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A experiência mística como experiência de criatividade

mística como evidência de infantilismo psíquico, despersonalização, evasão ou desontologização

4.2.1. A experiência mística como experiência de criatividade

A capacidade de refazer o humano emerge do interior; é criado e recriado do interior. Como se o interior delimitasse a veracidade da transformação humana e o exterior apenas fosse o espaço do seu reflexo. E nesta arte, o místico é mestre. O místico descobriu que “a verdadeira conversação é a que sustentamos no nosso interior” na expressão de Unamuno (1944, p. 17). É que a conversação interior de que o místico é testemunho é a de “um diálogo já não só entre dois, mas entre muitos”, num ato de criatividade face à sociedade que “nos impõe silêncio e uma conversação fictícia” (ibidem). É a translúcida criatividade sub- jetiva:

A experiência mística de Deus tem certas características que são comuns a todas as fés. É uma experiência subjetiva que envolve uma viagem interior e não a perceção de um facto objetivo exterior ao eu. Essa viagem é empreendida pela parte da mente criadora de imagem – frequentemente chamada imaginação – e não pela faculdade mais lógica e cerebral. Finalmente, é algo que o místico cria em si mesmo deliberadamente. Certos exercícios físicos e mentais proporcionam a visão final, que nem sempre surge inopinadamente (Armstrong, 1996, p. 249).

Mas estaremos nós perante a questão de uma dicotomia entre o pensar e o sentir? Nesta inquietação de entender toda a experiência humana, do sentir, do desejar e do pensar, que tanto nos empurra para a realidade de elevada fragilidade como para a surpresa das capacidades humanas, o místico parece integrar, controlar e equilibrar toda esta realidade da humanidade, parecendo até imune a qualquer corrupção desta capacidade.

No mundo intelectualizado, mediatizado e informatizado, hermetizado na egolatria como o nosso, o místico surge como uma “espécie de ser” capaz de realizar “o trabalho de viver com inteligência, a tarefa de pensar sem pre- conceitos…, sem excessivas defesas” (Diniz, 1994, p. 63) permitindo apren- der “com a experiência e construir uma certa unidade interior, que propor- ciona um verdadeiro prazer. É essa integração que permite um contacto de verdadeira descoberta do outro, que é o grande prazer da vida humana, e tem na relação amorosa o seu paradigma mais expressivo e o modelo mais conse- guido de harmonia do físico e do mental” (Diniz, 1994, pp. 63-64).

A mística não deixa de ser, assim, um diálogo com os mundos de cada época, com os homens de cada tempo histórico e cultural. Deixando de parte a questão de dialética entre mística-mundo, ou um solilóquio, o facto é que a mística emerge no tempo humano como uma resposta às crises desse tempo (Boff, 1983). Esta realidade emerge de todo o trabalho transformativo que realiza no interior do homem.

No entanto, como poderemos nós entender a experiência mística como experiência de criatividade?

Situemo-nos, primeiramente, nalgumas linhas orientadoras patentes no pensamento místico, não esquecendo o que até agora fomos expondo. O pen- samento, a vontade e a imaginação são realidades especialmente valorizadas e trabalhadas pelos místicos. “Só o pensamento do homem vale mais que o mundo inteiro. Portanto, só Deus é digno dele”, diz-nos São João da Cruz em D 26. No entender de Ibn Arabi, o místico tem o dever de criar as suas pró- prias epifanias, num ato de imaginação criativa:

Nos versos que compus para o presente livro, nunca deixei de aludir às aspira- ções divinas, às visitas espirituais, às correspondências (do nosso mundo) com o mundo das Inteligências Angelicais. Assim, submeti-me à minha maneira usual de pensar em símbolos; isto porque as coisas do mundo invisível me atraem mais do que as da vida real e porque esta rapariga (Nizam) sabia exatamente a que me referia.

(Ibn Arabi, in Diwan, citado por Armstrong, 1996, p. 266)

Ibn Arabi concretiza, nesta interpretação da imaginação como dom de Deus, a passagem de uma conceção da espiritualidade significativamente per- sonalizada para uma conceção transpessoal de Deus, uma vez que para este místico a criação da epifania mais não é do que criar na terra uma realidade que já existia no reino dos arquétipos; e, ainda, ver nos outros o Divino mais não é do que fazer um esforço de imaginação para pôr a nu a verdadeira reali- dade (Armstrong, 1996). Como nos relata Armstrong, “Ibn Arabi imaginava um Deus solitário, suspirando de ansiedade, mas esse suspiro (nafas rahmani) não era a expressão de uma autocompaixão sentimentalista. Tinha a força ativa e criadora, que deu existência a todo o nosso cosmos” (Armstrong, 1996, p. 268).

É exatamente aqui, nesta imaginação akbariana, que a experiência ganha uma forma de imaginação criadora. Ela está patente, segundo Corbin (1958, citado por Miquel, 1992), em três dimensões, a saber: a) a experiência da ausência que o místico imagina é mais completa que a experiência da pre- sença realizada; b) o iniciado no amor vive na ilusão de acreditar que a pre- sença real é mais rica do que a imaginação; c) há um amor disponível que investe desde que encontre o que a imaginação lhe inspirou; é uma verdadeira teofania esta experiência espiritual de pressentimento. O místico radicaliza, na sua experiência, aquilo que Bion (1975, p.7) expressava: “os pensamentos existem sem um pensador”.

Esta forma criadora ressalta também na mística cristã. Não é sem sentido que Pitaka (1992), na sua argumentação relativa ao facto de S. João da Cruz não

ser um platónico (na processo místico de ascensão ao Divino, tal como o des- crito no Banquete de Platão), apresenta precisamente esta dimensão da criativi- dade e a necessidade do místico sair de si. Depois de dizer que o ser humano é criatura e não alma, afirma que o caminho de amor não é um retorno, mas avanço de criatividade e, acrescenta, logo de seguida, como terceiro argumento, que a grandeza do homem está em sair de si e falar ao outro, num diálogo de entrega e criação inter-humana e não na base de uma dualidade.

De facto, na leitura dos místicos, somos confrontados com esta capacidade de transformar o interior humano, num ato de criatividade antropológica. Exige-se, ao místico, o radicalmente diferente, num referencial de perfeição. Logo, a elaboração a que se sente sujeito conduzi-lo-á à experiência criativa. A elaboração à qual se entrega transformará a sua vida, aproximando-se, nesse aspeto, da experiência psicanalítica. Será um frente a frente entre um Self ver- dadeiro e um falso Self. Será a concretização da subjetividade, pois “onde a representação da função imaginária não se concretiza é a anulação da subjetivi- dade que se elabora, a construção do compromisso, do literal, do banal que se verifica” (Sami-Ali, 2002, p. 15). Seguindo o pensamento de Sami-Ali – agora na passagem que utiliza de Tewfik El-Hakim (Schéhérazade) – “a transparência é a sua máscara” (Sami-Ali, 2002, p.28).

Não se trata de um processo linear, mas de contínuas oscilações entre estados, em que a iluminação será determinante e, ela própria, elemento de criatividade. Será o elemento inspirador, ou melhor, a inspiração da própria experiência mística.

O místico, ao narrar a sua experiência – narração essa que é já uma inter- pretação – promove a “expansão do universo”, na expressão de Bion (1975), da sua mesma experiência, da reflexão sobre os limites subjetivos e intersubjetivos do ser humano. A própria utilização da simbologia leva-o a interpelar mais a imaginação e a memória do que o entendimento e a razão.

Quantos mais artefactos eliminar, quanto mais defesas deixar de formu- lar, mais será capaz de ser surpresa de si mesmo – mais será capaz de ser naturalmente criativo. “O homem sobrehumaniza-se naturalizando-se”, diz Unamuno (1974, p. 80).

O funcionamento mental do místico, integrador e criativo, dimensiona- -se num “espaço” capaz de integrar os diferentes elementos da vida emocional, a sua dimensão afetiva mesmo a dolorosa e o seu mundo relacional. Referimo- nos ao “espaço” que Pérez-Sanchez (1996) aponta como categoria que seja pensável, que ponha limites, fronteiras, que lide com outros espaços. Na sua atividade criativa, o místico estabelece, na prática, a interação entre o dentro e

o fora. Da dinâmica da projeção/introjeção, resulta uma experiência que enri- quece este “espaço” do místico, ampliando-o e fortalecendo os seus limites, fundamentando a flexibilidade necessária para o intercâmbio interior/exterior, fundamental para experiências mais complexas como a União Mística – expe- riência do eu-Tu.

Fauteux (1995) assinala, no seu artigo Regressão e reparação na experiên- cia religiosa e criativa, a existência de regressão que tem lugar na experiência religiosa e procura demonstrar que a regressão não tem de ser patológica, mas poderá ser reparadora. Defende ainda Fauteux que a purgação disciplinada do ego do indivíduo religioso pode ser semelhante à tentativa disciplinada do artista, num trespassar do Self superficial. Deste modo, ambas as realidades resultam na recuperação de processos primários reprimidos que conduzem à iluminação na experiência religiosa e na inspiração na arte.

Toda a experiência mística implica, como já tivemos oportunidade de mencionar, uma aniquilação do Self, como condição imprescindível à expe- riência de Deus. No entanto, esta realidade é entendida pela psicologia como uma renúncia regressiva do funcionamento do ego e um regresso aos proces- sos inconscientes arcaicos, mas que, no entanto, pode ser salutar se tivermos em linha de conta o processo de criatividade. Fauteux, vem sugerir, nesta mesma linha, que a experiência religiosa é regressiva e que essa regressão se aproxima da reparação que ocorre na criatividade.

No entender de Fauteux, a experiência religiosa inclui a inversão do desenvolvimento do ego e a restauração de processos psicológicos primitivos. Isto é feito sobretudo através de três estados: purgação, iluminação e união. Na purificação do eu intervêm uma diversidade de disciplinas espirituais, como por exemplo a obediência, a privação sensorial, o celibato – enfim, todas as exigên- cias narradas por nós no capítulo terceiro, nos pontos sobre o essencial, a ani- quilação, a noite, o vazio e o nada – levando, assim, o indivíduo, a purgar ou “morrer” para um eu orgulhoso e possessivo. Fauteux (1995, p. 36) afirma que os atos purgativos podem “refletir um desejo sincero de renunciar ao egocen- trismo do Self podendo ser também motivados pelo desejo inconsciente (e tam- bém consciente) de fugir às responsabilidades da idade adulta”. Um outro estado é o da iluminação. O autor assinala que a afluência da iluminação de processos inconscientes desvia a atenção da realidade para processos mentais primitivos. É o que acontece nos vários aspetos da experiência religiosa: inefa- bilidade, transcendência eufórica do tempo, renúncia sexual, renúncia de fun- ções secundárias, restauração de processos primários pré-racionais, visões sobrenaturais, etc. A união surge como o terceiro estado. Fauteux declara que

“para o cristão a regressão à simbiose maternal primitiva ocorre quando os limites psicológicos que separam o eu de Deus desaparecem e o indivíduo entra em união divina” (p. 37). É neste sentido que defende que, tanto a purgação do Self, como o regresso a processos psicológicos primitivos, sendo regressivo, não é necessariamente patológico. “A perda do Self pode ser um desmontar adaptá- vel do falso Self em que nos tornámos, enquanto o regresso a processos arcaicos pode ser a recuperação regenerativa do verdadeiro Self reprimido por baixo do falso Self” (p. 38), defende o autor.

Fauteux acaba por fazer uma analogia interessante entre criatividade e experiência religiosa. Tanto na arte como na experiência religiosa existe uma regressão adaptativa do ego, que pode significar um caminho de eliminação do falso Self e recuperação do verdadeiro Self, num processo de maturidade deste. O processo criativo exige inicialmente um esforço disciplinado de resistência à preguiça, de um desviar dos elementos exteriores e um voltar-se para o processo interior, de uma concentração, relaxamento do controle, libertação de si próprio, etc. Este é um estado de regressão temporário, neces- sário para que o indivíduo se possa livrar do falso Self e recuperar o verda- deiro Self, habilitando-se, então, para o ato criativo. Acrescentando as palavras de Pires (2007, p. 146), nesta linha de pensamento, “os sentimentos profun- dos e imagens arcaicas que surgem de seu mergulho no inconsciente são ins- piradoras, mas não constituem em si o processo criativo”.

O processo da experiência religiosa em muito se assemelha a este mesmo processo artístico. Toda a prática de disciplina a que o místico se expõe, no seu próprio esforço e/ou orientado por um mestre espiritual – como o descrito nas páginas do capítulo terceiro – visam este esforço de superar o falso Self e recuperar o Self verdadeiro. Para o místico, como para o artista, esta elabora- ção é uma via para uma experiência criativa. Como o artista, dançarino, músico, pintor, que só após um período de esforço disciplinado está apto para o ato criativo e para comunicar a sua arte, também o místico, só após uma purgação disciplinada é capaz de transformar a sua vida e é capaz de união com o outro, com o Outro. Artista e místico, ambos aprendem a confiar neste domínio do inconsciente iluminado, sentem-se confortáveis com ele; é o regresso do ver- dadeiro Self. Como nos diz Fauteux (1995, pp. 46-48):

A experiência de união para o místico ou para o artista é o sentimento de unidade (singularidade), de conexão ou pertença à espontaneidade instintiva e imaginação deste Self previamente não conhecido. (…)

A experiência de comunhão com Deus pode ser semelhante a uma ilusão esté- tica. A comunhão com Deus começa quando o místico, como o artista que pro-

cura inspiração, deixa de tentar fazer com que a experiência aconteça e, em vez disso espera que Deus se apodere dele. (…)

A ilusão estética do Self na união com Deus restabelece o objeto libidinal ideali- zado que faz a pessoa sentir-se tão inequivocamente amada e segura que até quando surgem frustrações e conflitos do inconsciente, como inevitavelmente aparecem, ela continua a confiar no Deus perfeito, como confiava na imagem maternal que Deus representa (…) o regresso das experiências religiosas aos processos incons- cientes arcaicos podem regressivamente ter ‘congelado’ os medos.

Alvitra-se, assim, com Fauteux, uma outra leitura da experiência subje- tiva mística. De facto, a experiência mística de uma forma regressiva anula a autonomia do indivíduo e reativa o seu passado psicológico. Contudo, esta realidade não envolve, por isso mesmo, uma deslocação do presente, antes pelo contrário, torna o passado psicológico mais significativo para o presente.

No entender de Estarriol (1993, p. 191), os místicos oferecem-nos “a expressão de uma experiência, de uma vivência íntima, sobre a qual falam e escrevem, que constitui o ponto de partida de uma atividade criadora, geral- mente em terreno da linguagem, mas também é acompanhada frequentemente de uma atividade que está na origem de fenómenos sociais de alcance histó- rico”. Há nos místicos um valor criativo da atividade mental e social que é inquestionável, afirma Estarriol. Neste sentido, o autor põe em relevo a Espa- nha do século XVI, onde se enquadram os nossos místicos, Santa Teresa de Ávila e S. João da Cruz, destacando o facto de terem escrito algumas das pági- nas mais belas da poesia e prosa espanholas.

Deste seu ponto de vista, Estarriol (1995, p. 195) conclui que, na expe- riência mística, o afeto invade a consciência de forma brusca e nem sempre acarreta um exercício ascético prévio. E acrescenta:

Essa irrupção do afeto altera a habitual sequência tópica de inconsciente-pré- -consciente-consciente e exerce posteriormente um efeito coercivo sobre o sujeito que, para dizê-lo bem, não descansa até poder dar-lhe forma como processo criativo que, geralmente, se desenrola no terreno da linguagem. (…)

Penso que o fenómeno místico mostra algo assim como a eclosão de representa- ções das coisas pertencentes à repressão primária que não foram ligadas previa- mente com as representações da palavra do pré-consciente.

Os momentos místicos, da mesma forma que os momentos criativos e os momentos mutativos da cura psicanalítica, (…) alteram e fecundam as capas mais avançadas do aparelho psíquico. Essas capas seriam as mais aptas para dar forma ao que, na nossa construção metapsicológica, chamamos a alucinação ori- ginária.

Tratar-se-ia, pois, de um curto-circuito tópico, de um salto sobre o pré-consciente que dá via de expressão ao inconsciente sem necessidade de ligação prévia com representações verbais.

Diniz (1994, p. 66) sublinha que “no desenrolar de uma cura psicanalí- tica trata-se justamente de sentir o que se sabe, para se saber o que se sente. É uma ciência do psíquico que não se envergonha do afeto. Não se envergonha nem tem medo. Como não se envergonha do somático. Não se envergonha nem tem medo”.

Toda a experiência mística exterioriza, de forma visível, aquilo que ante- cede todo o ato criativo: a coragem. A coragem é, como afirma Diniz (1994, p. 67), “indispensável para poder suportar a dúvida e manter uma atitude de espírito que permita ver o novo e o inesperado”.