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estética e erotizada de uma relação

S. João da Cruz Lâmpadas de fogo

26

, pássaro solitário 27, espelho28, escada29, pomba e veado30, etc.

8

Ibn-Arabi, in Le Chant de l’ardent désir, 16, p. 44 e 17, p. 45.

9

Al-Fal Ysfiyyah, in Husaini, 1931, p 59-60.

10

Al-Fal Shethiyya, in Husaini, 1931, p 53-54.

11

Ghazâlî, in Le Tabernacle des Lumières.

12

Hallâj, in Poèmes mystiques, 33, p. 9.

13

Hallâj, in Poèmes mystiques, p. 69.

14 DC 2, p. 64. 15 DC 2, p. 65. 16 DC 2, p. 66. 17 DC 2, p. 80. 18 HN, p. 93. 19 DC 2, p. 62 20 DC 2, p. 20. 21 5M 2. 22 4M 2, 2. 23 1M 2, 1. 24 Moradas 25 7M 4; CP 3, 7. 26 P 7. 27 D 120. 28 V 8, 1. 29 2N, 1-2. 30 CB.

A par destes símbolos, toda a simbologia da mística cristã, da noite, da chama de amor, da união íntima com o Amado – linguagem muitas vezes embebida no Cântico dos Cânticos – embate na barreira da hipertrofia da fun- ção da própria linguagem e recondu-la para um reconhecimento poético, não dramático, não projectivo, de um indizivelmente dizível do experimentado. Há uma autoimplicação quer de razão e de afetividade, quer da lógica, quer da estética (Baruzi, 2001).

Os místicos, diz-nos Shoji (2003), apesar de afirmarem a inefabilidade mística, sempre comunicaram muito através do inefável, o que caracteriza não a inefabilidade da mística, mas antes uma mística da linguagem. Neste mesmo sentido, Shoji (p. 60) recupera as palavras de Cousins:

Os místicos simplesmente não têm sido silenciosos. Muitos têm falado sem restri- ção, e outros têm escrito volumosamente. O género de literatura mística é não somente quantitativamente vasto, mas linguisticamente luxuriante. No discurso místico, a linguagem se desenfreia: ela pula, ela salta, ela canta. Ela fala em prosa e poesia; ela dá descrições objetivas da experiência e voa nas asas do êxtase; ela guia iniciantes com um gentil cuidado e corta a ilusão com argumentos de lâmina afiada. (...) Além disso, certos místicos têm tido suas experiências místicas na e através da linguagem. Com isso eu quero dizer não somente que a linguagem evoca e molda a experiência, mas que as formas linguísticas participam na revelação do domínio transcendente. Nesse sentido, pode existir uma mística da linguagem.

No entender de Pinto (2007), a mística não supõe a ausência de lingua- gem, mas a sua origem, criando novas formas de expressão.

Kroll e Bachrach (2005) referem, ainda dentro deste âmbito da lingua- gem mística, a ideia de que as metáforas, ao serviço da linguagem, baseiam-se essencialmente nas nossas experiências do corpo, que são, no entender destes autores, opostas ao que se tenta exprimir sobre as experiências transcenden- tais. O papel da linguagem, assim como da subjetividade, mais não são do que limites para a nossa capacidade de compreender as descrições de outro sujeito sobre as suas experiências místicas. Estes autores ressaltam, neste ponto, que não são apenas as experiências místicas que são inefáveis mas todos os aspetos da experiência de consciência, incluindo os estados alterados da consciência. Parece, assim, que somos confinados ou limitados por dois processos proble- máticos, a saber: a linguagem e a subjetividade. A questão permanece ao longo dos tempos por todos os saberes: como conhecer as outras mentes, e a nossa própria mente? A subjetividade e a privacidade da minha consciência parecem assim interferir com a empatia e a compreensão dos outros.

No entanto, a linguagem limita a nossa capacidade de transmitir e receber um sentido rico daquilo que experimentamos e como interpretamos o vivido.

Não parecendo, assim, tão linear, Kroll e Bachrach, acrescentam que muitas vezes somos enganados quando tentamos separar experiência, interpretação e linguagem ou simplesmente sobrepor estes três processos. O máximo que a linguagem conseguirá é tentar aproximar aquilo que estamos a tentar dizer. Há um embutimento da linguagem, afirmam Kroll e Bachrach, face às experiências físicas que em tudo se assemelha ao que encontramos no esforço feito, pela exegese, em converter o poema de amor erótico, Cântico dos Cânticos, num texto místico. Uma alternativa encontrada à linguagem metafórica, afirmam, mais não é do que a linguagem apofática já abordada por nós, nesta nossa obra.

Segundo ainda Kroll e Bachrach, os teóricos críticos feministas observa- ram que nos relatos de estados emocionais de êxtase e arrebatamento das mulheres místicas do século XII-XIV, encontra-se um grande destaque, bas- tante sublinhado, da descrição de experiências viscerais. Do mesmo modo, nas narrações dos místicos medievais, abordados por estes autores31

, encontra- se a utilização de termos de processos essencialmente cardíacos.

Um outro aspeto, que se torna obrigatório na ponderação da estética, no contexto da mística, prende-se com a relação intrínseca entre a mística e a arte.

Segundo Azevedo (2000), é ao sufismo que a arte no mundo islâmico deve, de certa forma, a sua origem e o seu florescimento. A sua influência na arte islâmica perpassa a poesia, a caligrafia, o artesanato, a música, etc., e não é por acaso que o quarto Califa, Ali, é o protetor de todas as cooperações de ofício. Deus ama a beleza e a beleza é um dos Nomes de Deus, logo a arte e a vida só podem estar unidas.

Já Miquel (1982) sublinha que os escritos místicos muçulmanos são de um lirismo espantoso, pois exaltam frequentemente o encanto do vinho, dos perfumes inebriantes como o do néctar e da mulher. É nesta panóplia de ima- gens (muito próxima ao livro veterotestamentário do Cântico dos Cânticos) que se exprime o gozo da presença do Divino. E poderá ir-se mais longe, subli- nhando Chebel (1993, p. 302): “O gosto do árabe, desejo e estrutura, abstra- ção e sensualidade, são uma componente da sua personalidade”.

O sufismo, importa salientar, recordando a leitura de Williams (1980), não só se impôs no mundo árabe, como ofereceu a esta cultura uma visão de beleza e consolação, num período marcadamente cruel e de alguma anarquia. Recorde-se que o mundo islâmico oriental sofreu, no século XIII, as invasões

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Kroll e Bachrach (2001) debruçaram-se sobre três místicos da Idade Média: Beatriz de Nazareth (1200-1268), Beatriz de Ornacieux (c. 1240-1306/1309) e Henry Suso (c. 1300-1366).

mongóis e a carreira de Timur-Leng (Tamerlão), no século XIV. Williams refere, ainda, que alguns dos maiores poetas persas escreveram na época dos Mongóis.

Apesar de o Corão não conter qualquer interdição ligada à imagem e à reprodução pictórica ou escultórica da obra divina, o Profeta Maomé terá amaldiçoado as casas onde houvesse uma imagem dizendo delas que seriam irremediavelmente fechadas para os anjos. De igual modo, uma outra tradição atribui a Abou Zor’a, o Profeta, esta imprecação lançada, ao ver um pintor em atividade no cimo de uma das casas de Medina: “E quem é maior criminoso do que aqueles que têm a ousadia de criar seres parecidos aos seres criados?” Os pintores, portanto, deveriam ser castigados pelo incomensurável orgulho que demonstram ao querer imitar ou recriar a obra divina, prerrogativa de Alá, já que o homem é criatura e não Criador (Chebel, 1993).

Mas como entender esta rejeição liminar da obra criada por via da pin- tura e da escultura sem que tal rejeição encontre igual eco na reprodução da obra criada sob a palavra escrita? Provavelmente, a representação simbólica em torno da caligrafia – expoente estético do imaginário muçulmano e, con- cretamente, místico – aproxima-nos de uma possível resposta.

Nenhuma caligrafia pode existir sem tinta como, de igual modo, nenhuma caligrafia pode existir sem a pena, que aos olhos dos místicos islâmicos é o objeto que Deus criou em primeiro lugar, a fim de transcrever os atos dos homens (Chebel, 1993). O autor diz ainda que Al-Gazzali vai mesmo mais longe, afirmando que o cálamo seria uma das “entidades pré-existentes, o ins- trumento dos decretos Divinos e da revelação” (p. 272). E Chebel conclui:

O simbolismo do cálamo vem reforçar o da escrita mesmo se não se soubesse distinguir entre a escrita e a mão que escreve, entre a elevação formal da cali- grafia e a intenção do escriba (p. 273). O que é a caligrafia senão a superação metonímica da escrita? E não é o calígrafo o criador consciente-inconsciente de uma teia visual que transcende a estrutura formal dos termos organizando o poema? (…) E a beleza? Não é ela sublimação … na medida em que ela intro- duz uma outra forma de observar o mundo e de continuar a acreditar nos seus mistérios escondidos? (p. 304).

Não é de todo estranho vermos no mundo místico a linguagem enten- dida na forma de como e pelo qual o mundo é criado. Esta função advém-lhe do facto de anteceder a própria criação, porquanto a linguagem é protótipo do criado e essência do nome das coisas.

Se retomarmos o que referimos, por exemplo sobre o Imaginal de Ibn Arabi, percebemos melhor esta força de essência que a linguagem tem, e de forma muito peculiar, na mística islâmica. É que a palavra, no domínio do

Imaginal, “presentará” e não “representará”, uma vez que é o próprio corpo da coisa criada, o seu nome, onde o som e o sentido inteligível se fundem. Como Cromberg (2003, p. 11) refere, ainda na linha do Imaginal de Ibn Arabi, “os traços distintivos da palavra são suas qualidades, mais que gráficas, foné- ticas. O som é seu substrato sensível, e sua ‘imagem’, é sonora. Cada palavra tem o som daquilo que expressa. Na verdade, a maior parte das revelações imaginais das tradições islâmica e judaica é acústica e não visual”. O próprio Corão foi ditado a Maomé.

Já mencionámos a não representação de Deus por imagens no islamismo, o que resultou no dinamismo e importância das artes caligráficas e literárias. Deus é assim representado por imagens poéticas.

Cromberg (2003) faz notar a diferença que é possível encontrarmos nos poetas islâmicos não místicos e nos poetas místicos. Nos primeiros, encontramos a utilização das alegorias, sendo neste caso, uma criação humana: no segundo, nos místicos, encontramos o recurso aos símbolos, sendo, neste caso, uma cria- ção divina, uma vez que o místico escreve a partir da sua experiência mística, logo a partir de uma revelação que ele próprio procura transmitir:

Lê: E o teu Senhor é o Mais Bondoso que ensinou pela pena,

ensinou ao homem aquilo que ele não sabia. (Corão, XCVI, 3-5)

Os místicos têm assim esta ciência do símbolo, da metáfora, porque ensinada por Deus. Contudo, ela é igualmente a arte de comunicar toda uma experiência. Esta arte terá de ser entendida sempre na linha de quem a gerou. Sendo uma criação a partir da experiência espiritual do místico, ela expressa uma revelação, não sendo, portanto, uma criação ex nihilo; logo, há um emis- sor, Deus. E atendendo ao facto de que Deus não cria do nada, tudo o que existe já existia em Deus em forma de potência.

Esta arte de comunicar é já o dar forma, é o transformar a potência em ato da obra de Deus. A capacidade de contemplação, por parte do homem, pode ser entendida como o exercício da sua criatividade; há, então um rece- tor, o místico, que, por sua vez será também emissor da revelação realizada na experiência. E Cromberg (2003, pp. 13-14) posiciona-nos na perspetiva islâ- mica que nos ajudará a compreender melhor toda esta forma da palavra e da linguagem:

O mundo está contido no Corão. Em contrapartida, o universo é referido dentro do Islão como o “grande Corão”. Tudo isso indica a identidade entre mundo e texto sagrado. Este já é o mundo, uma vez que conteria todas as possibilidades

do real; é tido como o protótipo ou a síntese da Criação. Se o texto sagrado já é o mundo e o contém, o mundo, por sua vez, é texto sagrado. Cada coisa é uma palavra, que possui toda uma escala de significância e que é única e exclusiva- mente símbolo, sem que isso diminua em nada sua concretude, individualidade e realidade. (…) Sendo assim, o Texto – o texto sagrado e o mundo enquanto texto sagrado – estará comunicando, em última instância: Presença, Presença, Presença...

O Texto e o modo de escrevê-Lo. Por aqui é fácil compreendermos como a caligrafia árabe emerge como identidade própria do ser árabe. A caligrafia árabe, simultaneamente decorativa e arquitectural, transporta-nos para um espaço o mais longínquo possível da representação visual, “espaço mental onde o conceito se substitui à imagem” (Sami Ali, 2006, p. 10). O poema de Al-Hallaj contém, de forma exemplificativa, a nosso ver, esta realidade:

Todo o coração é uma coisa que contém os nomes de Ti Nem a luz, nem a treva podem jamais compreendê-lo A luz do Teu rosto é mistério quando eu O vejo Isto é o dom, a graça e a generosidade

Bem-Amado, aceita o que eu digo já que Tu o sabes Nem a Tábua nem o Cálamo o sabem verdadeiramente. (Al-Hallaj, in Poèmes mystiques, 43, p. 79)

Figura 3

Caligrafia do poema 43, de Al-Hallaj (por Sami-Ali).

É assim que, quando o poeta escreve, quando o sufi se torna calígrafo, “a poesia toca no sublime, que é a união do cume e do abismo, e que não cessa de ser uma inquietude de todo o ser: uma interrogação sem fim do enigma da

presença e, em simultâneo, a apropriação do que diante de si está, da ordem do sagrado” (Sami Ali, 2006, p. 11). Esta via da imanência à transcendência é traduzida, em movimento contínuo, pela forma e pela palavra, retrato da expe- riência “do impensável e do indizível, que, no sufismo, fazem parte integrante duma relação amorosa recíproca que é, ao mesmo tempo, transfiguração de si e do mundo” (Sami Ali, 2006, ibidem). Parece não haver mais lugar para uma separação entre o artista que caligrafa e a visão da realidade caligrafada; como que coincidindo no mesmo traço, deixado pelo cálamo, “forma e conteúdo, epifania do indizível que se diz sem se dizer” (Sami Ali, 2006, ibidem), a um tempo, artista e poeta.

A perspetiva de Bergson (1970) poderá ajudar-nos, a nosso ver, a realizar uma leitura mais angular desta expressividade do discurso místico. O filósofo entende que os processos de arte são essencialmente meios pelos quais o artista exprime o belo, e a essência do belo permanece, diz-nos. O objetivo da arte, esclarece,

É adormecer as potências ativas, ou melhor, resistentes, da nossa personalidade, e levar-nos assim a um estado de docilidade perfeita em que realizamos a ideia que nos é sugerida, em que simpatizamos com o sentimento expresso. Nos pro- cessos de arte, encontramos sob uma forma atenuada, purificados e de alguma maneira espiritualizados, os processos pelos quais normalmente se obtém o estado de hipnose (p.19).

Tal como o poeta, de que nos fala Bergson (1970), o místico é aquele para quem os sentimentos se vão desdobrando em sucessivas imagens, estas imagens em palavras, numa docilidade de ritmo, única capaz de as traduzir. Perante as imagens que surgem no poema místico, o leitor não pode deixar de experimentar o sentimento que naturalmente é o seu equivalente emocional; mas tal não poderia ser vivido tão fortemente sem os movimentos regulares do ritmo, através dos quais a nossa alma “embalada e adormecida, se esquece, como um sonho, para pensar e ver” (p. 20) com o místico.

No místico, a arte ganha, adquire, o destino natural que Bergson denun- cia. Mais do que expressar, a arte visa imprimir sentimentos: sugere-os pres- cindindo da imitação da natureza, sobretudo quando se defronta com meios mais eficazes. Tal como o filósofo sintetiza: “a natureza procede por sugestão como a arte, mas não dispõe do ritmo” (p. 20).

No místico, o sentimento do belo é muitas vezes uma constante, como se fizesse parte do contemplativo. Só aquele que é capaz de contemplar, só aquele que é capaz de ver devagar, é capaz de “ver” o belo; e o místico é, natural- mente, um mestre do contemplar, do olhar calmo, do perscrutar. Por isso, o

belo surge aos olhos do místico em imensidão, o que para os olhos vazios de quem não contempla surgirá despercebido, invisível.

No entanto, o sentimento do belo não é um sentimento especial, sublinha Bergson (1970). E o filósofo atesta: “todo o sentimento por nós experimentado se revestirá de um carácter estético, contando que tenha sido sugerido, e não causado” (p.20).

Neste sentido, a emoção parece admitir graus de intensidade assim como graus de elevação:

Ora é o sentimento sugerido que interrompe a custo o tecido cerrado dos factos psicológicos que compõem a nossa história; ora deles afasta a nossa atenção sem que, no entanto, nos leve a perdê-los de vista; ora, por fim, se substitui a eles, nos absorve, e se apodera de toda a nossa alma. Há, portanto, fases distintas na pro- gressão de um sentimento estético, como no estado de hipnose. (…) Os senti- mentos e os pensamentos que o artista nos sugere exprimem e resumem uma parte muito menos considerável da sua história. (…) Mas a maioria das emoções são enriquecidas com milhares de sensações, sentimentos ou ideias que as atraves- sam; cada uma delas é, pois, um estado único no seu género, indefinível, e parece que seria necessário reviver a vida de quem o experimentou para dele se apoderar na sua complexa originalidade. Contudo, o artista visa introduzir-nos nesta emo- ção tão rica, tão pessoal, tão nova, e levar-nos a experimentar o que não poderia fazer-nos compreender. Fixará, pois, entre as manifestações exteriores do seu sen- timento aquelas que o nosso corpo imitará maquinalmente, ainda que superfi- cialmente descobrindo-as de modo a colocar-nos de chofre no indefinível estado psicológico que as provocou. Cairá assim a barreira que o tempo e o espaço inter- punham entre a sua consciência e a nossa (Bergson, 1988, pp. 20-21).

Podemos então afirmar, em sintonia com Focillon (1988, pp. 11-12), que a obra de arte “está mergulhada na mobilidade do tempo e pertence à eterni- dade. Sendo particular, local e individual, é também um testemunho universal

. Schwartz (2005), referindo-se a Marguerite Porete, nomeadamente ao seu escrito Miroir, afirma que esta mística sustenta a superioridade do amor, expressando-a por vezes numa linguagem erótica, resultante da influência das convenções de amor cortês da literatura do fim da Idade Média. Em relação à linguagem utilizada pelos místicos islâmicos, a autora afirma que a poesia amorosa serve de vínculo para a expressão da União Mística, adaptando e transformando o tema do amor, assim como todos os motivos, convenções e imagens da poesia amorosa clássica.

A poesia erótica e os temas eróticos profanos são um instrumento para analisar e exprimir a natureza do amor espiritual. Eles espelham, analoga- mente, a impotência do sujeito para apreender a amada, para abraçá-la. Esta forma fenomenológica de expressividade amorosa abarca a melancolia, a ser-

vidão amorosa, a loucura amorosa, o entorpecimento, a consternação, o ardor, o langor, a insónia, o abatimento, enfim, toda a variedade de estados que encontramos tanto no amor profano como no amor místico (Schwartz, 2005). Exemplos claros desta realidade são os textos líricos de Ibn Arabi, como Tar- jumn al-ashwq, o D wn al-ma’arif, e o capítulo 178 do Futht (Sobre o conhecimento da estação do amor e seus segredos). Toda esta expressividade está igualmente patente no dhikr, na lembrança constante do nome de Deus:

… Encontre-nos na fonte de Zámzam, Depois da circum-ambulação,

Perto da tenda central, Próximo aos cantos rodados. Lá, um homem consumido Pelo transe do amor

É curado pelo aroma das mulheres Que lhe suscitaram o anseio. Quando inquietas

Elas soltam os cabelos E os deixam cair

Envolvendo-se em vestes de escuridão.

(Ibn Arabi, The Tarjumn Al Ashwq, in Stations of Desire, Sells, 2000, citado por Schwartz, 2005, p. 128).

E é, portanto, uma cultura medieval islâmica que desenha, de forma notável, a conciliação entre a aniquilação do sufi na União Mística e a do amante na intensidade do seu amor. Ela é expressa, quer na tradição poética quer na teologia sufi, em que o amor, segundo Schwartz (2005, p. 132), “é erótico, menos no sentido popular sexual do que na fenomenologia psicoló- gica – a perda da razão, da identidade e do sentido do eu.”

Atendamos ao que Pires (2007, p. 142) afirma:

O erotismo é inerente, em maior ou menor grau, a qualquer obra de arte; mesmo que não se faça presente na forma ou tema, podemos reconhecer a sua manifestação no ato criativo do artista. O componente libidinal da expressão criativa envolve as pulsões pré-genitais e aspetos arcaicos da sexualidade nos quais se misturam ero- tismo e agressão, amor e ódio. Certa regressão psíquica temporária é também um requisito primordial para a criatividade do artista, assim como para a experiência mística. (…) Os excessos místicos e eróticos se relacionam intimamente.

A escultura Êxtase de Santa Teresa, de Gian Lorenzo Bernini32

é um expoente da arte, que espelha de forma singular, na pedra cinzelada, o erotismo da expe-

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Gian Lorenzo Bernini, artista barroco, nasceu em Nápoles a 7 de dezembro de 1598 e faleceu em Roma a 28 de novembro de 1680. Reconhecido escultor e arquitecto, pintor

riência mística. Tal como muito outros, é ainda Pires que confessa o profundo impacto emocional sentido perante a escultura, pela sensualidade, prazer e gozo que dela irradiam.

Figura 4

Êxtase de Santa Teresa, de Bernini.

Tenhamos presente que este período Barroco decorre entre o século XVI e XVII. Tratando-se de um estilo da Contra-Reforma, florescendo em países católicos como Espanha, Portugal, França, Itália, tendo também expressão em países da América Latina e também do centro da Europa, ele vai estar bem patente nas diversas artes como a arquitetura, escultura, pintura, literatura. Recordemos apenas, aqui, que muitos foram os místicos que lidaram bem de perto com esta arte barroca (no nosso estudo estão incluídos os casos de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz).