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e gozo do Absoluto Presente

9. Lembrança da morte: contemplar a morte poderá ser um meio possante

3.5. Um espaço – o vazio e o nada

Pelo que fomos afirmando, no ponto anterior, podemos perceber que há uma ligação estreita entre o vazio e a noite. O vazio ocupa por vezes a função da própria noite.

Tal como a noite, o vazio é o tempo da metamorfose do místico, a expe- riência do vazio como do nada é o lugar, o casulo, dessa mesma metamorfose. Josaphat (1998) diz-nos, curiosamente, que “a memória tem sido um primeiro ponto de encontro da mística e da psicanálise. O vazio da memória é o limiar da experiência mística” (p. 343). E, Borges (2005, citado por Pires, 2007) defende, ainda, que o êxtase é um acontecimento de “outra ordem” e esta não deixa traços recuperáveis na memória, exigindo, muito provavel- mente, um outro tipo de memória para que seja reconstituído, tal como o gozo e a criação poética.

Mas o vazio tem, ele próprio, um conteúdo: “pobreza”, “falta”, “ausên- cia”, “carência”, “purificação”, “renúncia”, “mortificação”, “desnudez”, “soli- dão”, “desamparo”, “treva” (Josaphat, 1998). Para que a alma fique livre, vazia, é necessário estar cheia destes conteúdos. O gosto e apetite são obstá- culos a eliminar, porque levam a alma a dispersar-se no exterior, prender-se à dispersão. O vazio é a gravitação natural do “apetite”, do “desejo” onde estão implicadas todas as instâncias sensíveis ou espirituais do ser, do conhecer, do querer e do agir. S. João da Cruz sintetiza bem todo este imperativo, que ocorre na noite, da seguinte forma:

Para chegar a gostar de tudo, não queiras ter gosto em nada. Para chegar a possuir tudo, Não queiras possuir algo em nada. Para chegar a ser tudo,

Não queiras ser algo em nada. Para chegar a saber tudo Não queiras saber algo em nada. Para chegar ao que não gostas Hás-de ir por onde não gostas. Para chegar ao que não sabes, Hás-de ir por onde não sabes Para chegar ao que não possuis, Hás-de ir por onde não possuis Para chegar ao que não és Hás-de ir por onde não és. (São João da Cruz, 1S 13, 11)

E todo o vazio místico tem um dinamismo e sentido próprios. O vazio da memória, diz (Josaphat, 1998) “apressa o amanhecer do espírito. Leva à des- coberta do Outro e encaminha à realização do próprio eu. Liberta o passado, viabilizando que se desbravem as veredas por porvir. O que está por vir se anuncia numa gestação dentro da noite, angustiante e pesada graças ao vazio da memória, a noite não deixará de ser escura, porém se tornará amável e ditosa, translúcida pela esperança do dia que vai raiar” (p. 343); significa o despontar da luz, o desabrochar da contemplação, que surge do perfeito amor e o conduz até ele.

Há uma negação absoluta de tudo o que é criado, o nada que não pode sobrepor-se ao tudo de Deus. Para além da importância da fé, o amor místico liga-se a este vazio, na Noite, como dinamismo fundante da União Mística. É neste sentido que insiste o místico joanino, ao afirmar que as trilhas do Nada são o caminho para o tudo.

Este nada ditado por S. João da Cruz, na Subida ao Monte Carmelo, declara de forma clara o quanto “o movimento místico é sempre uma procura abso- luta do original, um esforço em ordem, por conseguinte, à dessemiotização para atingir a essência de todo o sentir e todo o pensar, onde o núcleo da ver- dade subjetiva parece encontrar o lugar da sua morada” (Pereira, 1994, p. 230).

Os místicos, por nós estudados, foram capazes de desfazer a antítese do tudo e do nada. Cheios do tudo o que os sentidos e a vida exterior lhes davam, encontraram o vazio da vida, o sem sentido. Vazios de tudo e de si mesmos, encontraram o tudo no nada da sua vida – o todo o sentido.

O nada é, de facto, um termo usual nos discursos místicos apofáticos, bem diferente do significado filosófico do “não sei”. Na raiz de toda a posses- sividade, encontramos o desejo de ser eu, diz-nos Schwartz (2005). Este desejo é, no entanto, um falhanço no ser nada; é um eu que deseja ser enten-

dido como meu, logo é um eu falso, clarifica, ainda, a autora. A questão nasce do conceito de definição do eu. Quando o eu se autodefine, em termos de ipseidade, e se satisfaz com esse conhecimento de si mesmo, o espaço, o lugar para um outro rosto fica automaticamente ocupado, o mesmo é dizer, o outro fica imediatamente excluído. Mas esse eu, é incompreensível para o místico, pois é entendido como falso eu, um eu narcísico, um eu egocêntrico, uma completude imaginária, incapaz de se transcender. A consequência inevitável será a permanente insatisfação face à necessidade incessante de sustentar a sua ilusão.

Deus era Nada, na perspetiva de Eckhart. Este nada transmitia a ideia de uma existência mais rica e mais plena do que aquela que nos é possível conhe- cer (Armstrong, 1996). E, porque Deus é Nada, a única via possível para uma união é sermos nada. Para o místico, este é um processo doloroso, inquestiona- velmente.

Como anteriormente frisámos, no nosso trabalho, no ponto Uma exigên- cia – o Essencial, o Nada de Eckhart implica o total esvaziamento de si, a radi- cal pobreza, pois, enquanto temos algo dentro de nós, não seremos livres nem estaremos disponíveis, logo a unidade não é possível:

Estar vazio de toda a criatura, é estar cheio de Deus. E estar cheio de toda a cria- tura, é estar vazio de Deus. (…) Na máxima disponibilidade (desprendimento) o conhecimento é sem conhecimento, o amor sem amor e a luz escuridão…

(Mestre Eckhart, DW V, 542 e 545, in Mestre Eckhart. A mística do Ser e do Não Ter, de Leonardo Boff, 1983, p. 38)

Como nos afirma Varenne (1989, pp. 18 e 19), “só a experiência do ‘Nada’ (o ‘nichts’ de Eckhart ou o ‘Nada’ de S. João da Cruz), vivida no termo de uma ascese corporal e mental decisiva, abre e renova as perspetivas espiri- tuais tradicionais”; a abertura mística “emana do ‘Nada’ plenamente vivido, uma plenitude iluminante”. Acrescenta, ainda, o autor, há um “não sei” apo- fático, um nada, um vazio, onde tudo aparece e desaparece simultaneamente, deixando de haver interior e exterior. É então que surge, nesta pulverização do “outro lugar” e do “dentro” o contraditório, o paradoxo – a fenomenologia dos arrebatamentos, dos êxtases, dos arroubamentos, da suspensão dos senti- dos e potências da reintegração, do gozo, etc. – aqui é o espaço efetivo onde o real é aniquilado.

É o nada teresiano, como espaço cheio de presença; é a possibilidade de experimentar a presença da ausência; a experiência intensa de sou Nada, Deus é Tudo; é a serenidade da experiência do Nada te perturbe, Nada te espante, só Deus basta (Pinto, 2007).

O nada, surge, como ato de um autoesvaizamento, em que a alma realiza um exercício de profundidade abissal, desafiando os seus limites, pois apenas conhece o seu início, mas não poderá, em consciência, prever a natureza do seu término. A alma mística poderá, apenas, aguardar que Deus nela se ins- tale.

Pelo processo do vazio total, o místico já não quer nem imagina nada; quando deixa de pensar e sentir-se, torna-se transparente frente ao Outro, porque livre de visões imaginárias, formas, figuras, conhecimentos particula- res, em estado de alma puro, claro (2S 16, 9-10).

É a suspensão mística. Pereira (1994) não só a elege como “critério” tria- gem para se saber se num momento a alma se encontra com Deus, mas tam- bém como “operação” do nada místico.

E desta “operação” resulta: “não ter que bulir nem buscar o nada do enten- dimento” (7M, 3, 11); “só Ele e a alma se gozam com altíssimo silêncio” (7M, 3, 11); “a alma…não se acha com aquela soledade que costumava sentir” (7M, 3, 12); e a suavidade da paz e do repouso, pois “não se espanta de nada” (7M, 3, 12).

O nada na noite restitui o original da Totalidade original, do Outro e do eu, da União Mística. O nada corrói o fragmentário e o disperso, a noite des- cobre o rosto da Unidade.

Um tempo (noite) e um espaço (vazio, nada) que constituem a possibili- dade da procura da unidade original, do Único, que é a procura do verdadeiro de si, para utilizar a expressão Winnicotiana – ou, na linguagem de Bion, da realidade última, ou ainda, na conceção de Sami Ali, do espaço imaginário, mas enquanto puro espaço, lugar de acolhimento de todas as imagens segundo a lógica de inclusão recíproca que toda a posição mística restitui.

É a lógica da inclusão recíproca que faz com que tudo o que é dito pelo místico introduza o caos nas oposições do pensamento finito, para finalmente as abolir (Pereira, 1994, p. 233). Um tempo (noite) e um espaço (vazio, nada) que aos amantes pertence:

Entre dois erg [mares de dunas], no desvio do vale, o lugar do encontro. Que os nossos camelos aí parem, é aí a última paragem.

Nem passo, nem avanço mais além:

Nem mais monte, nem mais erg, nem mais lugar. (Ibn Arabi, in Le Chant de l’ardente désir, 25, p. 53)