lugar. O encontro pessoal ou a confrontação entre Deus e a humanidade está no âmago natural destas religiões proféticas. Este Deus relaciona-se com a humanidade intervindo na sua história, por via do diálogo e não tanto pela contemplação silenciosa. É um Deus sentido como imperativo em ação (Arms-trong, 1996).

A iniciativa do chamamento parte de Deus, a liberdade de resposta a este chamamento de amor é dada ao homem, por este mesmo Deus. Este agir divino pela Sua Palavra interpela os que O escutam e dão-lhe uma nova existência – a impossibilidade de viverem na ausência do Divino significaria, naturalmente, não viverem. Al-Hallaj expressa esta impossibilidade de existência, desta forma:

O Teu lugar no meu coração é todo o meu coração Nenhum lugar para uma criatura no Teu lugar

A minha alma colocou-Te entre a minha pele e os meus ossos Como faria eu se Te perdesse?

(Al-Hallaj, in Poèmes mystiques, 29, p. 63)

Entende-se assim, mais facilmente, que o inimigo da liberdade do homem não é o exterior, mas o interior; é ele mesmo (Pinto, 2007). Por isso o filósofo alerta: “o mistério da liberdade é o mistério mesmo da consciência reflexa e da razão: o homem é a consciência da natureza, e na sua aspiração à graça con-siste a sua verdadeira liberdade” (Unamuno, 1974, p. 13).

Toda esta dimensão subjetiva do ser humano, que emerge na experiência mística, é impregnada de uma outra característica, bem visível na mística cristã e islâmica (a par da judaica): o amor. Há, nestas místicas, uma centrali-dade no amor, que assenta, naturalmente, numa conceção do Divino pessoal e no desejo de relação permanente entre o crente e o divino (Graef, 1970).

Garaudy destaca, no seu pensamento, os grandes contributos do cristia-nismo, a mais personalizada das três religiões: a pessoa humana, a subjetivi-dade, a transcendência (Pinto, 2003).

1.2.2.1. Mística cristã

Na mística cristã encontramos um traço característico bem marcante que se situa nas coordenadas Revelação-fé, sendo que, nas suas formas subjetivas, a fé sai ao encontro da Revelação, sem que os aspetos subjetivos ganhem todo o protagonismo, como evidencia Balthasar (1985). Este posicionamento implica um duplo movimento: por um lado, enquanto religião de um Deus humano, ela perspetiva-se sempre na senda do humano, incorporando as aspirações religiosas da humanidade; por outro a Revelação de Deus, em especial a

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neo-testamentária, é co-extensiva à humanidade (Balthasar, 1985). Enquanto reli-gião de Revelação, o místico interioriza o mistério de Cristo, predeterminado por Deus Pai, antes da criação do mundo e revelada agora e até ao fim dos tempos, como S. Paulo expressa nas suas Cartas (Cf., também, Ef 3; Col 1):

Ensinamos a sabedoria de Deus, mistério que permaneceu oculto e que Deus, antes dos séculos, predestinou para nossa glória. / Nenhum dos chefes deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória. / Mas, como está escrito:

O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram,

o coração do homem não pressentiu,

isso Deus preparou para aqueles que o amam.

/ A nós, porém, Deus o revelou por meio do Espírito. Pois o Espírito tudo pene-tra, até as profundidades de Deus. / Quem, de entre os homens, conhece o que há no homem, senão o espírito do homem que nele habita? Assim também, as coisas que são de Deus, ninguém as conhece a não ser o Espírito de Deus. / Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, para podermos conhecer os dons da graça de Deus. / E deles não falamos com palavras que a sabedoria humana ensina, mas com as que o Espírito inspira, falando de realidades espirituais em termos espirituais. / O homem terreno não aceita o que vem do Espírito de Deus, pois é uma loucura para ele. Não o pode compreender, pois só de modo espiritual pode ser avaliado. (1 Cor 2, 7-14)

E é nesta dinâmica Revelação-fé que assenta a mística cristã. Para o mís-tico cristão tem de haver algo previamente dado por Deus, para corresponder subjetivamente, de modo gradual, ao mistério objetivo.

Destas coordenadas Revelação-fé, a mística cristã envolve-se de caracte-rísticas bem precisas. Uma das caratecaracte-rísticas, é a primazia da iniciativa divina e a prioridade do Mistério revelado. É Deus que sai ao encontro do homem e o convida à comunhão com Ele. O crente escuta e segue o caminho de Deus. O comportamento humano sofre, aqui, uma mudança de atitude, nesta res-posta, uma vez que o convite implica desprendimento e disposição para.

O essencial, ou seja, a medida de perfeição que marca esta mística, não está na experiência de união com Deus – enquanto etapa suprema do movi-mento ascensional –, mas na obediência, uma vez que esta experiência de abandono total possibilita a vivência de uma união tão plena quanto a expe-riência de União Mística (Balthasar, 1985). Esta perspetiva inverte, por assim dizer, a valorização da experiência extraordinária de Deus (rapto, visões, arre-batamentos, etc.), a noção de que só alguns poderão ascender a esta experiên-cia e a prioridade da mística subjetiva sobre a mística objetiva (mistérica).

Uma outra dimensão, presente nesta mística cristã, é a experiência do Mistério: o Deus Pessoal e a adesão pela fé. A experiência mística surge e vive

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da presença do Mistério, descentrando o sujeito de si mesmo e orientando-o face ao mistério, por meio da mais absoluta transcendência, (García, 2003), tal como encontramos em Santa Teresa e em S. João da Cruz:

Aconteceu-me a mim a princípio que, na minha ignorância, não sabia que Deus estava em todas as coisas e, como me parecia tê-Lo tão presente, parecia-me impossível.

(Santa Teresa, V 18, 15)

Por outro lado, sabe (a alma) que tem uma enorme dívida para com Deus: Ele criou-a só para Ele, portanto, tem de O servir toda a sua vida; redimiu-a só por Si, portanto, só lhe resta uma resposta de amor.

(S. João da Cruz, CB 1, 1)

É uma mística que se “funda na noção de que Deus está no interior da criatura e a penetra, ela, por sua vez, alimenta-se d’Ele; ao mesmo tempo ela aspira-O, porque Ele lhe é exterior. A alma deseja Deus. Saída d’Ele, ela deve regressar a Ele que é o seu fim como Ele é o seu começo” (Ancelet-Hustache, 1956, p. 59), como define a mística do Mestre Eckhart:

Pela criação, Deus diz, faz saber, aconselha e ordena a todas as criaturas que o sigam, que o tomem por fim, que a Ele regressem, causa primeira de todo o seu ser, em conformidade a estas palavras: os rios regressam ao lugar donde vêm (Ecl, 1). É por isso que a natureza da criatura quer que ela ame a Deus mais do que a si própria… A origem e o fim são idênticos (Jo 1, 43).

(Mestre Eckhart, citado por Ancelet-Hustache, 1956, pp. 59-60)

Assim sendo, a experiência mística cristã resulta de uma experiência de interioridade e de purificação do coração humano, numa permanente relação pessoal e imediata com Deus; é um encontro real e existencial com o Ser. Entende-se, assim, que, apesar da primazia da mística objetiva sobre a mística subjetiva, ambas só podem ser compreendidas na sua estrita e permanente relação, uma vez que não há nada de oco e anónimo nesta dinâmica.

O Mistério diviniza o homem – cristifica-o, na mística cristã – por um lado, e por outro expressa a dimensão subjetiva da mística na experiência das noites escuras, na contemplação, na oração, nas várias moradas interiores, na centelha divina, como nos apresentam os místicos cristãos aqui apresentados: Mestre Eckhart, Santa Teresa e S. João da Cruz. É, na síntese de García (2003), uma experiência de interioridade e de contemplação.

A terceira dimensão da mística cristã expressa-se através da dimensão cristológica e eclesial. S. João da Cruz faz clara justiça a esta dimensão, uma vez que só se poderá compreender a sua mística pela via cristocêntrica e, por intermédio dela, se alcança a dimensão teocêntrica. Para os místicos cristãos por nós estudados, é clara a mediação da humanidade de Jesus Cristo em toda

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a experiência mística (Santa Teresa 6 M 7; S. João da Cruz D 18; Mestre Eckhart Sermão 4: Eu sou a causa de que Deus seja Deus).

Desta dimensão resulta a dimensão eclesial. Passa, naturalmente, a existir um lugar do “nós”, na mística cristã, uma vez que a inserção crística-eclesial abre a experiência do místico aos outros, decorrente da sua necessidade de cuidar dos outros e de evangelizar, como nos testemunham os escritos dos nossos místicos. Como refere García (2003, p. 15), “a União Mística não é, portanto, fim em si mesma, mas antes fonte de um novo dinamismo, que visa sobretudo comunicar a própria experiência”.

É, assim, uma mística de serviço, que assenta na dimensão do amor, tão sublinhado pelos nossos místicos. O amor desenha e molda definitivamente o místico e a intensidade das suas palavras. É, ainda, a dimensão do amor a pedra matricial que permite os diferentes graus intensivos da experiência mística; a experiência da noite e do vazio, do desejo e do gozo, a ausência e a presença, o padecer e saborear e a dinâmica do ir e do vir. Enfim, o amor é a força vital mística por excelência, na mística cristã e, também, na mística islâmica. Por tudo isto, podemos salientar que o místico cristão integra, no seu coração, no seu pensar e agir a intensidade da atitude teologal: fé, espe-rança e caridade.

A mística de cariz mais subjetiva, centrada mais na descrição da expe-riência mística do encontro com Deus, ocorre já na época moderna, em detrimento da mística objetiva, centrada preferencialmente na contemplação e imitação dos mistérios divinos. Sai-se de uma mística mais teocêntrica para uma mística mais antropocêntrica, mais distante dos mistérios divinos e mais focalizada no homem transformado por esta experiência, permanecendo, no entanto, como na mística medieval, uma mística cristocêntrica (García, 2003). Esta mudança no campo místico, assente na subjetividade, faz ressaltar o mistério do homem como realidade pessoal e existencial, sob o acento do Tu Divino. Desta forma, o homem não é um ser centrado em si mesmo, mas, antes pelo contrário, um ser aberto ao transcendente e a essa experiência. Esta experiência mística, por sua vez, resulta numa experiência primordial de transformação do homem e da sua história, como nos diz García (2003). O autor destaca, nesta ordem de ideias, as cinco místicas mais conhecidas e que assentam nestas características: a mística activa de Inácio de Loyola (1491--1556); a mística contemplativa e que ensina o caminho da oração de Santa Teresa de Ávila (1515-1582); a mística mistagógica que ensina o caminho de união com Deus através da purificação interior das noites de S. João da Cruz (1542-1591); a mística de conformação com Cristo da escola francesa, fazendo

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dos mistérios de Cristo o centro da vida cristã; e a mística de São Francisco de Sales (1567-1622), mística do discernimento, que procura orientar o cristão para o mais alto cume da santidade.

Atualmente, o movimento neomístico cristão assenta na dinâmica impul-sionada pelo Concílio Vaticano II, a valorização do movimento bíblico e patrís-tico e do movimento dos grupos dos anos setenta que questionam a sociedade secularizada. Esta mobilização mística estrutura-se na dimensão histórica do cristianismo e no compromisso social de transformação do mundo. O nós ganha, assim, nesta nova mística cristã, uma força maior, mais activa, mais solidária, mais interventiva.

Podemos, assim, sintetizar, em termos mais fenomenológicos, algumas das características mais salientes nos discursos místicos cristãos, tal como destaca Moioli (1985). O místico faz uma experiência de penetração-apropriação da objetividade cristã, como acima sintetizámos. Encontra-se, igualmente, nos seus discursos, o sentimento vivido pelo místico cristão de importância relativa da experiência que vive. Quer isto dizer que toda a experiência mística do Divino orienta-se sob um imperativo ético fundamental do cristão: a caridade. Encon-tramos, igualmente, a experiência da inefabilidade da União Mística, que não é entendida como experiência de superação de si mesmo, mas como experiência de penetração no mais fundo da sua interioridade. E, quanto mais o místico penetra neste interior de si mesmo, mais reduzida se torna a banalidade da sua linguagem, mais emerge a simbologia e a criatividade.

Estas características criam, assim, uma tipologia própria desta mística. Um dos elementos desta tipologia é o facto de ser uma “mística da essência” e “mística esponsal”. A mística renano-flamenga dos séculos XIII-XIV é a expres-são clara da primeira dimenexpres-são, que verá novo reflexo na mística espanhola do século XVI. Nesta “mística da essência” se encerra a ideia de união como experiência do ser criado no Ser originário, de que aquele é participação, sem que se estabeleça forçosamente uma alteridade. O mistério de Deus é, então, mistério de unidade na Trindade, unidade fontal da essência e o mistério do homem, como imagem de Deus. É o lugar onde se dá a unidade ontológica com o Divino, constituindo o ponto exponencial desta mística. A “mística esponsal” tem uma marca mais bíblica, onde está patente a simbologia da aliança e a simbologia nupcial. A união é expressa em termos da união entre esposa e esposo, numa dimensão de entrega e disponibilidade total, numa resposta livre de amor, a um Amor Absoluto. É a experiência não do ser-uno, mas de estar-unido, tal como encontramos nas experiências de Santa Teresa de Jesus, S. João da Cruz e Santa Catarina de Sena. Por fim, o outro elemento

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da tipologia mística cristã é o facto de ser uma “mística da ausência”, enquanto experiência de aridez abismal, da experiência do sentir-se separado do Uno, que, para o místico cristão, é uma experiência do des-encontro, do abandono, do não-digno d’Ele, logo, do não sentido da sua existência.

1.2.2.2. Mística islâmica

Nos séculos VIII e IX começou a surgir uma forma ascética de islamismo, juntamente com outras seitas. No entanto, são os séculos IX e XIII que repre-sentam, de facto, o surgimento e auge do sufismo, mais focalizado na Pérsia. Como grandes responsáveis pela sua estruturação e aceitação, para além do profeta Maomé e dos califas Abu Bakr e Ali, surgem nomes como Rabiah Adawiyah (século VIII), Junaid (século X), Al-Hallaj (século X), Al-Gazzali (século XI), Ibn Arabi (século XII), Rumi (século XIII), entre outros (Graef, 1970; Azevedo, 2000).

Os ascetas da altura manifestavam uma preocupação crescente face à riqueza da corte e ao aparente abandono da austeridade da antiga ummah (comunidade). Desta inquietação surge a opção de aproximação à vida mais simples dos primeiros muçulmanos, vestindo ásperos trajes de lã (swf). Este motivo leva a que estes homens passem a ser designados por sufis (Pareja, 1975; Armstrong 1996; Azevedo, 2000, Schwartz, 2005).

O sufismo está desde sempre impregnado de ideias claras, tais como a dimensão do amor, como linha de orientação de todo o sufi, a visão alcorâ-nica da unidade de todas as religiões corretamente orientadas e a esperança de se poder ter uma experiência de Deus semelhante à de Maomé quando rece-bera a Revelação. Para os sufis, a ascensão mística de Maomé ao céu passa a ser a inspiração e paradigma da própria experiência de Deus (Armstrong 1996) e o Alcorão torna-se a sua escritura sagrada, assumida como fonte de conhe-cimento metafísico e místico e do comportamento ético e moral, juntamente com os Hadith (ditos do Profeta), a Sunnah (atos e costumes do profeta regis-tados pela tradição) e o acompanhamento de um guia ou mestre.

Schwartz (2005) relembra-nos que, para o sufismo, o órgão que possibilita o conhecimento de Deus é o coração, não o cérebro. O coração transforma-se, nesta mística, como um órgão, não de carne, mas psico-espiritual, centro da fisiologia mística, o “olho” que permite a visão da forma do Divino.

Porque é visto entre os próprios sufis como a última das grandes místi-cas, o sufismo ganha, assim, a designação de “Selo da Mística” (Azevedo, 2000). Ele é, igualmente, entendido como ponte que estabelece uma ligação entre a espiritualidade do Oriente e do Ocidente. Os místicos sufistas exercem, ainda

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hoje, uma influência marcante e notória, nomeadamente em jornalistas, artistas, profissionais liberais, etc., do mundo ocidental da atualidade.

Para o sufi, a união com Alá só pode ser alcançada através de um cami-nho ou passagem, peregrinação ( ar qa) que contempla vários estados (h al), acompanhado por um mestre, um guia. O estado é algo que vem de Alá para o coração do homem, sem que o homem tenha capacidade de repeli-lo ou atraí-lo – são dons da graça. Os estados, no entanto, traduzem uma condição per-manente que o homem alcança, contribuindo para isso os seus esforços – são atos. O guia, por seu turno, observa todo o crescimento espiritual do discí-pulo, lendo os seus pensamentos, interpretando os seus sonhos e pensamen-tos, ensinando-o a comportar-se em cada estado mental, em cada estação, prescrevendo períodos de reclusão quando necessário, etc. Segundo os sufis, há tantos caminhos individuais quanto o número de homens que procuram Deus, resultante da diversidade de carácter e de capacidades individuais (Schwartz, 2005).

Este caminho místico, tal como nos apresenta Graef (1970), inicia-se com o abandono dos prazeres do mundo, a opção pela pobreza física, pela indiferença à fama, aos insultos, a tudo o que agita a alma humana. Segue-se um conjunto de exercícios de paciência, que chegam a ser dolorosos para o aspirante sufi, pois é uma fase de exigência de desprendimento do mundo sensível e de ainda não união com Deus a quem deseja mais do que tudo. É um abandono de si mesmo na vontade de Alá e uma espera conformada naquilo que Alá quererá dele. A alma humana é como o espelho que terá de se limpar para que reflita a luz divina, na imagem dos místicos islâmicos (Graef, 1970; Pareja, 1975; Schwartz, 2005). No recolhimento e na meditação, o aspirante poderá alcançar por fim o êxtase. Este êxtase, sintetiza Graef, é um estado em que o sufi está tão absorto em Alá, que não consegue sentir o seu próprio corpo, nem os seus pensamentos, nem tampouco qualquer coisa que ocorra à sua volta – assemelha-se à da mística cristã, a da embriaguez do eu que se perde em Deus, como testemunham os textos de Santa Teresa, no Livro da Vida:

Como fica a alma quando está assim! Toda ela queria ser línguas para louvar ao Senhor! Diz mil desatinos santos, atinando sempre em contentar em Quem a tem assim. (…) E pois que ao escrever isto não estou fora desta santa loucura celestial.

(Santa Teresa de Ávila, V 16, 4)

Ser sufi é, portanto, não possuir nada e ser possuído por nada; é um morrer para si mesmo e viver n’Ele. Esta é a única forma de vida possível para

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