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Um acontecimento – a União Mística

e gozo do Absoluto Presente

9. Lembrança da morte: contemplar a morte poderá ser um meio possante

3.7. Um acontecimento – a União Mística

Toda a unidade assenta numa procura radical. A união, assim sendo, acarreta toda a intensidade do esforço, do gozo e do sofrimento desta procura, do des- nudamento, da concentração total da libertação do que dispersa, que temos vindo a abordar nos pontos anteriores desta obra. E, neste sentido, a expe- riência imediata de Deus, que define a mística, não pode ser lida como um

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O místico Ibn Arabi ficou conhecido por o Grande Mestre, na designação árabe de Al-Shaykh al-Akbar.

dado imediato (Boff, 1983). Esta experiência de unidade é complexa em si mesma, pois a unidade mística é a unidade da multiplicidade, com ela, nela e por ela, numa surpreendente experiência de superação da distância, dos níveis diferenciais, sejam eles de perfeição, de poder, de condição física, etc., entre o Divino e o humano.

O espírito penetra de tal forma no Uno que se unifica com o Divino, no esquecimento místico de todos os seres e de si mesmo; persiste, no entanto, a dualidade sendo que um não é o outro. Porém, esta dualidade é transponível numa unidade inefável – há uma unidade dialética, como refere Boff. No entender do autor, enquanto nos perdemos em discussões várias sobre o bem e o mal, estamos longe de experimentar a unidade. Falar da unidade implica ter presente a diferença, uma vez que experimentar a unidade pressupõe ter religado tudo, tanto o mal como o inferno, como o nada a Deus.

A mística, como experiência imediata de Deus, dispensa, assim, a media- ção e as palavras; mesmo as usadas, sofrem de uma fragilidade inevitável, e conduzem, por vezes, a condenações humanas, que refletem, apesar dos esforços do místico, o aquém e a injustiça da narração fidedigna da experiên- cia da união. Mestre Eckhart, Al-Hallaj, Santa Teresa de Ávila, são apenas alguns exemplos.

Mas, apesar de todo o condicionamento humano, a união ganha, na expe- riência mística, a dimensão transformativa e matrimonial, num gozo pleno da presença do Absoluto Presente:

O desposório espiritual é diferente, pois muitas vezes se apartam, e a união tam- bém o é; porque, embora união seja juntarem-se duas coisas numa só, enfim, podem-se apartar e ficar cada coisa de per si. (…) Nesta outra mercê do senhor (Santa Teresa refere-se ao matrimónio espiritual), não; porque sempre fica a alma com o seu Deus naquele centro. Digamos que a união é como se duas velas de cera se juntassem em tal extremo, que toda a luz fosse uma, ou que o pavio, a luz e a cera fosse tudo um; mas depois pode-se apartar muito bem uma vela da outra, e ficam duas velas, e o pavio da cera.

(Santa Teresa de Ávila, 7M 4)

A transformação em nada se assemelha com uma visão panteísta, mas antes a uma fusão de amor, produzindo efeitos definitivos na alma, como ainda analisaremos (cf. adiante, Uma consequência – a reformulação do eu pelo Outro).

Também a união não é um livre arbítrio da vontade humana. Ela nasce no Uno e a Ele retorna:

… a igualdade e o amor ardente atraem às alturas, conduzindo e introduzindo a alma ao Primeiro Princípio do Uno… a igualdade nascida do Uno atrai a alma ao mais íntimo de Deus, assim como ele é o Uno em sua oculta união, assim se

entende por Uno. (…) E como a igualdade flui do Uno a atrai e alicia pela força e na força do Uno, por isso não há descanso nem satisfação para o que atrai, nem para o que é atraído, até que se unam numa coisa só. (…) (Falar) de cora- ção a coração (ser) um no uno, eis o que Deus ama.

(Mestre Eckhart, DV 2, in Mestre Eckhart. A mística do Ser e do Não Ter, de Leo- nardo Boff, 1983, pp. 66-67. 76)

A União é, assim o acontecimento do Um/Uno no um, ou seja, na singu- laridade de cada ser humano, o que define, a priori, a especificidade da subje- tividade da experiência mística. Isto porque, diz-nos Mestre Eckhart, “Deus está no mais íntimo de cada coisa, e só no mais íntimo, e somente ele é Um”. E o Mestre explica:

Primeiro, porque tudo o que é, ama e busca a semelhança de Deus. (…)

Segundo, (porque) no um jamais há dor ou pena ou enfado, e nem sequer há nele possibilidade de passibilidade ou mortalidade.

Terceiro, porque no um, enquanto é um, estão todas as coisas. Pois toda a mul- tidão é una e um, no Um e pelo Um. (…)

Quarto, porque não amaríamos nem o poder nem a sabedoria nem a bondade como tal, nem mesmo o ser, se não se unissem connosco e nós com eles.

Quinto, porque o que ama verdadeiramente só pode amar um só. (…)

Sexto, porque ele quer unir-se ao amado. O que não lhe é possível se este não for um. (…)

Sétimo, porque o um é distinto de todas as coisas… nele…estão todas as coisas e a plenitude do ser.

Oitavo: repara bem que o um, em sentido próprio, diz respeito ao todo e ao perfeito… nada lhe falta.

Nono: nota que o um, por essência, se refere ao próprio ser ou à essência…à essência una.

Décimo: nota que o um é mais alto, anterior e mais simples do que o bom, e está mais perto do ser e de Deus… é um só ser com o próprio ser.

Undécimo: Deus é profusamente rico por isso é que é um (p. 162) (…) Nota que tudo o que segue ao uno ou à unidade, a saber, a igualdade, a semelhança, a imagem, a relação e outras coisas tais, estão, todas elas, propriamente só em Deus. (…) Pois Deus uno é intelecto, e o intelecto é Deus uno. Por isso Deus nunca e nenhures é Deus, salvo no intelecto. Todo o ser além do intelecto, fora do intelecto, é criatura, é criável, é algo outro do que é Deus, não é Deus. Pois em Deus nada há de outro.

(Mestre Eckhart, Sermão XXIX, Deus é um, in Mestre Eckhart. A mística do Ser e do Não Ter, de Leonardo Boff, 1983, pp. 161-162).

Este encontro dos “uns” só é possível porque há um “Um”, que é o “negar do negar”, na expressão do Mestre:

O Um... é um negar do negar e um denegar do denegar. Um significa aquilo a que nada se acrescentou. (…) O Um é o negar do negar. Todas as criaturas tra- zem em si uma negação: uma nega ser a outra. Um anjo diz que não é um outro

(anjo). Deus, porém, tem um negar do negar: é Um e nega todo o outro, pois nada é fora de Deus.

(Mestre Eckhart, Sermão XXI, Deus é Um, Ele é um negar do negar, in Mestre Eckhart. A mística do Ser e do Não Ter, de Leonardo Boff, 1983, p. 167)

De facto, o místico parte desta certeza de Deus Um, Uno. Por isso, o Absolutamente Outro como Uno é o único capaz de abraçar, de penetrar o outro um, criatura finita. Se assim não fosse, a união não seria união, mas um relativo encontro de dois seres finitos, incapazes de experimentarem a União, porque seres iguais na corporeidade e finitude. Mesmo na experiência humana do matrimónio está patente a frontalidade desta corporeidade-corporeidade, em que a capacidade de acolher o outro tem os limites máximos do seu cor- respondente humano.

Fica, assim, justificada a insistência dos místicos de que a essência da União Mística se baseia na necessidade que Deus nasça na alma, porque só assim o homem em Deus é Deus, segundo Eckhart. As ideias estão em Deus, logo, estas não podem diferir do próprio Deus. O cristão perfeito, o homem justo e semelhante a Deus, é ele mesmo filho de Deus (Graef, 1970). Para o místico Eckhart, a alma possui uma potência, a centelha da alma, sendo a esfera – imagem da natureza divina – onde nasce o Filho. É neste “lugar” onde Deus engendra o seu Filho do mesmo modo como engendra o Filho na eternidade. A União Mística aparece em Eckhart como uma total identificação entre criatura e Criador, entre centelha e Trindade. O entrar de Deus, no mais profundo da alma, exige a radicalidade do despojamento de todas as proprie- dades, e só após esta purificação Deus poderá entrar como Uno (Graef, 1970). A união sintetiza-se, no Mestre Eckhart, na identificação entre a geração eterna do Filho e o nascimento (místico) de Cristo na alma (proposição condenada na Bula de João XXII).

A união dita, assim, toda a vida do místico, fim último desta experiência, princípio de tudo, existência do presente.

Só há amado se houver união. A união não só define o amor como a existência do próprio Amado:

O amante, por essência, deseja a união após ter procurado a existência efetiva do objeto do seu amor. E a existência efetiva do amado é idêntica à união com ele. (…) O momento do êxtase é o da união e o do amor.

(Ibn Arabi, in Traité de l’amour, p. 96) Eu sou aquele que eu amo

E aquele que eu amo, sou eu!

Ele não sabe por quem sente tão numerosos desejos, do mesmo modo como não sabe por quem experimenta ou sofre uma emoção de êxtase. O seu Bem-Amado não lhe aparece distintamente. Mesmo extrema proximidade d’Ele é um véu de tal modo que apenas encontra em si as sequelas do amor.

(Ibn Arabi, in Traité de l’amour, p. 260)

Entre dois estados, a união é vivida sem que se saiba qual dos dois é o mais verdadeiro, mesmo tratando-se de realidades antinómicas:

Assim fala ele sem compreender o que pronuncia (de modo contraditório): “O meu coração está no meu Bem-Amado!”

“O meu coração está perdido. Onde o encontrarei?” “Não vejo que o meu corpo seja um lugar digno d’Ele!” “O meu Bem-Amado está no meu coração!”

“O Amado está em Mim e, no entanto, não está!” (Ibn Arabi, in Traité de l’amour, p. 261)

Por sua vez, Ibn Arabi fala-nos do grau mais alto da união como uma recíproca penetração de Alá com o sufi. De um lado, surge a natureza divina (laht) que se reveste da humanidade (nast), torna-se presente fazendo-se conteúdo da humanidade que, por sua vez, se faz continente daquela. De outro, emerge o homem, que se sente, nesta iniciativa divina, totalmente compreen- dido e absorvido na divina realidade (Pareja, 1975).

A União Mística designa, assim, concentradamente, todo o sentido e reali- dade da vida espiritual.

Na Contemplação Infusa encontramos uma comunicação direta, sem intermediários em que a alma pode pedir tudo ao Absoluto. Aqui, afirma S. João da Cruz, a alma quer e pode muito mais; mais do que o conhecimento e a comunicação de Deus pelas obras. Quer e pode ver o rosto de Deus, tem acesso direto à comunicação da essência da Divindade. Há, portanto, toque de substâncias puras entre a alma e a Divindade. Há um doce abraço que ocorre na íntima substância da alma, onde Ele mora muito em segredo (CB 19, 4; Ch 4, 14). Há uma comunicação particular, em que às vezes “aperta” mais que outras. E as almas sentem-se, seguras, pois podem as almas gozá-Lo sempre, afirma-o Santa Teresa (6M 7, 1).

São expressões como “notícia amorosa”, “toque de substâncias desnu- das” e “sentir da substância na alma” que definem a experiência mística da união com o Divino, nas expressões de S. João da Cruz. O toque unitivo, por exemplo, permite a comunicação em conjunto do amor e o conhecimento infuso, como nos diz S. João da Cruz (2N 12, 7). Por isso mesmo, os seus escritos são entendidos como uma verdadeira antropologia. Neles encontra- mos o sublinhar joanino de que a união é possível nesta vida (Bord, 1971).

Para os místicos, esta intervenção atinge o mais fundo da alma humana, o que lhe dá o nome de toque substancial. É um toque que atinge o fio ou ponta da alma, as suas potências, alterando, por conseguinte, toda a atividade do místico (Licciardo, 1965; Kim, 2006), a sua inteligência, a sua vontade, a sua força, etc., permitindo a contemplação. Mas, a contemplação varia na sua intensidade. Augustine (2002) sugere que a União Mística não é uma fusão, mas antes um amor diversificado; não destrói, faz comungar.

Concretamente, na mística cristã, a união reúne as três características da divinização do homem pela participação de Deus; a dimensão da transforma- ção do homem em homem novo; a filiação do homem no Filho Cristo e a habi- tação da Santíssima Trindade no homem (Kim, 2006).

Na mística islâmica, por sua vez, a ênfase na unidade “relembra o ideal alcorâmico de tawhid: reunindo o seu dissipado, o místico experimenta a experiência divina em integração pessoal” (Armstrong, 1996, p. 258).

No entanto, nem sempre encontramos uma compreensão uniforme da união com a divindade, por parte da mística islâmica. Desde o século IX, diz- -nos Pareja (1975), o modo de conceber esta união tem vindo a ser orlada de três modos. No entender dos ortodoxos, na união – designada por estes mís- ticos como ittial, ou wial –, o sufi perde a consciência de si mesmo, che- gando à ilusão de fazer-se um com Alá; outros sufis, no entanto, entendem a união como uma espécie de ittih ad ou seja fazer-se um4

. Esta linha de pensa- mento resulta do princípio defendido por estes sufis de que a realidade é uma e a multiplicação aparente mais não é do que uma modalidade da unidade – princípio da wah dat al-wud; o terceiro modo de conceber a União, prende- se com a noção de União Mística como h ull, ou seja, como ato de descender ou habitar em algum lugar. Os defensores desta orientação entendem que o espírito de Alá descende e mora na alma purificada, logo a essência de Alá é o amor. Para estes sufis, Alá ama-Se primeiramente na Sua unidade e de ime- diato extrai do nada uma imagem (Adão) na qual e pela qual Se manifesta. Nesta União Mística, a divindade funde-se, sem se confundir com a humani- dade. Esta leitura de união não obteve o maior dos consensos; lida num sen- tido de infusão ou encarnação corria o risco de uma interpretação monista.

Toda a consequência da união é o conhecimento intuitivo de Alá, a con- templação da essência divina, a imersão em Alá.

No século XI, com a influência da filosofia helenista, a União Mística recebe contornos novos, resumidos em três leituras diferentes, ainda segundo

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No entanto, ittih d pode ter dois sentidos: a) a união mais na linha de ittil; b) a união mais na linha de união substancial com Alá, compreensão mais panteísta.

Pareja (1975). Alguns sufis falam da união com a Divindade como a repre- sentação de representações, por obra do intelecto agente, por intervenção de uma emanação divina sobre a alma passiva; no entender de outro grupo de sufis, a união é uma substanciação da alma, qual centelha divina, que adquiria nova vida sob as inspirações do intelecto agente; uma terceira leitura da união Mística ensinava que a alma tem como limite Alá e, assim que alcance este término, adquire a consciência de uma existência em que não há outro número ou outra via de diferenciação.

Contudo, podemos afirmar que toda a mística islâmica faz transparecer a coincidência entre o Nome Divino e o coração humano. Como o interior do homem abriga algo de “Divino” – a centelha divina em Eckhart – o encontro é, metafisicamente, um encontro de Deus com Deus mesmo, através do homem (Azevedo, 2000).

Schwartz (2005) refere que, no diálogo sufi entre o Divino e o humano, a União Mística é “rodeada por extremos de tensão psicológica e semântica, havendo oscilações entre estados de paz e êxtase e estados de terror e dissolu- ção. A oscilação está relacionada ao paradoxo de que, no momento que ante- cede a união, o mais próximo é o mais distante” (pp. 129-130).

Há uma vivência do nada, como experiência abissal, descrita como união ou aniquilação mística. Há uma experiência de travessia de limiar de união que embute o místico de uma consciência diferente capaz de sustentar os para- doxos Divino-humano, infinito-finito, um-muitos, assim como uma liberdade linguística e ontológica distinta (Schwartz, 2005).

Para o místico islâmico, a União Mística é uma unidade de ser, de exis- tência:

O Teu espírito mistura-se com o meu Como o âmbar e o almíscar perfumado Se uma coisa Te toca, ela me toca Já que Tu és eu inseparavelmente

(Al-Hallaj, in Poèmes mystiques, 36, p. 69)

Eu sou Aquele que amo e Aquele que eu amo é eu Nós somos dois espíritos num só corpo

Se tu me vês, tu vê-Lo E se tu O vês, tu vês-nos

(Al-Hallaj, in Poèmes mystiques, 45, p. 83)

Daí a importância da menção dos Nomes de Deus; ela é, para o Islão, a lembrança de Deus, sendo o nome considerado como a manifestação direta do Divino no humano. Por meio de “um processo gradual de transformação, o Nome preenche a mente e a consciência, não deixando espaço para mais nada

que não seja Deus”, Schwartz (2005, p. 42). Deus Uno, estará, assim, no um finito.

Para Ibn Arabi, não é possível ver o próprio Deus. Ele é Quem decide como Se há-de revelar nas criaturas (tal como a visão que teve de Nizam – experiência mística de Ibn Arabi5

).

A união, para este místico, dissolve o eu como realidade particular, no entanto, a consciência individual permanece. Se assim não fosse, no plano da existência do homem na terra, não remanesceria qualquer vínculo da unidade subjetiva do homem. Afirmar que o eu, unido com Alá, deixa de existir, ape- nas quer significar que, nesta união, o homem continua a existir, não se reco- nhecendo no eu da sua existência, mas somente em Alá (Pareja, 1975). O eu aniquilado é experimentado como escuridão e não há consciência deste eu aniquilado perante a visão de Deus; por sua vez testemunhar é ver, ver com a visão e com o coração, o que exige a consciência do que é testemunhado, segundo Ibn Arabi (Schwartz, 2005):

Não há existência fora da Sua existência. (…) Quando o mistério, pois, se se revela a ti, entenderás que tu não és outro que Alá, e que Ele e tu continuaram e continuareis sem quando e sem tempo. Então verás que os teus atos são Seus atos, e os teus atributos Seus atributos, e a tua essência a Sua essência, mesmo que não por Ele tu sejas Ele ou Ele sejas tu, nem no maior nem no menor grau. Tudo é contingente exceto o Seu rosto.

(Ibn Arabi, citado por Pareja, 1975, p. 403)

Para Al-Gazzali, a questão que se coloca é a de se perceber se há identifica- ção ou união. Para este místico, a relação com Deus não vai até à identifica- ção. O místico entra num estado de embriaguez (sukr) e não conseguem lem- brar-se de outro que não seja Deus, nem tampouco se conseguem lembrar dele mesmo, reduzindo, assim, a razão à impotência. Esta embriaguez implica perda de equilíbrio, de domínio de si mesmo e da reação. Ao atenuar-se, esta embriaguez ou arrebatamento, o místico volta a permanecer sob o poder da razão – que mais não é que uma balança proporcionada por Deus sobre a terra – neste momento o místico percebe que antes houve uma aparente identifica-

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Aos 38 anos, Ibn Arabi realiza a sua peregrinação a Meca. Enquanto circumambu- lava a Caaba, o místico narra ter tido uma visão de uma jovem, Nizam, de distinta beleza e conhecimento, que permitiu que fosse claro para o místico que a realidade das teofanias está na fidelidade ao serviço do Amor e não na fidelidade às leis da lógica. Ibn Arabi encontrará, posteriormente, Nizam num grupo de ilustres cidadãos de Meca, descobrindo que se trata de uma filha de ricos comerciantes. Para Ibn Arabi, Nizam simboliza a Sofia, a Sabedoria e a imagem da própria beleza, e não deixará de mais tarde enaltecer esses sentimentos na colecção de poemas Tarjumn al-Ashwq (Schwartz, 2005).

ção (Miquel, 1992). Segundo, ainda, Miquel (Miquel, 1992, p. 50), neste estado o místico “não tem consciência de si próprio, mas ele também não tem cons- ciência de não ter consciência de si próprio, já que se tivesse consciência de não ter consciência de si próprio, ele teria consciência de si. O problema da União com Deus é um mistério de toda a mística”. No entanto, Al-Gazzali defende que todos os homens são essencialmente divinos. Então, “um místico que tivesse reconquistado a sua visão original de Deus teria descoberto a ima- gem divina dentro de si mesmo, tal como ela aparece no dia da Criação” (Armstrong, 1996, p. 260).

Dentro ainda deste ponto, relativo à União Mística, podemos colocar uma questão que tem a ver com a visibilidade ou não da União Mística; que traços característicos podem ser efectivamente visíveis na pessoa do místico?

Partindo da fenomenologia da experiência da mística teresiana, depa- ramo-nos com algumas manifestações exteriores, de cariz psicofisiológico, especificamente a experiência de três espécies de êxtase, segundo resume Pinto (2007). Um, é a do arroubamento suave e delicioso, que produz um despojamento catártico (R 5, 9); outro, é o arrebatamento impetuoso do espí- rito, alheando-o das suas potências e funcionalidades normais, notícia única dada por Deus levando a alma acima de si (ainda, R 5, 9); o outro, ainda, é o voo do espírito, algo que acende na alma, uma chama a faz elevar-se para o alto e que, supostamente, faz operar uma estranha divisão entre corpo e alma (R 5, 11).

Neste êxtase, a visibilidade espelha-se, no entender de Pires (2007, p. 143), como uma experiência interior que:

Arrebata o sujeito e que se expressa dramaticamente através do corpo; não há nada a fazer se não sucumbir ao arrebatamento. É uma ocorrência involuntária ao sujeito que a experimenta e sem a participação da racionalidade; é algo real- mente vivido e experimentado. Estão presentes transformações da perceção bem como alteração do nível de consciência. No êxtase místico, o arrebatamento depende de uma predisposição divina, é vontade do criador e corresponde a uma união com Deus. Os místicos o descrevem como um estado de beatitude que