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Considerando a influência exercida pela Europa Ocidental nos países do Sul, faz-se necessário perpassar pela concepção judaico-cristã de natureza, para melhor compreensão da relação que há entre a sociedade hegemônica e a natureza, inclusive o contexto em que as leis ambientais estão inseridas, mais precisamente a Lei do SNUC. Importante destacar, de antemão, a análise crítica que Keith Thomas (1988, p. 29) e François Ost (1995, p. 33) apresentam sobre o assunto, notadamente de que o antropocentrismo e a destruição da natureza não são exclusividades da Europa-cristã, considerando que também houve poluição e devastação em outros impérios não-cristãos, como o dos chineses e dos maias. (THOMAS, 1988, p. 29). Não obstante, segundo Keith Thomas (1988, p. 23-28), a perspectiva judaico-cristã exerceu considerável influência na relação dualista que há entre ser humano e natureza, sendo uma das religiões mais antropocêntricas conhecidas.

Segundo Eduardo Gudynas (2014, p. 26), no antropocentrismo há uma valorização extrínseca da natureza, cujos valores são conferidos pelo ser humano, em seu próprio benefício. Quer dizer que somente aquilo que lhe possui alguma utilidade, possui algum valor. A natureza gira em torno do centro, que é o ser humano (GUDYNAS, 2014, p. 26).

Nessa concepção antropocêntrica, o propósito dos vegetais, minerais e animais era o de servir ao ser humano20, seja pela justificativa de paraísos intocados, pelas determinações para

20 É valido ressaltar que a autoridade concedida ao ser humano pelas religiões judaico-cristã era limitada

dominação humana sobre as outras formas de vida, pela quase divindade, ou pela proximidade com o Criador por ter sido criado à sua imagem e semelhança. As árvores, por exemplo, tinham o propósito de fornecer madeira para a confecção de casas (THOMAS, 1988, p. 25).

Destaca-se algumas passagens de Gênesis que demarcam a superioridade do ser humano sobre os outros seres, ressaltando o comando bíblico para dominação daquele e sujeição desses (OST, 1995, p. 33-34), cuja função era servir (Gn 1, 26), a autoridade para nomear e catalogar os animais e plantas (Gn 2, 20) e o privilégio de ser o gestor da criação, sendo-lhe todos os seres entregues, para cuidar e usar (Gn 9, 2-3).

Além disso, as religiões judaico-cristãs contribuíram para a dessacralização da natureza, tendo em vista que seu valor é relativizado e ela passa a ser considerada uma criação, estando subordinada à onipotência do seu Criador, que, pela sua própria transcendência, dela se separou (OST, 1995, p. 35). A perfeição de Deus, que não habita este mundo, está em oposição à imperfeição do mundo material. E, neste mundo, o homem ocupa uma posição intermediaria, ele é criado à semelhança dos outros seres vivos, mas possui o privilégio exclusivo de participar do plano divino. (OST, 1995, p. 35).

Keith Thomas (1988, p. 37) analisa a excepcionalidade do ser humano em relação aos outros seres e a justificável sujeição destes diante daqueles. Muito se discutiu sobre o porquê da superioridade, não se chegando a concordância. O autor destaca algumas teorias que justificariam a suposta superioridade: o homem seria o único animal racional; o único feito à imagem e semelhança de Deus, que ocupava o patamar entre anjo e animal, o elo mais perfeito com o divino; animal político; o único que é capaz de sorrir e cozinhar; que possuía propriedade privada; que era capaz de transmitir o que pensava através da fala; único que evoluía; que apresentava razão, ou seja, superioridade intelectual; quem possuía maior imaginação, curiosidade, sentido do tempo, futuro, números, senso de beleza, possibilidade de escolhas; único ser imortal e que possuía alma (THOMAS, 1988, p. 37-39).

Nesse contexto, o ápice da apropriação da natureza iniciou-se no século XVII, no continente europeu, no período renascentista (OST, 1995, p. 35). O universo que até então era visto como vivo, orgânico e espiritual, sofre uma mudança com a revolução científica (ROLLA, 2010, p. 6) e passa a ser visto como uma máquina (MILARÉ; COIMBRA, 2004, p. 4). A glorificação do ser humano, elemento central do movimento, e a mecanização da vida assinalam seu distanciamento da natureza e fortalecem ainda mais a ideia de o homem estar no topo da cadeia da vida, devendo dominar o conhecimento sobre a natureza e todos os seres (MILARÉ; COIMBRA, 2004, p. 4).

O racionalismo moderno e a revelação dos segredos da natureza fizeram com que se consubstanciasse a superioridade do ser humano, e, através da ambição desmedida, se tornasse controlador das demais formas de vida existentes, características essas do mundo ocidental contemporâneo (MILARÉ; COIMBRA, 2004, p. 4). O desenvolvimento cientifico-tecnológico, controlado pelo capitalismo, culminou na “coisificação” da natureza (MILARÉ; COIMBRA, 2004, p. 5). Os principais expoentes dessa mudança de perspectiva foram Copérnico, Galileu, Descartes e Bacon, nos séculos XVI e XVII (ROLLA, 2010, p. 6). Copérnico e Galileu, ao comprovarem o movimento da Terra, libertam os seres humanos das amarras da natureza; uma vez que já não estavam mais imóveis no centro, os homens não possuíam mais qualquer vínculo imutável e fixo e poderiam, então, compreender e dominar o movimento (OST, 1995, p. 36).

Um dos primeiros autores a traçar o programa cientifico-político deste projeto de sociedade moderna, foi Francis Bacon, com a “Nova Atlântida” (OST, 1995, p. 37). O homem passa a ter o conhecimento da natureza para dominá-la (OST, 1995, p. 37). Primeiro, era necessário compreendê-la, desvelando os mistérios das causas e princípios, para, em seguida, imitá-la, e, então, aperfeiçoá-la e superá-la, por meio da transformação (OST, 1995, p. 38). A natureza é transformada em artificio, em uma supra natureza, melhorada, mais produtiva e que melhor atende aos interesses humanos. Citam-se como exemplo dessa supra natureza os produtos transgênicos (OST, 1995, p. 38).

A tentativa mais notável da justificação da excepcionalidade, segundo Keith Thomas (1988, p. 39), deu-se com René Descartes. Para esse último, os animais seriam máquinas que vivem com programação automática, tal qual o relógio. Desse modo, houve a cisão absoluta entre o homem e a natureza, já que somente o homem possuía alma e mente, era formado por tempo, matéria e intelecto. O pensamento cartesiano foi o marco divisório entre o espírito e a matéria, a justificativa ideal para a exploração do mundo vegetal e animal, que possibilitava a caça, a domesticação e o consumo elevado de carne, por exemplo (THOMAS, 1988, p. 39-49). Interessante destacar que, nesse período, alguns seres humanos também eram considerados como quase animais. Incluem-se nesse grupo os negros, indígenas, mulheres (no momento do parto e amamentação), as pessoas pobres e as loucas (THOMAS, 1988, p. 52-56). O domínio da natureza era, portanto, destinado a poucos homens. Não obstante, até o mais pobre era capaz de dominar os animais (THOMAS, 1988, p. 58-59).

Verifica-se, portanto, que com o método cartesiano chegou-se ao monismo absoluto, que quer dizer a plena separação entre ser humano e natureza (OST, 1995, p. 42-45). Para René Descartes, a natureza não seria mais deusa, seria apenas matéria, e, considerando que o “deus” de Descarte está afastado da natureza, permitia-se fazer dela todas as transformações e

utilizações (OST, 1995, p. 46). O mundo, de acordo com o método cartesiano, só seria conhecível pelo entendimento e não pela sensação ou imaginação (OST, 1995, p. 42). De um lado estaria o cogito e do outro lado todo o resto; havia relações de superioridade e sujeição, sendo que o cogito reinava sobre o resto (OST, 1995, p. 45). A ciência moderna se torna dona e senhora da natureza. (OST, 1995, p. 48).

Nesse sentido, o ser humano percorre a criação para lhe regular os movimentos de acordo com o que lhe é conveniente (OST, 1995, p. 45). Ele deveria conhecer a natureza para dominá-la: a finalidade da botânica, por exemplo, seria retirar das espécies vegetais classificadas suas utilizações e benefícios, dever-se-ia catalogar as diversas espécies para um fim útil ao ser humano (THOMAS, 1988, p. 32-33).

A melhor representação da natureza no cartesianismo, seria a de um cadáver autopsiado (OST, 1995, p. 48). Em um primeiro momento, é necessário que a natureza morra, para que então possa se revelar os seus segredos e, só assim, ela possuirá alguma utilidade (OST, 1995, p. 48). Nesse passo, o método científico rompeu com a antiga aliança que unia o homem a uma natureza viva (DIEGUES, 2001, p. 60).

De acordo com o argumento cartesiano, o homem disporia de todos os direitos sobre a natureza, porque era o único capaz de a transformar radicalmente, sendo singular portador de inteligência, cuja mão de obra era capaz de acrescentar algo à obra da natureza (OST, 1995, p. 65). As produções naturais do solo satisfariam apenas às hordas errantes dos selvagens primitivos, que eram considerados como quase animais (OST, 1995, p. 65).

Com essa relação de superioridade e dominação, a solidariedade entre o ser humano e os demais seres acaba (OST, 1995, p. 83). O homem está à margem do que ocorre com os outros seres, o que lhe dá permissão para conquistar, apropriar, transformar e forjar a natureza, como melhor lhe aprouver (OST, 1995, p. 83-84). Os materiais genéticos passam a ser avaliados em dinheiro, os atributos naturais passam a ser mercadorias, que podem ser patenteadas e apropriadas, gerando lucros futuros (OST, 1995, p. 98).

Esse novo projeto de domínio e criação do artifício depende mais da tecnologia do que da ciência (OST, 1995, p. 97). A ciência, ou seja, o saber, ainda respeita as formas de vida, para melhor as conhecer, por outro lado, a tecnologia detém o poder de transformação e apropriação (OST, 1995, p. 97).

Essa perspectiva acarretou certas implicações para a natureza (GUDYNAS, 2014, p. 26). A primeira delas seria que a natureza foi fragmentada em componentes que passam a ser encarados como recursos. Dessa fragmentação adveio a segunda consequência, qual seja, a apropriação dos recursos naturais, que passam a ser controlados, manipulados e transformados

em propriedade. A utilidade desses recursos é mensurada com base nos interesses rentáveis que possam gerar (GUDYNAS, 2014, p. 26).

A natureza passa, então, a ser dividida em elementos. Aqueles considerados úteis e valiosos para abastecerem certos segmentos econômicos passam a ser dotados de valor de mercado; aqueles que, por outro lado, não são rentáveis são descartados (GUDYNAS, 2014, p. 26-27). O autor exemplifica por meio das árvores. No atual sistema, a madeira é que possui valor de mercado, logo, apenas o tronco é valorizado e preservado, as folhas e as raízes são suprimidas, consideradas como inexistentes. Não há a visão da árvore como ser vivo, integrante de um ecossistema que está em equilíbrio. As árvores, bem como os ecossistemas não possuem valores próprios ou direitos (GUDYNAS, 2014, p. 27).

Há, então, a prevalência de uma visão utilitarista, na qual a natureza perde sua organicidade. Nesse processo de fragmentação, alguns elementos são úteis e possuem um preço, ou seja, são transformados em mercadorias e ingressam no mercado, ao passo que outros são tidos como inúteis (GUDYNAS, 2014, p. 28-27).

Não obstante a concepção da natureza como “capital” ser recente, ela é aceita em vários espaços, evidenciando essa perspectiva mercantilista (GUDYNAS, 2014, p. 28). A concepção do capital expandiu não somente para as dinâmicas sociais (capital humano, social e cultural), como também para a natureza, a qual passa a englobar os conceitos de “ativos ecológicos”, “bioprospecção” e “maximização de retornos” (GUDYNAS, 2014, p. 28). Para Eduardo Gudynas (2014, p. 28), essas não são terminologias neutras, uma vez que evidenciam uma racionalidade utilitarista e de eficiência dos retornos dos recursos (GUDYNAS, 2014, p. 28).

Essas mudanças culturais ocorridas no Renascimento, segundo Eduardo Gudynas (2014, p. 26), foram responsáveis pela intensificação do ciclo de exploração da natureza e consequentes conquistas coloniais na América Latina. Para o autor, a colonização foi impulsionada e mantida devido à obsessão pela apropriação das riquezas naturais do continente e catalogação das diversas novas espécies e seus futuros usos (GUDYNAS, 2014, p. 26).

Há situações, contudo, em que tanto essa visão da natureza enquanto bem de mercado, quanto da natureza como valor ecológico são superadas. A natureza passa a deter diversos valores para as pessoas, entre os quais se destacam os valores estéticos, históricos, culturais, religiosos e espirituais. Alguns desses atributos podem ser valorados economicamente, porém outros não, estando, inclusive, excluídos da esfera do mercado (GUDYNAS, 2014, p. 30). Desse modo, a pluralidade de valorização da natureza tem bases tanto nos saberes como nas sensibilidades, crenças e cosmovisões das pessoas (GUDYNAS, 2014, p. 30), perspectiva que será melhor trabalhada no Capítulo 6 desta pesquisa.

3.2 A compaixão pelos outros seres e o giro antropocêntrico voltado aos interesses da