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Revisitando o instituto das unidades de proteção integral para a permanência de povos e comunidades tradicionais marginalizadas sob uma perspectiva relacional ser humano e natureza.

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO Programa de Pós-Graduação em Direito

Gabrielle Luz Campos

REVISITANDO O INSTITUTO DAS UNIDADES DE PROTEÇÃO INTEGRAL

PARA A PERMANÊNCIA DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS MARGINALIZADAS SOB UMA PERSPECTIVA RELACIONAL SER HUMANO E

NATUREZA

Ouro Preto 2020

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Gabrielle Luz Campos

REVISITANDO O INSTITUTO DAS UNIDADES DE PROTEÇÃO INTEGRAL PARA A PERMANÊNCIA DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

MARGINALIZADAS SOB UMA PERSPECTIVA RELACIONAL SER HUMANO E NATUREZA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Magno de Souza Paiva Coorientadora: Profª. Drª. Karine Gonçalves Carneiro Área de concentração: Novos Direitos, Novos Sujeitos

Ouro Preto 2020

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Campos, Gabrielle Luz .

CamRevisitando o instituto das unidades de proteção integral para a permanência de povos e comunidades tradicionais marginalizadas sob uma perspectiva relacional ser humano e natureza. [manuscrito] / Gabrielle Luz Campos. - 2020.

Cam130 f.

CamOrientador: Prof. Dr. Carlos Magno de Souza Paiva.

CamCoorientadora: Profa. Dra. Karine Gonçalves Carneiro .

CamDissertação (Mestrado Acadêmico). Universidade Federal de Ouro Preto. Departamento de Direito. Programa de Direito.

CamÁrea de Concentração: Novos Direitos, Novos Sujeitos.

Cam1. Conservação histórica. 2. Ambientalismo. 3. Ambientalismo -Biocentrismo. 4. População - Tradição (Filosofia). 5. Conservação da natureza - Mito. I. Carneiro , Karine Gonçalves. II. Paiva, Carlos Magno de Souza. III. Universidade Federal de Ouro Preto. IV. Título.

Bibliotecário(a) Responsável: Maristela Sanches Lima Mesquita - CRB:1716 C198r

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https://sei.ufop.br/sei/controlador.php?acao=documento_imprimir_web&acao_origem=arvore_visualizar&id_documento=58646&infra_sistema=10… 1/1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

REITORIA

ESCOLA DE DIREITO, TURISMO E MUSEOLOGIA DEPARTAMENTO DE DIREITO

FOLHA DE APROVAÇÃO

Gabrielle Luz Campos

REVISITANDO O INSTITUTO DAS UNIDADES DE PROTEÇÃO INTEGRAL PARA A PERMANÊNCIA DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS MARGINALIZADAS SOB UMA PERSPECTIVA RELACIONAL SER HUMANO E NATUREZA

Membros da banca

Prof. Dr. Carlos Magno de Souza Paiva - (UFOP) - Orientador Profa. Dra. Karine Gonçalves Carneiro - (UFOP) - Coorientadora Profa. Dra. Ta ana Ribeiro de Souza - (UFOP)

Profa. Dra. Flávia Tren ni - (USP)

Prof. Dr. Fabiano Melo Gonçalves de Oliveira - (PUC Minas)

Versão final

Aprovado em 06 de Março de 2020 De acordo

Prof. Dr. Carlos Magno de Souza Paiva - Orientador

Documento assinado eletronicamente por Carlos Magno de Souza Paiva, PROFESSOR DE MAGISTERIO SUPERIOR, em 14/04/2020, às 21:53, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

A auten cidade deste documento pode ser conferida no site h p://sei.ufop.br/sei/controlador_externo.php?

acao=documento_conferir&id_orgao_acesso_externo=0 , informando o código verificador 0049524 e o código CRC 7C1C49E4.

Referência: Caso responda este documento, indicar expressamente o Processo nº 23109.003288/2020-13 SEI nº 0049524 R. Diogo de Vasconcelos, 122, - Bairro Pilar Ouro Preto/MG, CEP 35400-000

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Sentir-nos pertencentes a um lugar é uma das maiores bênçãos que podemos receber em nossas vidas. Sentir que estamos no lugar em que deveríamos estar, com as pessoas que deveríamos conhecer e conviver é uma dádiva. Realizar um sonho é sentir que o paraíso veio até nós, mesmo na efemeridade da vida. Estudar e trabalhar com o que amamos e acreditamos é uma sublimidade, vivenciada por poucas pessoas. E felizes são elas.

Diante da vastidão do tempo e da imensidão do espaço, o Mestrado na Universidade Federal de Ouro Preto me possibilitou tudo isso e mais. Por isso, minha gratidão eterna àquelxs que fizeram parte destes anos que comprovaram que o tempo é relativo:

Por ter tido essa oportunidade única, com a turma de 2018 do PPGD da UFOP, pelas alegrias, experiências e pessoas ao longo da jornada, agradeço à Deus.

Pela vida, por serem minhas asas e meus pés, por financiarem meus estudos e meus sonhos, agradeço à minha mãe, Telma e ao meu pai, João Ricardo.

Por compartilhar as alegrias e desafios da vida, agradeço ao meu irmão, Rodolfo. Aos amigos e amigas do Mestrado, Andressa, Arísio, Henrique e Rian, agradeço pela amizade e por fazerem meu coração transbordar de amor. Teria feito o Mestrado mil vezes, só para mil vezes conhecê-lxs.

Por ter sido base, sustentação e leveza, agradeço ao meu orientador, Maguinho. Por ter recebido afeto, cuidado e ideias, à minha coorientadora Karine.

Pela cumplicidade, companheirismos e afago, ao meu co-coorientador, Arísio. Pela presença na ausência física, à Janinha, May e Vi.

Pelos sorrisos e trocas, à Juliana e Jussara (República do Lino).

Pelo acolhimento e disposição, às famílias Canastreiras, Fernando e May. Pela possibilidade de realização do Mestrado, ao meu amigo Guilherme Jaria. Por ser uma das minhas casas, à UFOP.

Por ter tido uma família "Patrimônio Cultural", agradeço axs membrxs do NEPAC, nas pessoas de Adrian, Bruna, José Afonso e Soraia.

Por idealizarem esse Programa e darem o melhor de si, em prol de um mundo mais justo, ao corpo docente e demais servidores do PPGD-UFOP.

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Que a vida física e espiritual dos seres humanos esteja ligada à natureza significa, simplesmente, que a natureza está ligada a ela mesma, porque o ser humano é parte da natureza (MARX, 1988, p. 76).

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RESUMO

A legislação ambiental brasileira recepcionou a perspectiva preservacionista nas Unidades de Proteção Integral, por meio da Lei nº 9.985/2000, o que ocasionou diversos conflitos socioambientais, uma vez que, por não se permitir interferência humana direta, as comunidades que habitavam as áreas transformadas em Unidades de Proteção Integral, pela lei, deveriam ser realocadas de seus territórios, para que a preservação ambiental fosse efetivada. Esta pesquisa buscou a construção de uma via alternativa para permitir a permanência de povos e comunidades tradicionais em territórios que sejam sobrepostos à Unidades de Proteção Integral, por meio de uma releitura desse instituto tradicional, sob o enfoque relacional ser humano-natureza. Analisou-se o desenvolvimento da excepcionalidade do ser humano e a autoproclamação de superioridade em relação aos demais seres, o que culminou na visão da natureza como objeto que pode ser apropriado e forjado, como artifício e commodities. Considerou-se a intervenção do Direito na natureza, para protegê-la, por meio da criação de áreas isoladas, corolário da emersão das ideias de mantê-la selvagem, pura e livre da interferência humana, na medida em que o domínio da natureza pelo ser humano tornava os recursos naturais escassos. Dividiram-se as soluções existentes para a mediação do conflito em cinco grupos: a conciliação por meio da comunicação e educação ambiental; da revisão dos limites das unidades de conservação; da via conciliatória, analisando-se, nesse momento, o Termo de Compromisso; da possibilidade de aliar os direitos culturais e ambientais, mediante a dupla afetação e da criação de zonas histórico-culturais antropológicas; e da remoção das populações tradicionais de seus territórios. Foi realizada revisão bibliográfica, e a metodologia utilizada foi a jurídico-propositiva, de cunho interdisciplinar. Verificou-se que as soluções apresentadas são transitórias e vulneráveis e que o objetivo das Unidades de Proteção Integral é manter as áreas isoladas, sem o uso direto dos recursos naturais pela sociedade hegemônica, ou seja, urbano-industrial, que se apropriou da natureza e a transformou em objeto, não obstante, há determinados grupos, entre os quais se incluiriam os povos e comunidades tradicionais, que se reconhecem na natureza e a preservam, o que viabiliza a inclusão de uma exceção legislativa, possibilidade prevista no §1º, do art. 7º, da Lei nº 9.985/2000, não havendo necessidade de removê-los de seus territórios.

Palavras-chave: Preservacionismo. Socioambientalismo. Biocentrismo. Populações tradicionais. Mito moderno da Natureza Intocada.

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ABSTRACT

Brazilian environmental law received the preservationist perspective in Federal Conservation Units Full Protection group, through Law No. 9,985/2000. It caused several social and environmental conflicts, because direct human interference is forbidden. Thereby the communities that inhabited the areas transformed into Federal Conservation Units Full Protection group by law, had to be relocated from their territories, aiming at environmental preservation could be effected. This research aims to produce an alternative way to allow the permanence of traditional populations in their territories overlaid on the territory destined to be Full Protection group. This will be done through a re-reading of this traditional institute of law, focusing on the relationship between human being-nature. The development of the exceptionality of the human being and the self-proclamation of superiority over other beings were analyzed, which culminated in the perspective of nature as an object that can be appropriated and forged, to fabricate the artifice and being commodities. The intervention of the law in nature was also analyzed. It occurred to protect the nature of human being’s advances through the creation of isolated areas, as a result of the emergence of ideas to maintain it wild, pure and human interferences free, whereas the domination of nature by human being was making natural resources disappear. The current solutions to the conflict were divided into five groups: communication and environmental education; revision of the boundaries of protected areas; the conciliatory way, analyzing, at this moment, the Term of Commitment; the possibility to ally cultural and environmental rights through the double affectation and the creation of anthropological historical-cultural zones; removal of traditional populations from their territories. A literature review was done, and the methodology used was the legal propose and interdisciplinary review. It was ascertained that the current solutions were temporaries and vulnerable and the objective of the Full Protection group is to maintain isolated areas, without direct use of the natural resources of the hegemonic society, that is, urban-industrial society, wich appropriated the nature and transform it into an object. However, there are some groups including traditional populations, which recognize themselves in nature and preserve it. It allows including an exception in the law, possibility provided in Law No. 9,985/2000, 7, §1, thus the determination to remove them from their territories could be nullified.

Keywords: Preservationism. Socio-environmentalism. Deep ecology. Traditional populations.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Área PNSC e comunidades...68

Figura 2 Casa de família canastreira...70 Figura 3 O meio...98

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 Dados das Unidades de Proteção Integral...40

Gráfico 2 Dados das Unidades de Uso Sustentável...41

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Unidade de Proteção Integral com interfaces territoriais...60

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 13

2 CONTEXTUALIZANDO A LEI Nº 9.985, DE 18 DE JULHO DE 2000 ... 20

2.1 A institucionalização da preocupação ambiental pelo Direito ... 20

2.1.1 Os avanços da proteção ambiental no âmbito do Direito Internacional ... 20

2.1.2 Os avanços da proteção ambiental na legislação brasileira ... 23

2.2 As perspectivas de conservação e preservação ambiental e seus reflexos na Lei nº 9.985: conservacionismo, preservacionismo e socioambientalismo ... 26

2.3 Histórico de tramitação da Lei nº 9.985 ... 29

2.4 Definindo os povos e as comunidades tradicionais... 32

2.5 Disposição e organização da Lei nº 9.985: as unidades de conservação da natureza. 37 2.5.1 Unidades de Proteção Integral ... 41

3 DESVELANDO A RAZÃO DE SER DAS UNIDADES DE PROTEÇÃO INTEGRAL ... 44

3.1 A superioridade e excepcionalidade do ser humano: entre o divino e o artifício... 44

3.2 A compaixão pelos outros seres e o giro antropocêntrico voltado aos interesses da espécie humana ... 49

3.3 O domínio da natureza pelo Direito ... 51

3.4 A necessidade da criação dos Parques ... 52

3.5 Os mitos e o imaginário de uma natureza intocada ... 54

4 DIMENSIONANDO OS PROBLEMAS E OS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS DECORRENTES DA SOBREPOSIÇÃO TERRITORIAL entre POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E UNIDADES DE PROTEÇÃO INTEGRAL ... 56

4.1 Problemas ambientais nas unidades de conservação: entre pressões e ameaças ... 56

4.2 Os conflitos socioambientais em unidades de conservação e suas múltiplas faces ... 59

4.3 Regularização fundiária: transformando áreas privadas em áreas públicas destinadas à preservação da natureza ... 62

4.4 Disputa de saberes ... 65

4.5 O caso do Parque Nacional da Serra da Canastra ... 66

5 POSSIBILIDADES PARA A RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS DECORRENTES DA SOBREPOSIÇÃO TERRITORIAL ENTRE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E UNIDADES DE PROTEÇÃO INTEGRAL ... 73

5.1 A mediação dos conflitos socioambientais por meio da comunicação e educação ambiental ... 73

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5.2 Sugestões de resolução por meio da revisão dos limites das Unidades de Proteção

Integral ... 77

5.3 Sugestões de resolução por meio da via conciliatória: possibilidades entre acordo de gestão, plano de uso tradicional e termo de compromisso ... 80

5.3.1 Contornos gerais sobre o termo de compromisso ... 81

5.4 Sugestões conciliatórias entre os interesses de conservação cultural e ambiental: a dupla afetação e a criação de Zonas Histórico-Culturais Antropológicas ... 86

5.5 A determinação legal: remoção das populações tradicionais ... 88

6 A DIALÉTICA DO MEIO E UMA REFLEXÃO LEGISLATIVA: REVISITANDO AS UNIDADES DE PROTEÇÃO INTEGRAL ... 89

6.1 Mudança de perspectiva relacional ser humano-natureza: a deep ecology ... 89

6.2 Entre o monismo da deep ecology e o dualismo da tecnociência ... 91

6.2.1 Críticas ao monismo ... 92

6.2.2 Críticas ao dualismo ... 94

6.3 Uma relação equânime entre ser humano e natureza: a dialética do meio ... 95

6.4 A institucionalização da dialética do meio nas normas ... 100

6.5 Reflexão jurídica: o que se quer preservar? ... 102

6.6 O excludente Direito moderno: a necessidade de se incluir uma exceção no § 1º do art. 7º da Lei do SNUC ... 105

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 111

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1 INTRODUÇÃO

O problema a ser tratado na presente pesquisa diz respeito à necessidade de se revisitar o instituto das Unidades de Proteção Integral para assegurar direitos de permanência no território de povos e comunidades tradicionais marginalizados, a partir da perspectiva relacional ser humano-natureza, desenvolvida por François Ost, denominada a dialética do meio.

Nesse sentido, o objetivo das Unidades de Proteção Integral, segundo o §1º, do art. 7º, da Lei nº 9.985 de 2000, que regulamenta o art. 225, §1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei do SNUC), é preservar a natureza, admitindo-se apenas o uso indireto dos recursos naturais, isto é, o uso que não envolva consumo, coleta, dano ou destruição (art. 2º, IX). Verifica-se, portanto, que essa forma de preservação pressupõe uma dicotomia conflitante entre ser humano e natureza. Isso implica pensar que, para que a natureza seja preservada, ela deve permanecer intocada e isolada, não se admitindo interferência humana direta. As populações humanas que habitam as áreas destinadas à preservação devem ser removidas de suas terras. Há a pressuposição de que não saibam fazer um uso sábio e adequado dos recursos naturais (ARRUDA, 1999, p. 83-84).

O modelo de conservação adotado no Brasil foi importado dos Estados Unidos, no século XX, visando à proteção da wilderness, ou seja, da vida selvagem ameaçada pela ação da civilização industrial (ARRUDA, 1999, p. 83). Foi difundido pela Europa e Canadá, tornando-se um padrão mundial, principalmente após a década de 60 (ARRUDA, 1999, p. 83).

Nos países com grandes áreas desabitadas, tais como os Estados Unidos e Canadá, o modelo se mostrou relativamente adequado, no entanto, quando transportado para países periféricos, destacando as Américas Central e do Sul, mostrou-se problemático, pois, até mesmo as áreas consideradas isoladas ou selvagens, abrigam diversas populações humanas (ARRUDA, 1999, p. 83-84). Na América do Sul, por exemplo, mais de 85% das áreas protegidas são habitadas ou têm seus recursos utilizados pelas populações de seu entorno (BENSUSAN, 2004, p. 70).

Há, portanto, a determinação legal para que povos e comunidades tradicionais que habitam áreas de Unidades de Proteção Integral sejam realocados pelo poder público, sendo indenizados ou compensados pelas benfeitorias existentes no local, quando sua permanência não é permitida (art. 42, caput e §1º, da Lei do SNUC). Ocorre que esse dispositivo legal está em dissonância com a Constituição Federal (arts. 215, 216 e 231 da CF) e com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), internalizada pelo Decreto nº 5.051/04,

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que prevê, no art. 16, a impossibilidade de remoção de povos tribais1 de seus territórios, salvo

exceções pontuais2.

Assim sendo, propõe-se revisitar o instituto tradicional das Unidades de Proteção Integral, procedendo a uma releitura do art. 7º da Lei do SNUC, com o objetivo de sugerir a inclusão de uma exceção legal, possibilidade prevista no §1º, do mesmo artigo. Desse modo, seria assegurado o direito de permanência no território aos povos e comunidades tradicionais, que já o habitavam quando sobreveio a determinação legal e que sofreram e ainda sofrem discriminação histórica. Comunidades que são, por vezes, ocultadas e oprimidas, em razão de interesses econômicas e colonialistas; que foram e são marginalizadas, desconsideradas dos procedimentos de criação e efetivação dos espaços especialmente protegidos.

Para proceder a essa releitura, utiliza-se como marco teórico da pesquisa a teoria da “dialética do meio”, desenvolvida pelo jurista e filósofo do direito François Ost, em sua obra “A natureza à margem da lei a ecologia à prova do direito” (OST, 1995). Essa teoria, de um modo geral, diz respeito a encontrar um meio que, ao mesmo tempo, defina as fronteiras entre o vínculo, isto é, aquilo que aproxima o ser humano da natureza, e o limite, ou seja, o que o distingue da natureza. Em outras palavras, procura definir o que o ser humano faz da natureza e o que ela faz dele (OST, 1995, p. 10).

Segundo o autor, a modernidade ocidental transformou a natureza em ambiente, compreendido como um cenário, no centro do qual reina o homem, que se autoproclama senhor e controlador da mesma. Não há consciência ontológica nesse ambiente, que é tido apenas como um reservatório de recursos3. O projeto de natureza na modernidade baseia-se nas ideias de Galileu, que reescreve o mundo em uma linguagem matemática, libertando o homem dos vínculos naturais, ao reconhecer que não se está no centro do universo, gerando consciência da limitação e da mutabilidade (OST, 1995, p. 37); de Bacon e a tecnociência, segundo a qual se conhece o universo para depois dominá-lo; e de Descartes, mediante o método de categorização e separação (OST, 1995, p. 35-41).

1 Os povos e comunidades tradicionais enquadram-se na definição de povos tribais. Veja-se o item 2.1 do presente

trabalho.

2 Caso, excepcionalmente, seja necessário o translado e o reassentamento desses povos, eles deverão ser

consultados, tendo pleno conhecimento da causa da mudança, que só poderá ser efetivada com seu consentimento. Caso não haja consentimento, o deslocamento e o reassentamento apenas poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados, estabelecidos pela legislação, incluindo enquetes públicas, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente representados. Assim que deixarem de existir as causas que motivaram a mudança desses povos, é assegurado o direito de voltar às suas terras tradicionais (art. 16, Convenção 169 da OIT).

3 Importante realçar que, embora esse seja o projeto de modernidade, nem todos compactuam com ele. Há pessoas

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Assim sendo, estabelece-se uma relação científica e manipuladora com a natureza, que é vista como matéria. Há o distanciamento e a objetificação da mesma. Cria-se o artifício, a máquina e a automatização. Esse dualismo determina a perda do vínculo, já não há relação de igualdade entre a natureza e o ser humano e nada que os ligue (OST, 1995, p. 10-12). Há, por outro lado, a inversão completa dessa perspectiva, denominada deep ecology. Segundo esse entendimento, há a tomada de consciência de que não é a terra que pertence ao homem, mas, sim, o homem que pertence à terra. Há o retorno ao seio materno das origens (Gaia gentrix), a reconciliação do homem com os outros seres. Não há mais privilégios, todos os elementos do mundo vivo estão na mesma linha de evolução, sendo que cada espécie, cada lugar, cada processo possui um valor intrínseco. A natureza passa a ter personalidade no campo jurídico. Esse monismo determina a assimilação, ou seja, não há qualquer hierarquia entre o ser humano e os demais seres (OST, 1995, p. 13-14).

Para François Ost (1995, p. 280), as duas teorias são reducionistas e limitadas. Isso porque na primeira – perspectiva dualista – a natureza é mutilada, reduzida à mecânica. Os processos são simplificados, tidos como lineares, a ligação entre um e outro é ignorada. Já na segunda – perspectiva monista – há uma visão romântica e poética da natureza, que não faz jus à realidade, uma vez que o homem é ser vivo, como os outros, mas é também o único que tem a capacidade da liberdade, de gerar sentidos, sujeito de uma história, autor e destinatário de regras. Em outras palavras, ser humano e natureza possuem um vínculo, contudo, não se reduzem um ao outro.

Nessa ordem de ideias, para François Ost, a única maneira de fazer justiça ao homem e à natureza é afirmar simultaneamente sua semelhança e diferença. É necessário contrapor uma ideia de mediação entre o dualismo e o monismo, de se criar um espaço intermediário, no qual o ser humano, ao mesmo tempo, segue e guia a natureza (OST, 1995, p. 17).

Nesse sentido, François Ost trabalha com a concepção da dialética, compreendida como a ideia dos vínculos e dos limites, a filosofia na qual os elementos tidos como antagônicos apresentam, na realidade, um vínculo. Cada um dos elementos contém uma parte do outro, um não existe por si só (OST, 1995, p. 282). Assim, o homem é também uma parte da natureza e ao mesmo tempo dela se difere e se distancia. Há um jogo permanente de interações. O autor denomina essa relação entre ser humano-natureza como “meio”. O híbrido, quase objeto, quase sujeito (OST, 1995, p. 282).

A teoria da “dialética do meio” se aplica aos objetivos desta dissertação, pois propõe-se construir um raciocínio alternativo ao que sustenta o instituto das Unidades de Proteção Integral, qual seja, a perspectiva dualista, na qual o ser humano e a natureza estão

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completamente dissociados, o que justificou a exploração extrema dos recursos naturais, ocasionando a atual degradação do meio ambiente.

Considerando essa destruição, advinda da separação e do domínio, é necessário, então, criar espaços a serem especialmente protegidos, para garantir acesso aos recursos naturais pelos seres humanos. Há povos, no entanto, que se relacionam com a natureza da maneira dialética proposta. Em outras palavras, há comunidades que se reconhecem na natureza e ao mesmo tempo reconhecem suas diferenças, apropriando-se dos recursos naturais, mas não de forma predatória, como o faz a sociedade hegemônica.

Nesse contexto, a pesquisa desenvolvida é bibliográfica, visando à análise de documentos, obras, periódicos, leis, decretos, portarias administrativas e dissertações que abordam o tema em análise, a fim de se construir uma consistente base teórica. As obras foram glosadas e a coleta de dados se deu mediante fichamento do tipo citações, já que ele possibilita uma maior assimilação do conhecimento e organização, facilitando a execução da pesquisa.

A investigação é jurídico-propositiva (GUSTIN; DIAS, 2014, p. 34), visto que tem por objetivo o questionamento do instituto jurídico das Unidades de Proteção Integral, para, ao fim, propor uma alteração legislativa, por meio da inclusão da exceção legal no §1º, do art. 7º da Lei do SNUC.

A pesquisa conta com a análise de dados primários, haja vista que foram levantadas diretamente pela pesquisadora, sem intermediação de outros autores, informações extraídas de entrevistas, documentos oficiais, dados estatísticos, decretos, instruções normativas e leis. Ademais, as obras e artigos analisados foram interpretados pela autora. Houve também o uso de dados secundários, notadamente em relação à temática de povos e comunidades tradicionais em áreas sobrepostas à Unidades de Proteção Integral, no Parque Nacional da Serra da Canastra, sudoeste de Minas Gerais, tendo em vista que foram utilizados dados já interpretados nas dissertações de mestrado de Vanessa Samora Ribeiro Fernandes (2012) e Gustavo Henrique Cepolini Ferreira (2013).

Trata-se de pesquisa interdisciplinar, que conta com elementos, apenas a título ilustrativo, da Ecologia, Biologia, Antropologia, Ciências Sociais, Direito Administrativo e Direito Ambiental. Isso porque o assunto regulamentado na legislação ambiental e efetivado por meio do Direito Administrativo relaciona-se à gestão de espaços territoriais para a manutenção dos ecossistemas e conservação das espécies, acarretando diversas consequências na dinâmica social das comunidades que vivem em tais espaços. Tanto a crítica às Unidades de Proteção Integral como a exceção legal que se propõe construir encontram fundamentação teórica na relação que o ser humano possui com a natureza.

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Para se construir, portanto, essa via alternativa regulamentadora que permite a permanência de povos e comunidades tradicionais em Unidades de Proteção Integral, necessário se faz uma melhor compreensão da Lei nº 9.985/2000 (Lei do SNUC). Isso é realizado no segundo capítulo, no qual são abordados os aspectos constitutivos da lei, a contextualização e o histórico de sua tramitação.

É também imprescindível lançar o olhar sobre as perspectivas de conservação e preservação da natureza, para compreender de que modo tais concepções influenciaram na elaboração da Lei do SNUC, mais precisamente no que se refere às Unidades de Proteção Integral, que vedam o uso direto dos recursos naturais pelos seres humanos, independentemente de qual seja sua relação com a natureza.

Desse modo, são analisadas as compreensões preservacionistas e conservacionistas, tendo em vista que foram recepcionadas, parcialmente, pela Lei do SNUC, e a concepção socioambientalista, que sustenta a possibilidade da presença humana em áreas protegidas, pretendendo a promoção do desenvolvimento sustentável4 com respeito aos ecossistemas. Essa

última perspectiva é relevante para a pesquisa, pois apresenta uma visão alternativa de conservação, trazendo ao debate importantes contornos sobre a vida e a luta dos povos da floresta, bem como sua importância para a conservação da biodiversidade. Nessa ordem de ideias, ainda no segundo capítulo, será desenvolvido o conceito de povos e comunidades tradicionais, mediante a análise da legislação e de obras que tratam do tema.

O terceiro capítulo do trabalho destina-se à compreensão da razão de ser5 das Unidades de Proteção Integral. O capítulo tem como objetivo identificar em face de quais grupos ou de quais indivíduos se querem manter determinadas áreas isoladas. Tal construção se deu sob uma perspectiva histórico-antropológica, notadamente o modo pelo qual se desencadeou a dissociação entre ser humano e natureza, que resultou na necessidade de criação de áreas isoladas, por intermédio da legislação.

Ainda nesse capítulo, analisa-se o “mito moderno da natureza intocada”, teoria desenvolvida por Antônio Carlos Diegues (2001), e as concepções de paraísos perdidos, que permeiam o imaginário ocidental. Tais perspectivas são importantes para os objetivos da pesquisa, para melhor compreender a razão de ser das Unidades de Proteção Integral, visto que as ideias de uma natureza pura, que reconciliaria o homem ao plano espiritual e natural,

4 Neste trabalho, utiliza-se a conceituação jurídica de “desenvolvimento sustentável”, prevista no Relatório Nosso

Futuro Comum (1987), como sendo “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades” (ONU, 1987).

5 O termo “razão de ser” é empregado nesta dissertação no sentido jurídico, ou seja, a razão jurídica de ser das

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influenciaram consideravelmente a concepção preservacionista, ou seja, espaços destinados à preservação sem interferência humana direta.

No quarto capítulo, dimensiona-se o conflito socioambiental decorrente da sobreposição territorial de povos e comunidades tradicionais e Unidades de Proteção Integral. Realiza-se uma reflexão sobre as causas e consequências do conflito, nas mais diversas esferas, incluindo a social, a jurídica, a institucional e a do saber. Posteriormente, ainda nesse capítulo, com a intenção de contextualizar a questão de povos e comunidades tradicionais habitando áreas de Unidades de Proteção Integral, em Minas Gerais, foi analisado o caso do Parque Nacional da Serra da Canastra, localizado no sudoeste mineiro, e suas nuances.

Após, no quinto capítulo, sem prejuízo de outras propostas existentes, destaca-se algumas alternativas relevantes já pensadas para a mediação do conflito no contexto brasileiro, que foram divididas em cinco grupos. O primeiro grupo refere-se à mediação por meio da comunicação e educação ambiental. O segundo grupo diz respeito à revisão dos limites das unidades, que pode se dar por meio da criação de mosaicos de unidades de conservação, recategorização e desafetação de áreas. O terceiro grupo, por sua vez, concerne à via conciliatória. São descritos os principais contornos sobre o Acordo de gestão, Plano de Uso Tradicional e Termo de Compromisso. Ressalte-se que se deu enfoque ao termo de compromisso, procedendo-se a uma análise crítica do instrumento jurídico, considerando ser o meio institucional próprio, previsto no Decreto nº 4.340 de 2002 e regulamentado na Instrução Normativa nº 26, de 4 de julho de 2012, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), para mediação dos conflitos existentes entre povos e comunidades tradicionais e Unidades de Proteção Integral, regulamentando a presença das comunidades enquanto não se encontra a solução para o impasse.

O quarto grupo se relaciona às sugestões que conciliam os interesses de preservação cultural e ambiental, concretizadas por meio da dupla afetação ou da criação de zonas histórico-culturais antropológicas. Por fim, no quinto grupo, será exposta a determinação legal de a remoção das populações tradicionais de seus territórios, prevista no art. 42 e parágrafos da Lei do SNUC.

Após desenvolver tais ideias, e, considerando que o termo de compromisso é transitório e vulnerável diante do conflito socioambiental entre povos e comunidades tradicionais e Unidades de Proteção Integral, desenvolve-se, no sexto capítulo, a contribuição da autora para o tema. Para tanto, utiliza-se a teoria da “dialética do meio”, de François Ost (1995), com o objetivo de demonstrar que há relações humanas com a natureza em moldes diversos dos apresentados no segundo capítulo deste trabalho. Com isso, quer-se dizer que algumas

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comunidades desenvolveram uma relação não predatória com o meio ambiente, não encaram os recursos naturais como bens, de modo a não serem consideradas como ameaças à conservação da natureza. Antes, por apresentarem uma relação dialética com o meio, no qual se reconhecem enquanto “ser” e dependentes, são aliadas à preservação dos ecossistemas e das belezas cênicas.

Além disso, desenvolve-se o argumento jurídico de que certas populações já se encontravam nessas áreas protegidas, anteriormente à norma, ou seja, o objeto jurídico que se almeja proteger é a natureza no status em que se encontra. E, ela se encontra assim, justamente por haver determinados grupos habitando-a. Vale dizer que o objetivo da lei não é criar áreas com maior diversidade, pelo contrário, é o de proteger a diversidade que já existe nessas áreas.

Feitas essas construções, pretende-se, ao fim, lançar a proposição de se incluir uma exceção no §1º, do art. 7º da Lei do SNUC, que disciplina a proteção integral. A exceção seria da não necessidade de se removerem os povos e comunidades tradicionais das Unidades de Proteção Integral, uma vez que esses grupos se reconhecem na natureza de maneira dialética, do modo como desenvolvido por François Ost.

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2 CONTEXTUALIZANDO A LEI Nº 9.985, DE 18 DE JULHO DE 2000

Como o objetivo do presente trabalho é a revisitação da Lei do SNUC, fundamental se faz entender, primeiramente, a estruturação, o histórico e o contexto em que a lei está inserida. Para tanto, neste capítulo, pretende-se analisar os avanços da institucionalização da preocupação ambiental, isto é, os principais marcos do Direito Ambiental, tanto os internacionais, quanto os nacionais.

Posteriormente, serão analisadas as perspectivas sobre a conservação da natureza. O estudo sobre essas visões será importante, considerando a influência que exerceram nos debates para a construção da Lei do SNUC, que acabou por recepcionar visões preservacionistas, conservacionistas e socioambientalistas. Será desenvolvido, ainda, o conceito de povos e comunidades tradicionais. Após compreendido o cenário, será feita uma breve contextualização das disposições e organizações da Lei do SNUC.

2.1 A institucionalização da preocupação ambiental pelo Direito

Pretende-se desenvolver neste Capítulo os principais marcos normativos do Direito Ambiental, tanto os internacionais, quanto os internos. Isso para melhor contextualização sobre a legislação ambiental e seus reflexos na Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional das Unidades de Conservação da Natureza (Lei do SNUC).

2.1.1 Os avanços da proteção ambiental no âmbito do Direito Internacional

Como explica Édis Milaré (2007, p. 144-145), a consciência ecológica, também compreendida como a institucionalização da preocupação ambiental, é relativamente recente, ganhando destaque na segunda metade do século XX, mais precisamente a partir da década de 1970. Vigorava, então, a tese da infinidade dos recursos naturais (ANTUNES, 2015, p. 8).

O novo direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado foi reconhecido pela Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 16 de junho de 1972, a qual aborda os problemas ambientais sob os vieses políticos, sociais e econômicos (SILVA, 2007, p. 58-59). Tal Declaração possui 26 princípios, que são compreendidos como prolongamento da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, alicerçando as Constituições supervenientes, no que se refere aos assuntos ambientais (SILVA, 2007, p. 63-70).

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A referida Declaração do Meio Ambiente de Estocolmo (ONU, 1972) proclama que o ser humano é, ao mesmo tempo, resultado e criador do meio em que está inserido. Este meio que o circunda oferece sustento material, bem como oportunidade de desenvolvimento nas esferas intelectual, moral e espiritual. O meio ambiente compreendido em seus dois aspectos – natural e artificial – é fundamental para que o homem usufrua dos seus direitos fundamentais, incluindo o próprio direito à vida, além de ser essencial para o seu bem-estar e desenvolvimento econômico. A Declaração determina, ainda, que a defesa e melhora do meio ambiente é desejo dos povos, uma questão fundamental, e um dever de todos os governos, considerando sua dimensão que afeta todas as pessoas. Assim como são perseguidos os objetivos mundiais da paz e do desenvolvimento econômico e social, a proteção e melhora do meio ambiente para as gerações presentes e futuras deve ser um objetivo a ser alcançado pela humanidade (SILVA, 2007, p. 59).

Transcorridos onze anos da Declaração do Meio Ambiente de Estocolmo, ou seja, em 1983, foi criada a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, pela Organização das Nações Unidas (ONU). O Relatório Nosso Futuro Comum, também conhecido como Relatório Brundtland, foi apresentado em 1987 e resultou das atividades dessa Comissão, de diversas audiências e discussões com lideranças políticas e organizações do mundo todo. O conceito de desenvolvimento sustentável, entendido como aquele que atende às necessidades das presentes gerações sem comprometer as necessidades das gerações futuras, foi definido no mencionado Relatório Brundtland (OLIVEIRA, 2017).

Após realização da primeira Conferência em 1972, foram realizadas outras três importantes conferências mundiais sobre a temática ambiental, promovidas pela ONU, sendo elas a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992 (Rio/92); a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+10), ocorrida em 2002; e a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), realizada em 2012 (OLIVEIRA, 2017).

A Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Rio/92 (ECO 92) e como “Cúpula da Terra”, foi realizada em junho daquele ano, na cidade do Rio de Janeiro. Cinco documentos importantes resultaram da Convenção: Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento; Agenda 21; Convenção-Quadro sobre Mudanças do Clima; Convenção sobre Diversidade Biológica ou da Biodiversidade; e Declaração de Princípios sobre Florestas (OLIVEIRA, 2017). Destaca-se que desses documentos apenas a Convenção-Quadro sobre Mudanças do Clima e a Convenção sobre

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Diversidade Biológica possuem força jurídica vinculante no Brasil, ao passo que os outros documentos são soft law6 (ANTUNES, 2010, p. 354).

A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ONU, 1992) é composta por 27 princípios que desempenham um papel fundamental para a compreensão do Direito Ambiental, embora seja apenas uma recomendação. Esses princípios possuem importância tanto para o direito internacional quanto para o desenvolvimento principiológico nas legislações ambientais internas (OLIVEIRA, 2017).

Apenas a título ilustrativo, destacam-se alguns dos princípios presentes na Declaração acima mencionada. O Princípio 1 declara que todos têm direito a uma vida saudável e produtiva, em equilíbrio com a natureza, sendo que os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Destaca-se também o Princípio 3, segundo o qual o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo que haja o uso equitativo dos recursos naturais, atentando-se para as necessidades das presentes e futuras gerações. De acordo com o Princípio 4, para que o desenvolvimento sustentável seja atingido, é necessário que a proteção ao meio ambiente seja vista como parte integrante do desenvolvimento e não como contrária a ele.

A Agenda 21, de acordo com Édis Milaré (2007, p. 92-94), é um documento de natureza programática e consensual, firmada pelos países representados na RIO/92. O preâmbulo da Agenda 21 anuncia que seu objetivo é preparar o planeta para os desafios do século XXI. O conteúdo, por sua vez, contém diretrizes para a execução do desenvolvimento sustentável no âmbito internacional, nacional, regional e local. Em outras palavras, a Agenda 21 tem por finalidade subsidiar ações do Poder Público e da sociedade em prol do desenvolvimento sustentável. Pode ser entendida como a cartilha básica do desenvolvimento sustentável (OLIVEIRA, 2017).

O objetivo da Convenção-Quadro sobre Mudanças do Clima de 1992, ratificada no Brasil pelo Decreto Federal nº 2.652, de 1º de julho de 1998, por sua vez, é a consolidação das concentrações dos gases causadores do efeito estufa, evitando, deste modo, a interferência negativa que o homem causa no clima (art. 2). Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA, 2019), o Protocolo de Quioto de 1997 é um tratado complementar à Convenção em comento. No Protocolo, ficaram definidas metas de redução de emissões para os países desenvolvidos e os que, à época, possuíam economia em transição para o capitalismo.

No que diz respeito à Convenção sobre Diversidade Biológica, ratificada no Brasil pelo Decreto Federal nº 2.519, de 16 de março de 1998, ela apresenta como objetivos a repartição

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justa e equitativa dos benefícios advindos do uso dos recursos genéticos, a conservação da diversidade biológica e a utilização de modo sustentável de seus elementos (art. 1). A Declaração de Princípios sobre Florestas, a seu turno, é um documento genérico que indica princípios para a proteção das florestas. Tais princípios direcionam no sentido de que os países, especialmente os desenvolvidos, deveriam executar medidas de reflorestamento e conservação florestal, com o objetivo de recuperar as áreas devastadas (OLIVEIRA, 2017).

A Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, também conhecida como Rio+10, sucedeu em Johanesburgo, na África do Sul, no ano de 2002. Nessa ocasião, foram discutidos os resultados das conferências anteriores (OLIVEIRA, 2017). Além disso, compromissos para alteração nos padrões de produção e consumo, bem como para proteção dos recursos naturais existentes foram estabelecidos. A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável ou Rio+20, por sua vez, ocorreu na cidade do Rio de Janeiro em junho de 2012. As duas principais temáticas desenvolvidas na conferência foram a economia verde no âmbito do desenvolvimento sustentável e da eliminação da pobreza, bem como a estrutura institucional para o desenvolvimento sustentável. O documento final foi denominado “O Futuro que Queremos” (OLIVEIRA, 2017).

Interessante observar que os marcos internacionais do Direito Ambiental são antropocêntricos, ou seja, a tutela ambiental, abrangendo a preservação da natureza em todos os seus elementos, se dá em função da qualidade de vida do homem (SILVA, 2009, p. 58). Consoante Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2005, p. 16), uma vez que o ser humano é o único animal racional e, por isso, o destinatário das normas jurídicas, os bens só podem ser tutelados pelo Direito Ambiental se forem relevantes para garantia da sadia qualidade de vida das pessoas, incumbindo-lhe preservar as espécies, inclusive a sua própria.

2.1.2 Os avanços da proteção ambiental na legislação brasileira

As Constituições brasileiras que antecederam à de 1988 não se preocuparam com a defesa ambiental de forma específica nem geral. A expressão meio ambiente sequer foi empregada antes da Constituição Federal de 1988 (MILARÉ, 2007, p. 151-152). A Constituição do Império (1824) apenas cuidou da proibição de indústrias nocivas à saúde do cidadão e a Constituição Republicana (1891) conferiu à União competência para legislar acerca das minas e terras. A partir da Constituição de 1934, todas as demais Constituições (1937, 1946, 1967, 1969) cuidaram da proteção do patrimônio histórico, cultural e paisagístico do país. Conforme

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Paulo Affonso Leme Machado (2006, p. 115), a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a utilizar a expressão meio ambiente.

Nessa ordem de ideias, a Constituição Federal de 1988 tutela o ambiente natural, o artificial, o cultural e o do trabalho, recepcionando o entendimento do meio ambiente como conjunto de condições das mais diferentes ordens que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Essa definição é prevista no art. 3º, I, da Lei nº 6.938 de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação. A definição do meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro é, portanto, ampla (FIORILLO, 2005, p. 19-20).

A Constituição Federal resguarda um capítulo próprio para o meio ambiente (capítulo VI), no Título VIII, que cuida da ordem social. As disposições centrais sobre a matéria ambiental encontram-se previstas ao longo dos parágrafos e incisos do art. 225 (MACHADO, 2006, p. 115).

Não obstante, há outras disposições inseridas em capítulos e títulos diversos ao longo do texto constitucional, haja vista o conteúdo multidisciplinar da matéria (MILARÉ, 2007, p. 152). Entre elas, destaca-se o art. 182, que inicia o capítulo referente à política urbana e relaciona-se ao meio ambiente artificial, tendo em suas diretrizes o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia o bem-estar de seus habitantes. Ressalte-se também o art. 216, que disciplina o meio ambiente cultural, definindo os bens que compõem o patrimônio cultural como aqueles que traduzem a história, a formação e cultura de um povo, sejam eles materiais ou imateriais. O art. 200, VIII, por sua vez, tutela o meio ambiente do trabalho, compreendido como o local onde as pessoas desempenham seus ofícios, buscando a salubridade do meio.

O Título da ordem econômica também trata do meio ambiente (art. 170, III e VI). Entre os princípios da ordem econômica, também se encontra a defesa do meio ambiente. Cabe ressaltar que a propriedade privada, nesse contexto, somente cumpre sua função social quando se preserva o meio ambiente, como dispõe o art. 5º, XXIII, da Constituição Federal e o art. 1.228, §1º, do Código Civil (FIORILLO, 2005, p. 21-23).

É interessante mencionar que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito constitucional fundamental (MACHADO, 2006, p. 116). É um direito de todos, na individualidade de cada pessoa, um direito difuso, indisponível e transindividual, uma vez que não se encerra em apenas uma pessoa, cabendo às presentes gerações – titulares do direito – preservar o meio ambiente equilibrado para as futuras gerações, também titulares deste direito (MACHADO, 2006, p. 116). Além do mais, o meio ambiente é um bem de uso comum do povo,

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na medida em que não pertence apenas a alguns indivíduos, mas sim à generalidade de pessoas, não havendo se falar em qualidade de vida dissociada dele (MILARÉ, 2007, p. 157).

Ainda sob a ótica constitucional, o poder público passa a ser um gestor dos bens ambientais e não é mais mero proprietário (MACHADO, 2006, p. 120). Gestor esse que possui dever constitucional geral e positivo de defendê-lo e preservá-lo. Ressalta-se que não cabe apenas ao Poder Público este dever de cuidar e proteger, mas, também, cabe a cada cidadão geri-lo e protegê-lo (MILARÉ, 2007, p. 157).

Com efeito, há mecanismos judiciais resguardados pela Constituição Federal e por leis infraconstitucionais para a proteção do meio ambiente, como, por exemplo, a ação popular, o mandado de segurança coletivo e a ação civil pública, haja vista ser pressuposto para atendimento ao direito à vida (MILARÉ, 2007, p. 145).

Algumas normas infraconstitucionais ambientais também merecem ser realçadas nesse momento, como, por exemplo, a Lei nº 6.938 de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), que tem por objetivo geral preservar, melhorar e recuperar ambientes degradados, possibilitando a sadia qualidade de vida (OLIVEIRA, 2017). Além disso, a lei busca garantir condições para o desenvolvimento socioeconômico e para assegurar interesses da segurança nacional e dignidade da vida humana (OLIVEIRA, 2017).

Ademais, a lei cria a obrigatoriedade dos estudos e relatórios de impacto ambiental e institui o licenciamento ambiental como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, institui os órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) e atribui-lhes competências. A lei também apresenta a definição de poluidor e define a obrigatoriedade de indenizar danos ambientais que o poluidor causar, independentemente de culpa, bem como a possibilidade de o Ministério Público propor ações de responsabilidade civil por danos ambientais (OLIVEIRA, 2017).

Merece destaque, também, tendo em vista a importância histórica, o Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional; a Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, que dispõe sobre o Estatuto da Terra, prevendo, no §1º, “c”, do art. 2º, que a função social da propriedade da terra só será atingida se se assegurar a conservação dos recursos naturais; a Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano, estabelecendo as regras para loteamentos urbanos; a Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, responsável pela execução de programas e mecanismos com o objetivo de proporcionar a boa gestão e descarte de resíduos sólidos decorrentes da ação humana, especialmente de atividades econômicas; a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções

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penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, apresentando marcante inovação no ordenamento jurídico brasileiro ao responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas (MACHADO, 2004, p. 658-662); a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, trazendo a definição de água como recurso natural limitado, com valor econômico, de usos múltiplos; e a Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa, popularmente conhecida como “Código Florestal”, prescrevendo normas gerais sobre Áreas de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL).

2.2 As perspectivas de conservação e preservação ambiental e seus reflexos na Lei nº 9.985: conservacionismo, preservacionismo e socioambientalismo

Havia no início do século XX nos Estados Unidos duas visões – polarizadas – de como se deveria proteger a natureza, quais sejam, o conservacionismo e o preservacionismo (DIEGUES, 2001, p. 30-32). Essas perspectivas teóricas influenciaram o modo de se conservar e preservar a natureza, tanto nos Estados Unidos, quanto em outros países (FERNANDEZ, 2016, p. 169-170). Apenas para delimitar alguns termos, preservação se refere ao não uso dos recursos, ao passo que conservação diz respeito ao uso equilibrado dos recursos naturais (FERNANDEZ, 2016, p. 169).

O principal expoente do conservacionismo foi o engenheiro florestal Gifford Pinchot (FERNANDEZ, 2016, p. 169). Ele foi o responsável pela criação do movimento de conservação dos recursos, propondo o uso equilibrado dos recursos naturais, ideias essas que mais tarde se consubstanciaram no que se chama de “desenvolvimento sustentável” (DIEGUES, 2001, p. 31).

Nesse contexto, interessante a crítica feita por Antônio Carlos Diegues (2001, p. 31), de que não obstante as ideias de Pinchot serem uma das primeiras a contestar a concepção do “desenvolvimento a qualquer custo”, ainda estavam relacionadas à lógica de se transformar a natureza em mercadoria, tendo em vista que Pinchot considerava os processos da natureza lentos e os procedimentos de manejo poderiam torná-la eficiente. Para se alcançar a conservação, portanto, deveria se levar em conta três princípios: “o uso dos recursos naturais pela geração presente; a prevenção do desperdício; e o uso dos recursos naturais para benefício da maioria dos cidadãos” (DIEGUES, 2001, p. 31). Visando à garantia da preservação da própria espécie humana, o conservacionismo admite o uso de áreas protegidas de forma controlada, racional e casual (FURRIELA, 2004, p. 64).

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No que se refere à Lei do SNUC, pode-se observar, que as categorias das unidades de desenvolvimento sustentável foram baseadas nas ideias do conservacionismo.

Por outro lado, a corrente preservacionista propõe o isolamento e a intocabilidade do meio ambiente, para assegurar sua perpetuidade, não havendo se falar em uso racional dos recursos naturais (FURRIELA, 2004, p. 64). Criam-se, então, espaços para apreciação estética e espiritual da vida selvagem, para reverenciar a natureza, com o objetivo de protegê-la contra o desenvolvimento moderno, industrial e urbano (DIEGUES, 2001, p. 32). Essa visão foi inspirada nas ideias de igualdade de direitos entre homens e animais, cujos precursores são Henry David Thoreau, George Perkins Marsh e, posteriormente, John Muir (FERNANDEZ, 2016, p. 169).

O principal teórico do preservacionismo foi John Muir, para quem todos os elementos da natureza – seres humanos, animais, plantas, rochas e águas – faziam parte de uma comunidade orgânica, criada pela Alma Divina que a permeava (DIEGUES, 2001, p. 32-33). Não havia, portanto, hierarquia entre os membros. Essas ideias, denominadas atualmente “biocêntricas”7, basearam-se cientificamente na História Natural, mormente na teoria da

evolução de Charles Darwin8, que colocou o homem de volta na natureza (DIEGUES, 2001, p.

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É nessa perspectiva preservacionista que se insere o modelo dos Parques Nacionais9, que se originou nos Estados Unidos, como áreas naturais, selvagens, destinadas à contemplação. A noção de natureza selvagem era de grandes áreas naturais não habitadas (considerando o extermínio indígena e a expansão das fronteiras para o oeste), que deveriam ser reservadas para a recreação das populações urbanas (DIEGUES, 201, p. 26). Conforme Rinaldo Arruda (1999, p. 83), o modelo de conservação adotado no Brasil foi arquitetado no século XX nos Estados Unidos.

Nesse contexto, o conceito de wilderness foi um marco significativo na separação entre ser humano e natureza, desconsiderando todo o manejo tradicional que havia nas áreas naturais nas Américas (DIEGUES, 2001, p. 37). Ideias que serão mais bem desenvolvidas no próximo capítulo.

Há, no entanto, uma via alternativa a essas concepções de conservação e preservação, denominada de socioambientalismo. Para Juliana Santilli (2005, p. 12), o socioambientalismo surge na segunda metade da década de 1980, a partir de articulações políticas entre os

7 A perspectiva biocêntrica será mais bem desenvolvida no seção 6.1, da presente dissertação.

8 Caso queira se aprofundar no tema, ver: “A Origem das Espécies” (1859) e a “Descendência do Homem” (1871). 9 O assunto será mais bem desenvolvida na seção 3.4, da presente dissertação.

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movimentos sociais e ambientais, e é consolidado na Constituição Federal de 1988. Tem maior impulsionamento nos anos 1990, após a ECO-92, a qual privilegia os princípios socioambientais (SANTILLI, 2005, p. 12).

O socioambientalismo se estrutura nas ideias de que as políticas públicas ambientais também devem levar em consideração as comunidades locais, uma vez que, em um país pobre e com desigualdades sociais marcantes, como o Brasil, não é possível se falar apenas em sustentabilidade ambiental – preservação dos ecossistemas – desconsiderando a promoção de valores, como a justiça social e equidade (SANTILLI, 2005, p. 14).

Desse modo, o socioambientalismo se aproxima dos movimentos sociais e da luta pela justiça social, envolvendo as comunidades e seus saberes na conservação da biodiversidade, apresentando-se como uma alternativa aos modelos do conservacionismo e preservacionismo – que funcionam bem nos países do Norte – porém, no contexto do Sul global, em que há inúmeras pressões sociais e considerável desigualdade social, não logram êxito e realçam ainda mais as injustiças sociais (SANTILLI, 2005, p. 19).

Nos dizeres de Márcio Santilli (2003, p. 1), o socioambientalismo é uma invenção brasileira, que nasce, desenvolve-se e destina-se ao contexto brasileiro, “sem paralelo no ambientalismo internacional, que indica precisamente o rumo de integrar políticas setoriais, suas perspectivas e atores, num projeto de Brasil que tenha sua cara e possa, por isso mesmo, ser politicamente sustentado” (SANTILLI, 2003, p. 1).

Nesse contexto, importante mencionar as Reservas Extrativista (REXES), previstas nos arts. 14, IV e 18, da Lei do SNUC, tendo em vista que são inspiradas nos conceitos socioambientalistas (SANTILLI, 2005, p. 15). As RESEX surgem das reivindicações dos seringueiros, residentes na Floresta Amazônica, para que pudessem continuar usufruindo dos recursos naturais presentes nas florestas, continuando com a coleta de seringa e colheita de castanhas, como tradicionalmente faziam (SANTILLI, 2005, p. 13).

O modelo predatório da exploração de recursos naturais na Amazônia colocava em risco tanto a sobrevivência física, quanto a cultural das comunidades tradicionais, mais precisamente dos indígenas e seringueiros, esses liderados por Chico Mendes (SANTILLI, 2005, p. 13). Diante das pressões sofridas, esses povos se articularam, com aliados nacionais e internacionais, e criaram a “Aliança dos Povos da Floresta”, importante marco socioambiental:

A “Aliança dos Povos da Floresta” defendia o modo de vida das populações tradicionais amazônicas, cuja continuidade dependia da conservação da floresta, e estava ameaçada pelo desmatamento e a exploração predatória de seus recursos naturais, impulsionada principalmente pela abertura de grandes rodovias (Belém– Brasília, Transamazônica, Cuiabá–Porto Velho–Rio Branco, Cuiabá-Santarém) e pela

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abertura de 13 pastagens destinadas às grandes fazendas de agropecuária, e a consequente migração de milhares de colonos e agricultores para a região amazônica (SANTILLI, 2005, p. 12).

Devido à repercussão nacional e internacional do assassinato de Chico Mendes, principal líder dos seringueiros, e ao fortalecimento da articulação entre os movimentos dos seringueiros com os movimentos ambientalistas, é criada a primeira Reserva Extrativista do Alto Juruá, com 506.186 hectares, por meio do Decreto nº 98.86 (SANTILLI, 2005, p. 16), outro importante marco para o socioambientalismo, considerando que possibilita o envolvimento das comunidades tradicionais na conservação da biodiversidade.

2.3 Histórico de tramitação da Lei nº 9.985

Na segunda metade do século XIX, a criação de unidades de conservação se consolidou no mundo e no Brasil como a principal e mais disseminada estratégia de proteção da natureza (DRUMMOND; FRANCO; OLIVEIRA, 2010, p. 343).

Não obstante, na década de 1960 a criação de áreas protegidas – hoje conhecidas como unidades de conservação – não obedecia a qualquer planejamento, sendo estabelecidas áreas para conservação decorrentes de valorização estética ou circunstâncias políticas favoráveis (MERCADANTE, 2001, p. 190).

Havia uma pluralidade de categorias de áreas naturais protegidas, até a década de 1990, que não apresentavam consenso de nomenclaturas e funções; o cenário brasileiro era repleto de Parques Florestais, Estações Biológicas, Parques Ecológicos e Reservas Florestais, a título de exemplo (DRUMMOND; FRANCO; OLIVEIRA, 2010, p. 347-348). Considerando este cenário impreciso e pressões internacionais, era necessário sistematizar as áreas protegidas, criando um novo panorama de conservação (DRUMMOND; FRANCO; OLIVEIRA, 2010, p. 347).

Desse modo, em 1988, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) encomendou à Fundação Pró-Natureza (FUNATURA), Organização não Governamental (ONG) sediada em Brasília, dirigida por Maria Tereza Jorge Pádua, uma análise sistemática das categorias de unidades que existiam no território nacional e a elaboração de um anteprojeto de lei, para que fosse instituído um sistema nacional de unidades de conservação (SNUC) (MERCADANTE, 2001, p. 191).

Percebe-se, então, que sobreveio da necessidade de sistematizar e institucionalizar as diversas unidades de conservação existentes. É neste contexto que se procede à elaboração da

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Lei do SNUC, com o objetivo de estabelecer esses padrões e de recategorizar as inúmeras categorias existentes (DRUMMOND; FRANCO; OLIVEIRA, 2010, p. 347). Houve, no entanto, grande dificuldade nessa sistematização, tramitando o projeto de lei do SNUC por dez anos (DRUMMOND; FRANCO; OLIVEIRA, 2010, p. 347).

As categorias de manejo previstas no SNUC basearam-se em padrões internacionais, definidos pela União Internacional para Conservação da Natureza (UICN), permitindo, dessa forma, uma adequação às normas internacionais, facilitando a captação de recursos financeiros, realização de pesquisas e trocas de experiências com outras unidades de conservação no contexto global (DRUMMOND; FRANCO; OLIVEIRA, 2010, p. 350).

Em 1992, o anteprojeto de lei, produzido pela FUNATURA, foi encaminhado ao Congresso Nacional na qualidade de projeto de lei, PL nº 2.892/92, pelo então Presidente da República Fernando Affonso Collor de Mello. Ao ser recebido pelo Congresso, foi encaminhado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados à Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias (CDCMAM), para apreciação, sendo lá redistribuído para o Deputado Fábio Feldmann (MERCADANTE, 2001, p. 193).

Fábio Feldmann apresentou sua primeira proposta de Substitutivo ao PL nº 2.892/92, com consideráveis modificações (MERCADANTE, 2001, p. 193). Tendo em vista que o recorte da dissertação trata dos povos e comunidades tradicionais presentes em unidades de conservação, serão apresentadas as propostas de modificações que tenham correlação com o tema10, as quais são transcritas abaixo, considerando sua importância literal:

1. Acrescentou-se ao SNUC os seguintes objetivos:

· valorizar econômica e socialmente a diversidade biológica;

· proteger as fontes de alimentos, os locais de moradia e outras condições

materiais de subsistência de populações tradicionais, respeitando sua cultura e promovendo-as social e economicamente;

· proteger e encorajar o uso costumeiro de recursos biológicos, de acordo com

práticas culturais tradicionais compatíveis com as exigências de conservação e uso sustentável;

· proteger e valorizar o conhecimento das populações tradicionais, especialmente

sobre formas de manejo dos ecossistemas e uso sustentável dos recursos naturais.

3. Em função da inclusão da preocupação com as populações tradicionais, o Substitutivo cuida de definir a expressão, nos seguintes termos:

“POPULAÇÃO TRADICIONAL: população culturalmente diferenciada, vivendo há várias gerações em um determinado ecossistema, em estreita dependência do meio natural para sua alimentação, abrigo e outras condições materiais de subsistência, e que utiliza os recursos naturais de forma sustentável” (MERCADANTE, 2001, p. 199; 202, grifo nosso).

(33)

As propostas do substitutivo foram amplamente debatidas, verificando-se, cada vez mais, a profunda cisão que havia entre os ambientalistas e os modelos de conservação – conservacionista, preservacionista e socioambientais – que eram favoráveis (MERCADANTE, 2001, p. 202).

Em 1995, Fábio Feldmann assume a Secretária do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, e o Deputado Fernando Gabeira torna-se o novo relator do PL nº 2.892/92 (MERCADANTE, 2001, p. 203). Foram realizadas audiências públicas em seis capitais, nas cinco regiões do Brasil (Cuiabá, Macapá, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador) para se debater sobre o tema. O novo relator segue o substitutivo proposto por Fábio Feldmann e acrescenta mais propostas, considerando as consultas públicas realizadas (MERCADANTE, 2001, p. 203).

Entre as propostas apresentadas por Fernando Gabeira, devido a importância dada à problemática de povos e comunidades tradicionais na presente pesquisa, destacam-se as seguintes:

1. O termo “população tradicional” ganhou uma nova definição: “população vivendo há pelo menos duas gerações em um determinado ecossistema, em estreita relação com o ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para a sua reprodução sociocultural, por meio de atividades de baixo impacto ambiental.” 2. Foram acrescentadas quatro novas categorias de unidades de conservação: Reserva Produtora de Água, com o objetivo básico de proteger as fontes de água potável das populações humanas; a Reserva Ecológico-Cultural, com o objetivo de proteger áreas onde populações tradicionais desenvolveram sistemas de exploração dos recursos naturais adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel chave na conservação da diversidade biológica; a Reserva Ecológica-Integrada, com o objetivo de promover a gestão integrada de áreas ou unidades de conservação com diferentes objetivos de manejo e a Reserva Indígena de Recursos Naturais, para possibilitar uma política efetiva de conservação em terra indígena, com apoio oficial, e que pudesse servir também para ajudar na resolução efetiva da questão das sobreposições entre terra indígena e UC11.

3. Reconheceu-se o problema da presença de população tradicional em UCs de

Proteção Integral. Para endereçar uma solução para o problema foram estabelecidas três alternativas: o reassentamento da população (em condições

negociadas), a reclassificação da UC e a permanência temporária da população (mediante contrato). A alternativa de assegurar o direito de permanência por prazo indeterminado não foi proposta por falta de condições políticas.

4. Passou-se a admitir a presença de população tradicional em Floresta Nacional (MERCADANTE, 2001, p. 205-208, grifo nosso).

11 A Reserva Produtora de Água, a Reserva Ecológica-Integrada e a Reserva Indígena de Recursos Naturais

terminaram sendo excluídas da versão final aprovada na Câmara, esta última por pressão do Executivo, dos preservacionistas e, inclusive, de entidade ligadas à questão indígena. A Reserva Ecológico-Cultural foi aprovada com o nome de Reserva de Desenvolvimento Sustentável (MERCADANTE, 2001, p. 205-206).

Referências

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