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A subjetividade como estrutura significante do homem

à experiência subjetiva mística

2.2. A subjetividade como estrutura significante do homem

Se a experiência define o existir humano, ela é ainda, na propriedade do termo, insignificante, isto é, sem significado, se privada daquilo que lhe confere carácter, o sentido que o sujeito lhe dá. Por ser “a propriedade constitutiva do fenómeno psíquico do sujeito autoconsciente e pensante, que só pode ser experimentada por ele” (Morais, 1992, p. 1319), a subjetividade tem a ver com a singularidade do que é experimentado, único e irrepetível na essência do indivíduo. Ela é para o homem, pois, a estrutura de significado da experiência objetiva tida.

A marca primeira dessa subjetividade é dada, desde logo, em duplo sen- tido pela palavra que lhe serve de raiz: sujeito. Sujeito diz-se quer em relação à dimensão passiva ou de dependência – “sujeito a”, sujeito às vicissitudes, sujeito às condições – quer em relação à dimensão ativa oposta de liberdade, de iniciativa – “sujeito que”, sujeito de direitos, sujeito que age. Mais do que uma ambivalência semântica, o conceito sujeito encerra, neste sentido, a con- fluência de duas diferentes perspetivas: por um lado, ele ilustra o ponto de partida de uma esfera fenomenológica, da experiência, “duma sensação de si mesmo que o inglês caracteriza com a palavra Self e que representa o aspeto mais imediato da subjetividade” (Mezan, 2002, p. 259); por outro, ele encerra o estádio que, ao invés de ser determinado por certas forças, é ele próprio, sujeito, quem as determina. No entender de Mezan, a primeira perspetiva é a da experiência de si, enquanto que a segunda é a condensação de uma série de determinações. A primeira apenas encerra uma descrição fenomenológica da experiência que tem como alvo o sujeito; a segunda, ao invés, revela o inte- resse pelos factos, a sua leitura e que, após uma elaboração individual, resulta num molde para a própria experiência. Ela determinará a natureza da expe- riência que o sujeito tem de si, não apenas no domínio do inconsciente – pois a experiência comporta uma dimensão emocional e não existem emoções inconscientes –, mas no domínio também do consciente. O sujeito passivo, ao ser sujeito a qualquer coisa, ao ser afetado por uma qualquer pessoa ou acon- tecimento, vê essa experiência traduzir-se numa vivência percetível para ele próprio (Mezan, 2002), pela passagem da inconsciência da experiência à consciência da mesma e à atribuição de uma pessoal significação. É aí que a experiência se completa de facto para o sujeito.

Esta capacidade de atribuição de uma pessoal significação adquire uma particular leitura quando colocada à luz do conceito de Fernandes (1990) de individuação. De facto, se, no entendimento do autor, com individuação se pretende significar “o movimento através do qual a pessoa humana sem per- der totalmente os seus tradicionais ligames sociais ou em rompimento com eles, se afirma em crescente autonomia, capaz, por isso, de pensar e de agir com um certo distanciamento em relação ao seu meio ambiente” (Fernandes, 1990, p. 62), então, a individuação é a condição possibilitante para que a subjetividade se cumpra. Com efeito, é o distanciamento em relação ao meio social envolvente mais universal de significação que confere a possibilidade da apropriação de uma significação individuada. Esse é um processo de con- quista e de alargamento de autonomia que, por sê-lo, cria e aumenta a capaci- dade de opção e de decisão.

Neste estádio de desenvolvimento, individuação e consciência da subje- tividade não se opõem. Bem pelo contrário, a primeira concorre para realiza- ção da segunda. Mas o risco de desvirtuamento da individuação em indivi- dualização e desta em individualismo é grande. É, ainda, Fernandes quem isso nos recorda, chamando a atenção para as duas linhas de sentido oposto que tendem a ocorrer: a individuação personalizante e a despersonalização indivi- dualista; o homem que se descobre como indivíduo, mas que se perde como pessoa. No entendimento do autor, “o individualismo decorre do facto de o homem se sentir mais pessoa, à medida que foge ao controlo apertado da consciência coletiva e das pertenças englobantes, mas, em contrapartida, faz a experiência do isolamento e, por vezes, da desolação, que culmina na des- subjetivação” (Fernandes, 1990, p. 65). Esta não é mais do que um narci- sismo que, tendo abandonado o solipsismo, passa a adotar diferentes formas de interindividualidade, mesmo se com fraca carga de intersubjetividade. Esta manifestação narcísica concorre como é óbvio para que o mundo, todo ele, seja um espelho aos olhos do sujeito. A ausência de olhar para além da expe- riência direta e imediata impedem este sujeito narcísico de procurar a sua identidade no quadro de qualquer relação intersubjetiva. O seu mundo é o do solipsismo e do hedonismo, decorrente do isolamento criado que gera desejo de mais isolamento sem vontade de associação ou transcendência. Por oposi- ção ao individualismo que implica uma dessubjetivação, qual relação sem sujeito, afirma-o Fernandes, “a subjetividade é a busca do sujeito, na expres- são maior de interioridade pessoal, racionalidade, consciência e de envolvi- mento com os outros. Sendo o homem, por sua natureza, relacional, o seu desenvolvimento exige a intersubjetividade” (Fernandes, 1990, p. 68).

É aqui que o homem descobrirá a abertura de espaço para o que é dife- rente, para aquilo que rompe com a experiência linear do experimentado, com a banalidade e que postula permanentemente o novo. O homem surge aos seus próprios olhos como aquele que não descobrira, como uma desco- berta contínua de si e que decorre já não da elementar experiência de si, mas da significação que encontra, fora de si, para a experiência de si e que lhe confere significado. É nesta alteridade absoluta de segredos e densidades inte- riores, de significado encontrado nos outros, que se desenha a possibilidade de outras significações procuradas mais além do que o seu redor, numa trans- cendência outra onde busca significado para a experiência e a que o homem chama maior do que o humano. A experiência religiosa, e expressão indivi- dual última desta, a mística, é uma significação deste domínio que só poderá ser compreendida enquanto experiência de uma intensa e profunda vivência, que foi sendo revivida e analisada na intimidade silenciada. Não está, ainda, aqui em causa se essa experiência é eminentemente psicológica ou ontológica (Pinto, 2007). Do que aqui se trata é da afirmação da subjetividade como estado que só pode ser pensado, em última instância, na ausência do outro, “para se tornar objeto de pensamento e de intuição” (Pereira, 1994, p. 235) e, assim, radicalmente se alienar sobre o signo. Converte-se a subjetividade, nesse ins- tante, no seu próprio movimento de procura, qual pulsar constante de uma nova construção, a essência de si.