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Moisés e o Monoteísmo (1939 [1934-38])

infantilismo psíquico, evasão, despersonalização, desontologização? – um diálogo com a psicanálise

4.1. Freud: a religião e a mística

4.1.4. Moisés e o Monoteísmo (1939 [1934-38])

Uma outra obra de Freud que importa abordar, neste âmbito, é Moisés e o Monoteísmo. Esta sua obra resulta de três ensaios de Freud, em que os dois primeiros surgem originalmente em 1937, na revista Imago 23 (1), p. 5-13 e (4) p. 387-419. No Verão de 1934, escreve o primeiro rascunho, intitulado O homem Moisés, um romance histórico. O terceiro dos seus ensaios – lido pela sua filha Anna Freud, no Congresso Internacional de Paris, em 2 de agosto de 1938 – Freud ultima-o em Londres, numa época em que o nazismo exercia a sua força, forçando a sua transferência para a Grã-Bretanha, tempo em que transparecia um acentuado fundamentalismo na política, na cultura e na religião.

Somando a todo este contexto, importa salientar que Freud estava num momento particular difícil, em termos de saúde, o que faz deste seu período de vida um tempo de luta pela sua vida e de persistência pela valorização de todo o seu trabalho intelectual. Não faltam referências ao facto de estas repre- sentarem algumas das razões que aproximavam a sua admiração pela figura de Moisés, a quem reconhecia qualidades semelhantes. Esta obra acaba por ter um sentido especial na sua vida.

Neste seu trabalho, Freud procura reconstituir a génese do monoteísmo judaico, propondo realizar uma interpretação psicanalítica da religião judaica, recorrendo aos pessoais conhecimentos oriundos da sua cultura judaica, da história das religiões e da exegese bíblica relativa à Torah ou, se preferirmos, ao Pentateuco. Nesta obra, o autor colocará também a questão relativa à ori- gem dos judeus e às razões que terão conduzido ao ódio tão generalizado a este povo.

Freud, orientando-se pelas pesquisas feitas por especialistas, defende que Moisés era egípcio, provavelmente de origem aristocrata, e não judeu, como se fazia crer. Com base nas suas conceções sobre o romance familiar do neurótico e do mito do herói, Freud procura reconstruir a origem e a história de Moisés. No mito do herói, há sempre uma criança que nasce de uma famí- lia nobre e esta, alertada por uma profecia contra o seu nascimento, decide condená-la à morte ou abandoná-la, sendo, entretanto, salva por animais ou pessoas humildes. Já crescido, reencontra a sua família, vinga-se do pai e alcança grandeza e fama. Freud relembra, aqui, que Moisés é o herói apresentado numa versão inversa a esta, através de uma lenda criada entre o povo judeu: de origem humilde e judaica, salvo das águas pela princesa egípcia. E, neste âmbito, avança com a sua hipótese da origem egípcia de Moisés, invertendo, então, a versão veiculada ao longo dos tempos, numa similaridade ao mito do herói. Continuando na sua leitura psicanalítica do mito de Moisés, Freud recorre ao romance familiar do neurótico: nos primeiros anos de vida, a criança supervaloriza os seus pais, em que reis e rainhas nos contos de fadas representam os seus progenitores. Com o passar do tempo, fruto da influência da rivalidade e do desapontamento da vida real, a criança começa a desligar-se dos pais e a adoptar uma atitude crítica para com os progenitores. Neste sen- tido, torna-se claro, para Freud, que as famílias, a aristocrata e a humilde, são reflexos da própria família da criança no seu “romance familiar” fantasioso, assim como as lendas destes heróis são uma extrapolação do romance familiar infantil.

Freud assinala, então, que a lenda de Moisés foi criada pelos e para os judeus. Apoiado nas contribuições de Ernest Sellin, Freud procura reconstruir a origem da religião monoteísta.

O povo egípcio sofre uma grande revolução religiosa que veio a influen- ciar todo o modo de vida deste povo, consequência da ascensão ao trono do Faraó Amenhotep IV. Este Faraó destrói tudo o que se ligava ao deus Amon. impondo, a todo o Egito, a adoração ao deus Aton. Esta imposição originou insatisfação e revolta junto do povo, provocando a morte de Amenhotep IV e

a reposição do culto ao deus Amon. Moisés, homem de elite do Faraó, dese- jando permanecer fiel ao deus Aton, abandona o Egipto acompanhado por um grupo de fiéis seguidores. Porém, a forma autoritária com que pretendeu impor a sua religião custou-lhe o sucesso e a vida, sendo morto pelos seus seguidores. E, durante algum tempo, a sua religião permaneceu no esqueci- mento.

Freud faz, então, uma ligação com o que havia mencionado em Totem e Tabu (1913), relativamente à origem da religião, assinalando a morte de Moi- sés como uma repetição compulsiva do assassinato do pai primitivo: tal como o pai da horda fora assassinado, também Moisés, notável representante da figura paterna, é assassinado por aqueles que tinha libertado; tal como os filhos foram assaltados pelo sentimento de culpa pela morte do pai, também os judeus sentiram culpa pelo líder assassinado. Estava encontrada, para Freud, e a partir da psicanálise, a compreensão para a origem do monoteísmo. Esta culpa sentida pelo povo judeu levou-os a retomarem a sua crença, qual esperança de manterem simbolicamente vivo o homem morto, qual força que permite que o monoteísmo judaico subsista até aos tempos de hoje.

Não perdendo nunca de vista o contributo da psicanálise neste seu desenvolvimento, Freud tenta descobrir, na leitura do texto bíblico, o não- -dito, presente nas lacunas e omissões do que é-dito. Daqui surge a analogia que faz entre o relato bíblico e os processos oníricos, de onde resultam os dois elementos. Um deles é a condensação – em que cada palavra, cada imagem e cada pessoa podem adquirir uma plurideterminação. O Deus de Yahweh mais não seria do que a condensação e a superdeterminação do deus de Moisés, nas suas características. O outro elemento é o deslocamento, presente quando os judeus deslocam para Moisés a culpa por ter sido assassinado: Moisés, na tempestuosidade do seu carácter, terá desobedecido a Deus quando este lhe ordenara para que falasse à rocha, a fim de obter a água que o povo necessi- tava, ferindo a rocha com a sua vara. Este ato provocou a ira de Deus e a morte de Moisés.

Freud, ainda na sua explanação sobre a religião mosaica, faz relevo dos seus elevados ideais, exortações morais e éticas. O pai da psicanálise não deixa de reconhecer quer os valores espirituais, quer os altos padrões de inte- lectualidade do judaísmo. Há, nesta religião, um triunfo da espiritualidade sobre os sentidos, ou seja, uma renúncia às pulsões. Freud assinala, assim, a presença, no monoteísmo, dos ideais de justiça, verdade e amor, apesar de não terem conduzido a um alto nível intelectual, como o protagonizado. Contudo, o monoteísmo judaico, fruto de motivações inconscientes, recaiu,

por fim, no círculo “neurotizante” de uma repetição compulsiva das origens. E, conclui Freud, apenas podemos compreender os fenómenos religiosos tendo por base o padrão dos sintomas neuróticos individuais, como o retorno de acontecimentos importantes, que ficaram esquecidos há muito, na história primeva da família humana.