Rubens Carlos Vieira
Direito
de ciência da imputação
no processo administrativo disciplinar
MESTRADO EM DIREITO
Rubens Carlos Vieira
Direito de ciência da imputação
no processo administrativo disciplinar
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de mestre em Direito do Estado, subárea de concentração em Direito Administrativo, sob a orientação do Professor Doutor. Clóvis Beznos.
Vieira. Rubens Carlos.
Direito de ciência da imputação no processo administrativo disciplinar
Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC – 2014.
152p.
Orientador: Professor Doutor Clóvis Beznos
Área: Direito do Estado
Subárea: Direito Administrativo
Banca Examinadora
__________________________________
__________________________________
Agradeço aos meus pais, Arlindo e Custódia, que nunca mediram esforços para
consolidar a educação dos filhos.
Minha profunda gratidão ao professor doutor Clóvis Beznos, pela firme e segura
orientação.
Agradeço também às professoras Sônia, Dalva e Milta, por me conduzirem nos
primeiros passos rumo ao maravilhoso mundo do conhecimento; e aos professores docentes
com quem convivi ao longo do curso. A todos eles, o meu profundo agradecimento e
admiração.
Um muito obrigado aos servidores e “concurseiros” das bibliotecas do Supremo
Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, pelo convívio fraternal durante a
elaboração deste trabalho.
Aos servidores da Corregedoria e da Diretoria de Infraestrutura Aeroportuária da
Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), órgão do qual fui titular por oito anos, pela
amizade e companheirismo.
O presente trabalho tem por objeto o estudo do direito de ciência da imputação no processo
administrativo disciplinar. Para o seu desenvolvimento, investigam-se, logo de início, o poder
disciplinar da Administração Pública, seu fundamento e natureza. Em seguida, considerando
a relevância para uma minuciosa compreensão da sistemática processualística do Direito
Disciplinar, examinam-se os princípios e garantias processuais previstos na Constituição da
República, com especial enfoque naqueles inerentes ao acusado. Na sequência, e após fixar
alguns conceitos principiológicos imprescindíveis, analisam-se os sujeitos afetados pelo
direito de ciência da imputação, sob a ótica daquele que deve fazer a imputação e daquele que
deve contrapô-la. São, nesta quadra, estudados e delimitados o conteúdo mínimo da
imputação que deve ser informada ao sujeito e o momento em que esta deve ser levada para
que se permita o seu exercício efetivo, tendo por base a realização dos princípios processuais
outrora discutidos. Por fim, coteja-se a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, com o
direito de ciência da imputação, visando averiguar a sua compatibilidade com os princípios
que devem orientar o processo administrativo disciplinar.
This work aims to study the law regarding accusation in disciplinary actions. It begins by
investigating the disciplinary powers of Public Administration, their nature and principles.
Then, due to the importance of understanding the related process systematics of the
Disciplinary Law, the procedural principles and guarantees provided in the 1988 Federal
Constitution are analyzed, with special emphasis on those inherent to the accused. After
defining some essential concepts and principles, a detailed analysis is made of those
affected by the law of accusation, from perspective of the accuser and from that of whoever
responds to the accusation. The focus then passes to studying and defining the minimum
proportion of the accusation that must be reported to the subject involved and the right
timing for making the accusation known, to ensure due and effective application of the
abovementioned procedural principles. Finally, the provisions of Federal Law no. 8,112,
dated December 11th, 1990, are compared to the law governing the right to be informed of
the accusation, in order to verify their compatibility with the principles that should guide the
administrative disciplinary action process.
Keywords: Disciplinary powers. Disciplinary action process. Awareness of accusation
rights. Due process. Right of contradiction. Full defense.
INTRODUÇÃO... 11
I O PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ... 13
1.1 TEORIA PENALISTA ... 17
1.2 TEORIA ADMINISTRATIVISTA ... 21
1.3 APLICAÇÃO DO INSTITUTO: ESTADO DA ARTE ... 23
1.4 NECESSIDADE DE APONTAR UMA DIRETRIZ NO DIREITO BRASILEIRO ... 28
1.5 FUNDAMENTO DO PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ... 30
1.5.1 A relação especial de sujeição ... 31
1.5.1.1 Origem e objetivos ... 31
1.5.1.2 Estágio atual e aplicação ao poder disciplinar ... 34
1.5.1.3 Subsistência do instituto ... 36
1.5.2 A autotutela e a organização administrativa ... 38
II O EXERCÍCIO DO PODER DISCIPLINAR: O PROCESSO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR E SUA MARCHA ... 40
2.1 INTRODUÇÃO ... 40
2.2 OBRIGATORIEDADE DE REALIZAÇÃO DO PROCESSO PARA O EXERCÍCIO
DO PODER DISCIPLINAR ... 41
2.2.1 O poder-dever da administração na deflagração da persecução disciplinar ... 41
2.2.2 Obrigatoriedade do processo para o exercício do poder disciplinar ... 45
2.3 NATUREZA JURÍDICA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR:
PROCESSO OU PROCEDIMENTO? ... 46
2.4 GARANTIAS PROCESSUAIS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988 APLICÁVEIS AO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR ... 49
2.4.1 Devido processo legal ... 50
2.4.1.1 Conceito ... 50
2.4.1.2 Evolução histórica ... 52
2.4.1.3 Devido processo legal processual e devido processo legal substancial ... 55
2.4.2 Garantia à assistência jurídica gratuita ... 59
2.4.3 Princípio do juiz natural ... 61
2.4.4.3 Duração razoável do processo administrativo disciplinar federal ... 73
III DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO ... 78
3.1 INTRODUÇÃO ... 78
3.2 CONCEITO DE “IMPUTAÇÃO” ... 82
3.3 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA IMPUTAÇÃO DISCIPLINAR E SUAS
RELAÇÕES COM O DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO ... 83
3.3.1 Introdução ... 83
3.3.2 Princípio acusatório ... 84
3.3.2.1 Separação entre órgão acusador e julgador ... 87
3.3.2.2 Não cabe condenar por fatos distintos nem pessoas distintas das dispostas na
imputação ... 88
3.3.2.2.1 Correlação subjetiva ... 89
3.3.2.2.2 Correlação objetiva ... 89
3.3.2.3 Imparcialidade do julgador ... 91
3.3.3 Princípio do contraditório ... 93
3.3.3.1 Conteúdo essencial ... 95
3.3.3.2 Necessidade de ser ouvido ... 97
3.3.4 Direito à ampla defesa ... 99
3.3.4.1 Conteúdo essencial ... 100
3.3.4.1.1 A autodefesa ou defesa material ... 100
3.3.4.1.2 A defesa técnica ou formal ... 101
3.3.4.2 Direito à produção de provas ... 102
3.4 SUJEITOS DA INFORMAÇÃO ... 103
3.5 O MOMENTO DA INFORMAÇÃO... 105
3.6 CONTEÚDO DA INFORMAÇÃO ... 107
3.6.1 Descrição fática ... 108
3.6.2 Qualificação jurídica ... 111
3.6.3 Provas ... 114
3.8.1 Evolução legislativa e jurisprudencial: da Lei 1.711/52 à Lei 8.112/90 ... 118
3.8.2 A marcha processual na Lei nº 8.112/90 ... 122
3.8.2.1 A instauração do processo e a notificação do acusado ... 122
3.8.3 A citação após a instrução processual e o direito de ciência da imputação ... 134
3.8.4 Necessidade de compatibilizar o processo administrativo federal com o direito
de ciência da imputação ... 136
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 140
INTRODUÇÃO
O poder disciplinar busca assegurar o complexo de deveres a cuja observância está
obrigado quem pertence a dada instituição ou grupo social dotado de organização com caráter
de estabilidade e permanência, sujeição esta que, correlativamente, implica que haja nessa
instituição ou corpo social órgãos dirigentes aos quais são atribuídas competências para
reprimir, mediante a aplicação de sanções, a violação daqueles deveres, aplicação que atinge o
infrator membro de uma instituição ou corpo social com reflexos na sua condição de cidadão
1.
Assim, o processo administrativo disciplinar é um instrumento coercitivo e de controle
à disposição da Administração Pública para fazer frente às condutas que atentem contra os
princípios norteadores do exercício da função pública. Ao mesmo tempo, constitui também
um conjunto de garantias para o próprio servidor público, ao marcar os limites da atividade
sancionadora da administração.
A República Federativa do Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 5 de
outubro de 1988, denominada Constituição Cidadã, se consolidou como Estado Democrático
de Direito ao determinar expressamente a aplicação do devido processo legal aos processos
administrativos (art. 5º, LV), até então aplicável somente à esfera jurisdicional.
Ademais, a liberdade, a justiça, a igualdade, o princípio da legalidade, a segurança
jurídica, a proibição de práticas arbitrárias pelo Poder Público e a responsabilidade civil do
Estado, a divisão dos poderes, a implementação e defesa dos direitos fundamentais, a sujeição
de todos os poderes à Constituição constituem, dentre outros, princípios gerais do
ordenamento jurídico que caracterizam o projeto político surgido com a redemocratização do
nosso país, transformando-o em verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Desde a promulgação daquela Carta, assiste-se em nosso país a uma evolução
doutrinária, legislativa e jurisprudencial no sentido de adequar nosso Direito Processual Civil,
Penal e Administrativo aos princípios constitucionais, abandonando-se as concepções que não
mais se coadunam com o Estado Democrático de Direito instituído.
O presente trabalho tem como objetivo analisar se essa evolução alcançou o processo
administrativo disciplinar federal, espécie do gênero processo administrativo, no que concerne
ao direito de ciência da imputação.
________________________
O direito de ciência da imputação não pode ser entendido isoladamente, sob pena de
sua efetividade e utilidade serem relativizadas, já que dito direito forma parte do conteúdo
essencial do devido processo legal e é, ademais, pressuposto indispensável para o exercício
dos direitos à ampla defesa e ao contraditório, uma vez que o acusado dificilmente pode ter
participação ativa no processo e exercer sua defesa ao longo daquele se desconhece aquilo
que se lhe imputa.
Iniciaremos por um estudo do poder disciplinar da Administração Pública, seu
fundamento e natureza, bem como sua relação com o Direito Penal e Processual Penal.
Avançaremos no estudo do processo administrativo e dos principais princípios constitucionais
a ele inerentes. Logo a seguir, analisaremos o direito de ciência da imputação, seu conteúdo
essencial e sua relação com os princípios processuais inerentes ao acusado.
No último capítulo, analisaremos a Lei Federal nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990,
o Estatuto dos servidores públicos civis da União, autarquias e fundações – na sua parte
processual, bem como a sua interpretação doutrinária e jurisprudencial –, de modo a
investigar se esse estatuto homenageia o direito de ciência da imputação e, em caso negativo,
como harmonizá-lo com a Constituição Federal.
Para terminar, serão delineadas as conclusões obtidas com este estudo.
I O PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O poder disciplinar existe em qualquer grupo social organizado, público ou privado,
com vistas a preservar a ordem interna da organização. A violação dessa disciplina gera a
infração disciplinar, e as penas aplicáveis por essa violação constituem as penas disciplinares.
Assim, segundo a doutrina majoritária, não há um monopólio judicial do poder
sancionador
2, de modo que a Administração Pública e entidades particulares ostentam
faculdades sancionadoras próprias, inclusive a disciplinar.
Como elucida Rafael Munhoz Melo,
[...] o poder punitivo estatal, portanto, pode se manifestar através das sanções penais e das sanções administrativas, as primeiras impostas no exercício de função jurisdicional, as segundas no exercício de função administrativa, é dizer, tanto a sanção penal como a administrativa são manifestações de um mesmo poder estatal, o ius puniendi. Daí se falar em unidade do poder punitivo estatal, poder que abrange tanto as sanções penais (Direito Penal) como as sanções administrativas (Direito Administrativo Sancionador).3
Em relação aos agentes públicos, esse poder sancionador se manifesta através do
poder disciplinar, que previne e castiga a prática de condutas àqueles vedadas pelo
________________________
2 O Ministro Napoleão Maia Nunes Filho, ao proferir voto vencido no julgamento do Mandado de segurança nº 27.352/DF, anotou que: “Na verdade, a permanência, no âmbito administrativo, de potestade sancionadora é sobrevivência exótica do período em que a função de julgar e punir estava inserida no âmago das funções executivas, numa época em que a expressão direitos subjetivos não tinha o alcance que hoje se lhe reconhece; como estima o eminente Professor NELSON SALDANHA, da Universidade Federal de Pernambuco, os direitos subjetivos só adquirem significado jurídico após o surgimento da ideia de controle do poder estatal, o que se fez pela via da jurisdição, permitindo-se afirmar que a noção de direitos subjetivos coincide historicamente com o surgimento do Poder Judiciário:
‘O conceito de direito subjetivo, que parece ter faltado ao vocabulário medieval, emergiu dentro de coordenadas onde se incluem o individualismo burguês e a diluição das estruturas medievais. Ele contradizia, ao menos em potencial, a onipotência do Estado; ele armava o indivíduo de uma imagem juridicamente eficaz, apta a alimentar suas pretensões, garantir sua dignidade, configurar sua qualidade autônoma. No indivíduo se encontravam prerrogativas e valores intrínsecos, que eram em latência uma área que se asseguraria a si mesma, agora, condições de afirmação institucional plena (Estado de Direito, Liberdades e Garantias, São Paulo, Sugestões Literárias S⁄A, 1980, p. 63)’.
Na doutrina estrangeira, para Eduardo García de Enterria, é inconstitucional a atribuição de poderes sancionatórios à Administração:“es evidente que estas declraciones de nuestros textos constitucionales-los que resevan los assuntos penales a los Tribunais de Justiça están aludiendo a um concepto material de pena, no puede admitirse la licitude de um fácil regateo da la imperatividad de estos textos por el argumento puramente formalista de que las sanciones que administra o define la Administración no son delito, sino unas infraciones. Esta, naturalmente, no es uma justificación, es posterius. Es um posterius para explicar precisamente la alusión de um texto de la ley que justamente por su caráter constitucional no puede tener más que um sentido perfectamente inequívoco”. Consideraciones jurídico-administrativas sobre las jurisdiciones punitivas especiales apud ROMÁN CORDERO, Cristian. Derecho Administrativo Sancionador ¿ser o no ser? he ahí el dilema, In: PANTOJA BAUZA, ROLANDO. Derecho Administrativo 120 años de cátedra.Santiago, Editorial Jurídica de Chile, 2008. p. 107.
ordenamento jurídico. Para estes agentes, o estatuto disciplinar é o conjunto de normas
jurídicas que determinam os fatos ilícitos passíveis de serem cometidos no exercício da
função pública e preveem as sanções a serem impostas pela Administração Pública.
Hely Lopes Meirelles conceitua poder disciplinar da Administração Pública como
[...] a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração. É uma supremacia especial que o Estado exerce sobre todos aqueles que se vinculam à Administração por relações de qualquer natureza, subordinando-se às normas de funcionamento do serviço ou do estabelecimento que passam a integrar definitiva ou transitoriamente.4
O poder disciplinar tem sua matriz constitucional nos artigos 5º, inciso LV e 41,
parágrafo 1º. No plano infraconstitucional, nosso objeto de estudo será o Estatuto Federal, Lei
nº 8112, de 1990, e a Lei nº 9784, de 1999
5, a ele aplicável subsidiariamente. Esses dois
diplomas legais são aplicáveis apenas aos servidores públicos civis da União, suas autarquias
e fundações, e subsidiariamente à Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº
35/79),
6que regula a responsabilidade disciplinar dos Magistrados, à Lei Orgânica do
________________________
4 Direito Administrativo Brasileiro. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 148.
5 Tendo em que a Constituição Federal outorga competência concorrente a União, Estados e Municípios para legislar sobre servidores públicos (art. 24, inciso XI), cada ente federativo pode elaborar seu próprio estatuto. 6 Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “Recurso ordinário em mandado de segurança.
Ministério Público (Lei Complementar nº 75, de 1993),
7que regula as condutas vedadas aos
Membros do Ministério Público, dentre outros.
A Administração Pública está constitucionalmente vinculada à realização do interesse
público, e o poder disciplinar é um instrumento do qual dispõe para garantir esse objetivo,
reprimindo os agentes que não cumprem com suas funções ou delas abusam em detrimento da
finalidade pública.
Desde tal perspectiva, o poder disciplinar tem um âmbito, obviamente, muito mais
reduzido que aquele conferido ao Direito Penal, já que a ordem protegida é a organização
administrativa, a relação de serviço, e o destinatário da proteção é a própria Administração
Pública, uma vez que a relação laboral de Direito Público carrega uma série de obrigações
cujo cumprimento garante o bom funcionamento da organização e dos fins aos quais ela se
presta. O poder disciplinar conferido à Administração Pública persegue a salvaguarda do seu
prestígio e dignidade, bem como a correta atuação dos seus servidores.
Nesta ordem de ideias, leciona Themistocles Brandão Cavalcanti:
[...] o direito disciplinar é parte integrante do Direito Administrativo, e regula as normas relativas às infrações dos regulamentos internos das repartições administrativas e respectivas sanções. A manutenção da ordem jurídica, as medidas de preservação contra as violações da lei, impõem ao Estado um certo número de providências de caráter, intimidativo e repressivo que obriguem, pela exemplaridade e rigor, o respeito ao direito.8
Com efeito, não se trata de uma imposição de normas de convivência social, nem da
análise de sua transgressão por qualquer cidadão, mas da observância dos deveres e
proibições do cargo, emprego ou função por parte de um agente público.
________________________
7 Neste sentido: Tribunal Regional Federal da 1ª Região: ADMINISTRATIVO. AUXÍLIO-FUNERAL. ART. 226 DA LEI 8112/90. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA AOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO.1. O auxílio funeral, nos termos da lei de regência dos servidores públicos federais, é devido à pessoa da família do servidor, assim entendida, o cônjuge, os filhos ou outras pessoas que vivam às suas custas ou constem de seus assentamentos funcionais. 2. A aplicação da Lei nº 8.112 /90 aos membros do Ministério Público da União é expressamente permitida pela Lei Complementar nº 75 /93. 3. Afastada a incidência do art. 227 da Lei nº 8.112 /90, vez que a Associação Nacional dos Procuradores da República tão-somente adiantou os valores despendidos com o funeral, tendo sido prontamente ressarcida pela esposa do "de cujus". 4. Comprovada a qualidade de cônjuge do membro do Ministério Público Federal, assim como o óbito deste, há que ser deferido o auxílio funeral à recorrida, no valor equivalente a um mês de provento, em respeito ao texto do art. 226 do normativo legal acima referenciado. 5. Apelação a que se nega provimento. Remessa oficial parcialmente provida para determinar os índices de correção monetária e juros de acordo com o entendimento desta Corte, mantendo-se a sentença em seus demais termos. 6. Sem honorários (Súmula 105 do STJ e 512 do STF). (Apelação em Mando de Segurança nº 24415).
Constitui, assim, pressuposto para a aplicação do regime disciplinar laboral que se
ostente a condição de agente público, ainda que fora das suas atividades, já que também os
agentes que se encontram aposentados e em disponibilidade podem ser disciplinarmente
responsabilizados. Ao contrário, não é passível de responsabilidade disciplinar o agente
público após sua exoneração ou término de mandato.
Nesta linha, segue trecho de julgado do Supremo Tribunal Federal:
Cabe observar que, excetuadas as hipóteses de cassação de aposentadoria ou de disponibilidade (Lei nº 8.112/90, art. 127, IV), a aplicação das demais sanções punitivas, pelo Poder Público, supõe a atualidade da investidura funcional do agente estatal em determinado cargo público.
Sem que haja, portanto, essa necessária relação de contemporaneidade entre o exercício do ofício público e a instauração de processo disciplinar, não se legitima a concreta atuação do poder disciplinar da Administração Pública, exceto se – como anteriormente referido – registradas as hipóteses fundadas no inciso IV do art. 127 da Lei nº 8.112/90. Nesse contexto, a atualidade do vínculo jurídico-administrativo revela-se pressuposto necessário à validade jurídica de eventual sanção disciplinar.9
Assim, o nosso estudo será sustentado na premissa de que o poder disciplinar é um
elemento do Direito Administrativo
10aplicável aos agentes públicos que mantêm vínculo
funcional com a Administração Pública; não se trata, portanto, de um ramo autônomo do
Direito Público.
11No item seguinte, analisaremos o fundamento do poder disciplinar da Administração
Pública.
NATUREZA DO PODER DISCIPLINAR E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO PENAL
________________________
9 Medida Cautelar em Mandado de Segurança n.º 32.335/DF, rel. Ministro Celso de Melo, DJe-198, de 07/10/2013.
10
O Direito Administrativo é o ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 49). Celso Antônio Bandeira de Mello o define como o ramo do Direito Público que disciplina o exercício da função administrativa, e os órgãos que a desempenham (Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 29). Há quem, entretanto, incorpore à definição o elemento sancionador, conceituando-o como o conjunto de normas jurídicas que se traduzem na faculdade que possuem os órgãos da Administração do Estado para tutelar seus próprios interesses ou os da comunidade, aplicando sanções aos particulares e servidores públicos, mediante um procedimento racional e justo, por infração às regras e/ou deveres jurídicos predeterminados (CARCAMO RIHETTI, Alejandro. La constitucionalidad y la necesidad del derecho administrativo sancionador correctivo en el complejo escenario económico moderno. Gaceta jurídica, 2010. p. 8.)
Em nosso ordenamento jurídico, destacam-se duas competências punitivas decorrentes de infrações administrativas: uma a cargo do Poder Judiciário e outra exercida pela Administração. A doutrina12 e a jurisprudência13 brasileira assentaram, quase que à unanimidade, que o processo administrativo disciplinar guarda independência e autonomia em relação a eventual processo civil e/ou penal instaurado a partir dos mesmos fatos e em face da mesma pessoa14. A única exceção a essa regra ocorre quando, na instância penal, for reconhecida a inexistência do fato ou que o acusado não foi seu autor15.
Contudo, questão diversa e pouco debatida no Direito nacional é a natureza do poder
disciplinar e sua relação com o Direito Penal. Neste cenário, as principais teorias se reduzem a
dois grandes grupos: a penalista e a administrativa.
As consequências jurídicas da adoção de uma ou de outra estão bem sintetizadas na
lição de Fábio Medina Osório:
[...] a mais importante e fundamental consequência da suposta unidade de ius puniendi do Estado é a aplicação de princípios comuns ao Direito Penal e ao Direito Administrativo Sancionador, reforçando-se, nesse passo, as garantias individuais.16
Examinemos as teorias.
1.1 TEORIA PENALISTA
A concepção penalista considera que as sanções disciplinares têm uma identidade
substancial com as sanções penais, pelo que se aplicam àquelas os mesmos princípios a estas
aplicáveis. As diferenças entre o Direito Penal e o Direito Disciplinar são meramente
quantitativas. O Direito Penal cuida das sanções mais graves; e o Direito Administrativo, das
mais leves.
17________________________
12 Por todos, MEIRELLES, Hely Lopes. In: Direito Administrativo Brasileiro. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 411.
13 No âmbito do Supremo Tribunal Federal confiram-se, dentre outras, as seguintes decisões: AI nº 807.190-AgR SP, AI nº 521.569-ED PE, AI nº 783.997-AgR SP. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, encontramos, dentre outros, os seguintes precedentes: MS nº 19.703-DF, MS nº 14.780-DF e MS nº 13.064-DF.
14 Esta posição doutrinária e jurisprudencial majoritária é criticada por Pierpaolo Cruz Bottini: “É comum que a absolvição de investigado na seara administrativa seja ignorada na seara penal, e vice-versa, como se cada segmento do Poder Público fosse uma unidade hermética e indevassável a valorações feitas em outros terrenos”. In: Independência das esferas administrativa e penal é mito. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 21 maio 2013.
15 Lei Federal nº 8.112/90:“Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.”
Para esta corrente doutrinária, o poder sancionador da Administração é um poder de
caráter jurisdicional, por isso não deveria ser conferido, em princípio, à Administração, mas
exclusivamente ao Juízo penal, a quem se atribui a função de julgar em um Estado de Direito.
Contudo, razões pragmáticas levaram o legislador a atribuir parte desse poder à
Administração, deixando o juízo penal de monopolizá-lo. Com efeito, este poder segue sendo
substancialmente penal, o que atrai a aplicação dos princípios informadores do Direito Penal e
Processual Penal.
A origem dessa teoria é atribuída a James Goldschmidt.
18Para este autor,
[...] crime em sentido penal será a ação declarada ilícita pela lei; ao contrário, delito administrativo será somente o descumprimento de uma obrigação positiva que o cidadão tem para com a Administração enquanto membro da sociedade e, portanto, enquanto parte desta administração.19
No Brasil, a discussão não é nova. Para Nelson Hungria, um dos autores do
anteprojeto do Código Penal de 1940, naquilo que se refere ao ponto de vista de punição, não
há por que distinguir entre a esfera administrativa e a esfera penal. Inexiste,
de jure conditio
ou de lege ferenda
, qualquer fundamento plausível para que não vigorem, num e noutro caso,
os mesmos princípios, quer relativamente à imputabilidade, quer a respeito da culpabilidade.
20Aponta Themistocles Brandão Cavalcanti, valendo-se de lições de autores
estrangeiros, a tendência de adoção da teoria penalista:
Com o Direito Penal também tem o Direito Disciplinar relações muito íntimas, porque o Direito Disciplinar é constituído essencialmente por um regime de sanções e, por isso mesmo, sofre influência direta, imediata, do Direito Penal. Este capítulo das relações entre Direito Disciplinar e o Direito Penal é bastante interessante pela multiplicidade das doutrinas que se entrechocam.
________________________
18 O autor espanhol Alejandro Nieto Garcia (Derecho Administrativo Sancionador. 4. edición. Espanha: Tecnos, 2004. p. 175) é enfático ao afirmar que “la potestad administrativa sancionadora, al igual que la potestade de los Jueces y Tribunales, forma parte de um genérico ‘is puniendi’ del Estado, que es único aunque se subdivide em estas dos manifestaciones”.
[...]
O Direito Penal procura absorver com seus princípios, sob a influência, aliás, de ideias autoritárias, outras disciplinas jurídicas, especialmente o Direito Administrativo e o Disciplinar, procurando uniformizar o regime de sanções e penetrando na vida administrativa, no campo das contravenções e das infrações administrativas, de um modo geral.
Celso Antônio Bandeira de Mello ensina não haver distinção substancial entre
infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais:
Reconhece-se a natureza administrativa de uma infração pela natureza da sanção que lhe corresponde, e se reconhece a natureza da sanção pela autoridade competente para impô-la. Não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais. O que as aparta é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a sanção, conforme correto e claríssimo ensinamento, que boamente sufragamos, de Heraldo Garcia Vitta. (Grifos nossos).21
Marçal Justen Filho adere a essa teoria ao afirmar que “o regime jurídico do Direito
Administrativo punitivo se vincula ao Direito Penal. Por isso, todos os princípios
fundamentais penalísticos são albergados pelo Direito Administrativo punitivo”.
22José dos Santos Carvalho Filho também enfatiza a aplicação de institutos do Direito
Penal e do Direito Processual Penal ao Direito Administrativo Sancionador, ao afirmar que
“
como se trata de processo acusatório, deve reconhecer-se a incidência, por analogia, de
alguns axiomas consagrados no âmbito do Direito Penal e Processual Penal
”.
23________________________
21 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 854.
22 Curso de Direito Administrativo. 6. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2010. Em abono à sua tese, o autor cita precedente do Superior Tribunal de Justiça, relatado pelo Ministro Napoleão Maia Nunes Filho. Eis a Ementa da decisão: “DIREITO ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE SANCIONATÓRIA OU DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO PROCESSO PENAL COMUM. ARTS. 615, § 1o. E 664, PARÁG. ÚNICO DO CPP. NULIDADE DE DECISÃO PUNITIVA EM RAZÃO DE VOTO DÚPLICE DE COMPONENTE DE COLEGIADO. RECURSO PROVIDO.
1.Consoante precisas lições de eminentes doutrinadores e processualistas modernos, à atividade sancionatória ou disciplinar da Administração Pública se aplicam os princípios, garantias e normas que regem o Processo Penal comum, em respeito aos valores de proteção e defesa das liberdades individuais e da dignidade da pessoa humana, que se plasmaram no campo daquela disciplina.
2. Obediência aos postulados do Processo Penal comum; prevalece, por ser mais benéfico ao indiciado, o resultado de julgamento que, ainda que por empate, cominou-lhe a sanção de suspensão por 90 dias, excluindo-se o voto presidencial de deexcluindo-sempate que lhe atribuiu a pena de demissão, porquanto o voto deexcluindo-sempatador é de ser desconsiderado.
4.Recurso a que se dá provimento, para considerar aplicada ao Servidor Policial Civil, no âmbito administrativo, a sanção suspensiva de 90 dias, por aplicação analógica dos arts. 615, § 1o. e 664, parág. único do CPP, inobstante o douto parecer ministerial em sentido contrário”.
Para Egberto Maia Luz, a corrente penalista é a que está com a melhor doutrina; eis
que se o Direito Administrativo Disciplinar possuiu mesmo alguma afinidade, esta define-se
perfeitamente com a identidade do direito de punir, que somente se encontra em duas esferas:
na criminal e na administrativa.
24Nesta linha de entendimento, manifestou-se o Ministro do Superior Tribunal de Justiça
Napoleão Maia Nunes Filho:
Afirmo, mais uma vez, no processo disciplinar atuam todos os institutos do processo penal contemporâneo: presunção de inocência, in dubio pro reo, bagatela, proibição de prova ilícita, direito ao silêncio, enfim, todo aquele conjunto de proteções criadas pela civilização e pela cultura em favor dos acusados de crimes.25
Na sequência, citando lições doutrinárias de sua autoria, prossegue a afirmar que
Não há motivo para se recusar identidade ontológica entre os ilícitos administrativo e penal, devendo ser reconhecido que é apenas dogmática essa distinção, insuficiente para servir de base a tratamentos repressivos distintos; mas é evidente que se ao ilícito administrativo não for atribuída concomitantemente a qualidade de crime (art. 1o. da LICP), então não se haverá de cogitar de identidade.
Em síntese, o dogma da separação das instâncias – ainda que se sustente a sua permanência – não pode situar-se acima dos princípios que a Carta Magna acolheu, dentre eles, no campo do Direito Sancionador, o que assegura a presunção de inocência, de modo que o poder punitivo estatal, no domínio administrativo, não está imune à sua força; se o réu obtém absolvição criminal, qualquer que seja a razão da absolvição, sobre ele não há de incidir qualquer sanção decorrente do fato objeto do processo criminal, salvo se – repetindo-se o óbvio – remanescer resíduo administrativo passível de punição (Súmula 18 do STF).26
Por ter a mesma natureza jurídica, existe tão somente uma separação formal que se
deve a motivos históricos, políticos ou simplesmente de eficiência. Portanto, devem os
princípios norteadores do Direito Penal ser aplicados às infrações administrativas, posto que
estamos diante do Direito Penal.
27Essa teoria não é isenta de críticas. Critica-a Fábio Medina Osório:
Não parece razoável distinguir normas penais de normas administrativas a partir dos valores tutelados ou da imoralidade inerente a umas ou outras infrações. Valores éticos podem e devem ser protegidos pelo Direito Administrativo. Inexiste óbice nesse sentido. Basta que a presença reguladora ou sancionadora do Estado seja reclamada pela realidade social. E o Direito Penal, a seu turno, está cada vez mais pragmático, tutelando interesses difusos e coletivos, muito mais centrado na defesa
________________________
24 Direito Administrativo Disciplinar: teoria e prática. 4. ed. rev., atual. e ampl. Bauru, SP: EDIPRO, 2002, p. 74. 25 Mandado de Segurança nº 17.515\DF. Voto vencido.
26 Mandado de Segurança nº 17.515\DF. Voto vencido.
de direitos constitucionais do que propriamente na justificação moral de seus preceitos proibitivos.28
1.2 TEORIA ADMINISTRATIVISTA
Em oposição à corrente penalista, situa-se a administrativista que considera que as
sanções disciplinares têm uma identidade própria que as singulariza em relação às sanções
penais.
29Para esta corrente doutrinária, as sanções administrativas constituem uma figura com
perfis próprios. Não existe uma identidade, mas uma autêntica diversidade substancial entre
uma e outra instituição, ambas a serviço de finalidades diferentes e que têm uma distinta razão
de ser. Com efeito, para o nosso estudo, as sanções administrativas estariam sujeitas a
princípios próprios e específicos, que não coincidem com os penais, podendo até estar em
contradição com eles
30.
Para os adeptos dessa corrente, o poder disciplinar resulta de uma relação de
supremacia especial que se estabelece entre a Administração e certas categorias de
personas
que justifica a atribuição à Administração de um poder disciplinar próprio – administrativo e
não penal – cujo fundamento é, assim, diferente do poder punitivo do Estado.
Para afastar o poder disciplinar dos princípios do Direito Penal, os adeptos dessa
concepção focam no caráter ético do poder disciplinar. Assim, estaria o poder disciplinar
vocacionado mais na correção do que na repressão, enquanto o Direito Penal possui caráter
eminentemente repressivo. A referência à ética serve também para descrever os objetivos
perseguidos por dito ordenamento: o bom funcionamento do serviço público e a preservação
da honra e dignidade corporativa. Consequentemente, a diferença para o Direito Penal é a de
que o poder disciplinar não presta tanta atenção à perturbação da ordem social ocasionada
pela conduta.
31Portanto, para esta corrente doutrinária e jurisprudencial
32, seja por razões
quantitativas – intensidade da lesão sobre os bens jurídicos tutelados –, seja por razões
________________________
28 Direito Administrativo Sancionador. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 161. 29
RICÓN, Jose Suay. Sanciones Administrativas. Bolonia: Del Real Colegio de Espana, 1998, p. 34. 30 RICÓN, Jose Suay. Sanciones Administrativas. Bolonia: Del Real Colegio de Espana, 1998, p. 34.
31 Neste sentido: JALVO, Belen Marina. El Regimen Disciplinario de los funcionarios públicos. 2. ed. Madrid: Lex Nova, 2001, p. 91.
qualitativas – distintos bens jurídicos que se tutelam, pelos sujeitos que podem realizá-las ou
pelo ordenamento infringido –, não cabe pretender uma mesma natureza para as sanções
administrativas e penais. As sanções administrativas têm natureza e fundamento distintos das
penais.
Esta teoria também não é imune a críticas da doutrina. Escreve Belén Marina Jalvo:
33Não é possível sustentar que o Direito Disciplinar tem um significado predominantemente ético, em virtude do qual o principal objetivo de salvaguarda do prestigio e da dignidade corporativa transfira para um segundo plano o fim de restabelecimento da ordem violada, bem como a consideração de danos ou perigo experimentada por direitos protegidos.
Em primeiro lugar, não cabe atribuir ao Direito Disciplinar fins de proteção corporativa. Outra coisa é que o Direito Disciplinar pode sancionar condutas que firam seriamente a dignidade ou o prestígio dos funcionários da Administração. Mas
________________________
cualitativo, la infracciones administrativas y las penales, diferencia que se pude estabelecer em uma conjunción de elementos, y asi se pueden distinguir: 1) em razón al distinto ordenamento infringido; 2) junto a la vuneración del ordenamento administrativo, la infracción se manifiesta el contiene uma lesión de interés, cuyo cuidado se atribuye y compete a la Administración, em la infracion penal se lesionan los derechos subjetivos del individuo, de la coletividade, del Estado e incluso puede afectar a interesses administrativos del próprio Estado; 3) la diferencia em cuanto a la imputabilidade, sólo personas físicas para las infracciones penales, y para las administrativas tanto pueden ser personas físicas como jurídicas.”
isso não impede de admitir que as sanções disciplinares, como as penas, em maior ou menor medida perseguem fins de prevenção e repressão. Da mesma forma, por exigência do princípio da proporcionalidade, o prejuízo sofrido pelos bens jurídicos protegidos pelo Direito Disciplinar é um elemento fundamental na determinação da gravidade da infracção e da sanção correspondente.
É óbvio que a garantia de bom funcionamento da organização administrativa depende da funcionalidade do Direito Disciplinar, que tem de velar pela estrita observância dos deveres funcionais, sancionando condutas que – seja pelo grau de culpa exigido ou pela instituição do ataque ao bem jurídico concreto - não são nem podem ser suscetíveis a punição criminal. No entanto, isso não autoriza sustentar que a responsabilidade disciplinar pode ser objeto de avaliação e reprovação moral. A contundência com que, à primeira vista, foram formuladas as teorias sobre a diversidade essencial de ambos os ordenamentos, não consegue esconder a parcialidade e o apriorismo das abordagens que estão nas suas bases. As conclusões não foram derivadas de uma comparação detalhada das duas ordens, mas da mera contraposição isolada de alguns dos seus elementos. Além disso, em alguns casos, a diversidade essencial dentre Direito Penal e Direito Disciplinar foi feita para ficar no simples fato da diferença de regimes jurídicos, sem levar em conta que a realidade é suscetível de mudanças. Atendidas estas considerações, resulta evidente a inconsistência de algumas das diferenças apontadas. Por um lado, é inegável que o Direito Disciplinar protege bens jurídicos, como o resto do Direito Administrativo Sancionador, embora a sua determinação pode ser mais complexa aqui. Logicamente, frente ao caráter fragmentário do Direito Penal, o Direito Disciplinar pode reagir a qualquer fato suscetível de alterar o bom andamento do serviço, punindo, em consequência, ataques mais brandos a bens jurídicos ou interesses menos relevantes e mais difusos. Por outro lado, as sanções disciplinares perseguem tem os mesmos fins que as penas: intimidação, prevenção, repreensão e correção. Sem prejuízo das particularidades nada insignificantes de cada um destes ordenamentos, é necessário destacar que, em geral, ambos constituem manifestações repressivas, seus ilícitos e sanções respondem basicamente a um mesmo esquema. Nada obsta, em princípio, que os princípios de Direito Penal contribuam para mitigar as deficiências do Direito Disciplinar.34
1.3 APLICAÇÃO DO INSTITUTO: ESTADO DA ARTE
Na Europa, a concepção administrativista vem sendo abandonada em favor da
concepção penalista no sentido da identidade substancial entre o ilícito penal e o disciplinar,
entendendo-se que o
jus puniendi
do Estado é único e, portanto, deve ser regido pelos
princípios do Direito Penal e Processual Penal.
35A aplicação dos princípios do Direito Penal e processo penal ao Direito Sancionador,
inclusive o Disciplinar, vem sendo progressivamente adotada também pelo Tribunal Europeu
________________________
34 Também Jose Suay Ricón critica a teoria administrativista, sendo a favor da tese penalista. Potestad disciplinaria. (Potestad disciplinaria. Libro homenaje al professor José Luís Vilar Polosí. Civitas. 1989, p. 1325).
de Direitos Humanos, desde o julgamento do caso Ozturk
36, quando incluiu dentro dos
conceitos de “infração” e “sanção penal” também as infrações e sanções de caráter
administrativo, partindo de um de conceito substantivo da matéria e não considerando
relevante a denominação da legislação na qual se encontra.
37O Tribunal Constitucional Espanhol navega no mesmo sentido, conforme se lê na
sentença de 18 de junho de 1981:
38Os princípios inspiradores de ordem penal são aplicáveis, com certas “matices”, ao Direito Administrativo Sancionador, dado que ambos são manifestações do ordenamento punitivo do Estado, tal como se refere a Constituição (Art. 25, princípio da legalidade) e a reiterada jurisprudência do Tribunal Supremo.39
Contudo, Fábio Medina Osório observa que
[...] a proclamação enfática, tanto pelo Tribunal Supremo como pelo Tribunal Constitucional espanhóis, da suposta unidade da pretensão punitiva do Estado, sofre críticas, eis que tais decisões padeceriam de um grave defeito, qual seja, a contradição entre o discurso retórico e a realidade de seus julgados. De fato, observa-se que, na maioria, ou mesmo na totalidade dos julgamentos, as altas Cortes espanholas sustentam a aplicação de uns princípios penais ao Direito Administrativo Sancionador, porém sempre com ‘matizes’, a tal ponto que o fundamental resultaria
________________________
36 “El TEDH hubo de enfrentarse para resolver el caso com la custión central que el Derecho Administrativo Sancionador tiene planteada em la atualidade: la de natureza e princípios generales de las sanciones administrativas. Y, cogiendo diretamente el ‘toro por los cuerrnos’, sin ambiguedades e ningún tipo, como debe hacerse, y tras um pormenorizado análisis de la cuestión, terminó decantándose clara y rotundamente por lá ‘opción penalista’, rechazando em consequência, las teorias del Derecho penal administrativo (invocadas por el Gobierno alemán de manera expressa) y cualescuiera otras fundadas em la existência de uma diversidade de signo cualitativo entre las infracciones administrativas e penales. El TEDH há hecho suya abiertamente las tesis de que la regulacion de las sanciones administrativas há de estar inspirada em los princípios próprios e característicos del Derecho penal, y la ha generalizado a escala europea”. (RICÓN, Jose Suay. Sanciones Administrativas. Bolonia: Del Colegio de Espana, 1998, p. 195 e ss.)
37 Neste sentido é a lição de Ana Carolina Oliveira: “O paradigma de reconhecimento empírico dessa proximidade entre as duas áreas é a Sentença do TEDH (Tribunal Europeu de Direitos Humanos), de 21 de fevereiro de 1984, no caso Oztürk, que assenta a interpretação repetida abundantemente pela doutrina administrativista, que o direito administrativo sancionador deve ser entendido como um autêntico subsistema penal, ou parapenal.” (OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Hassemer e o Direito Penal brasileiro: direito de intervenção, sanção penal e administrativa. São Paulo: IBCRIM, 2013, p. 143-145).
38
Texto original: “Los princípios inspiradores del orden penal son de aplicación, com ciertos matices, al derecho administrativo sancionador, dado que ambos son manifestaciones del ordenamento punitivo del Estado, tal como refleja la Constituición (art. 25, principio de legalidade) y mui reiterada jurisprudência del Tribunal Supremo.”
Esta sentença é comentada por Eduardo García de Enterría, no artigo “La incidência de la Constituicón sobre la potestade Sancionadora de la Administración: importantes sentencias del Tribunal Constitucional, R.E.D.A, 29/1981, p. 362 e ss. Para este autor, “Los matices permiten adaptaciones funcionales, no derrogaciones substanciales.” p. 364.
ser conceituar e compreender adequadamente esses ‘matizes’, essas diferenças entre um e outro regime jurídico.
E arremata afirmando que,
Desde logo, emerge da analise da jurisprudência mencionada uma inequívoca conclusão: a unidade de pretensão punitiva do Estado é uma frágil construção teórica, que se situa no campo retórico e não no mundo prático das concretas relações sociais submetidas ao crivo dos julgadores.
Entretanto, analisando essas decisões das Cortes Espanholas, José Suay Ricón afirma
que os princípios de ordem penal são aplicáveis na ordem administrativa sancionadora.
40O autor Espanhol Alejandro Nieto é taxativo quanto à tendência espanhola e europeia:
[...] hoje já não se discute “se” os princípios penais devem ser aplicados ao procedimento administrativo sancionador, mas sim quais princípios e em que amplitude, uma vez que se reconhece a contribuição garantista dos princípios penais.41
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
42parece trilhar o mesmo
caminho. Ao apreciar o caso AGUIRRE ROCA, REY TERRY e REVOREDO MARSANO
versus
PERU, a CIDH foi contundente ao afirmar que as garantias insertas no artigo 8.2 da
Convenção Americana de Direitos Humanos são de aplicação a todo processo, incluindo o
sancionador. Ainda que a norma em comento seja denominada “garantias judiciais”, deve ser
aplicada a qualquer instância processual, pois em todas elas o indivíduo tem o direito ao
devido processo legal.
43________________________
40 Diz este autor: “Aqui es menester hacer uma puntualizalización: la Constituición no obliga a incorporar a este Derecho todos y cada uno de los princípios específicos del orden penal. Como bien disse el Tribunal Constitucional: ‘Los princípios inspiradores del orden penal son de aplicación, com certos matices, al Derecho Administrativo Sancionador’. Caben, por tanto, desviaciones al modo penal.” (El Derecho Administrativo sancionador: perspectivas de reforma. Revista de Administração Pública, n. 109, 1986, p. 213.)
41 NIETO GARCIA, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. Madrid: Tecnos, 2012, p. 146.
42 A Corte Interamericana de Direitos do Homem (ou de direitos humanos) é um órgão judicial internacional criado pela Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica – e foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. A doutrina não chegou a um consenso sobre o seu grau hierárquico no direito interno. Há quem afirme que, tendo em conta o disposto no § 2º do artigo 5º, da Constituição Federal, tem status constitucional. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, após o julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, consolidou sua jurisprudência no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, ou seja, estão abaixo da Constituição, mas acima das leis.
A CIDH foi ainda mais incisiva ao apreciar o caso BAENA RICARDO e OUTROS
(270 TRABAJADORES
versus
PANAMÁ), em 2 de fevereiro de 2001, quando declarou que
as garantias previstas nos artigos 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos não
são de aplicação imperativa somente aos processos penais, mas, ao contrário, são plenamente
aplicáveis a qualquer processo administrativo sancionador. Sua finalidade é permitir o
exercício pleno do direito de defesa do cidadão ante qualquer tipo de ato do Estado que possa
afetá-lo. Isso significa dizer que qualquer atuação ou omissão dos órgãos estatais dentro de
um processo, seja administrativo sancionatório ou jurisdicional, deve respeitar o devido
processo legal.
44Na jurisprudência brasileira, não é possível apontar uma tendência, uma vez que a
questão é pouco debatida. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a questão veio à baila no
julgamento da medida cautelar no mandado de segurança nº 25.647, impetrado pelo então
Deputado Federal José Dirceu de Oliveira e Silva contra ato emanado do Presidente do
Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, no qual uma das causas
de pedir, e que interessa para o nosso estudo, era a nulidade do processo pela inversão da
ordem de oitiva das testemunhas. Requeria o impetrante que fosse reconhecido o direito de
serem ouvidas as testemunhas de defesa somente após a inquirição das de acusação, conforme
________________________
concesión de las garantias mínimas del debido proceso a todas las personas que se encuentran sujetas a su jurisdicción, bajo las exigências establecidas en la Convención.
69. Si bien el artículo 8 de la Convención Americana se titula “Garantías Judiciales”, su aplicación no se limita a los recursos judiciales en sentido estricto, “sino el conjunto de requisitos que deben observarse en las instancias procesales” a efecto de que las personas puedan defenderse adecuadamente ante cualquier tipo de acto emanado del Estado que pueda afectar sus derechos.
70. Ya la Corte ha dejado establecido que a pesar de que el citadoartículo no especifica garantías mínimas en materias que conciernen a la determinación de los derechos y obligaciones de orden civil, laboral, fiscal o de cualquier otro carácter, el elenco de garantías mínimas establecido en el numeral 2 del mismo precepto se aplica también a esos órdenes y, por ende, en esse tipo de materias el individuo tiene también el derecho, em general, al debido proceso que se aplica en materia penal”.
prevê o Código de Processo Penal, uma vez que o regimento interno do Conselho de Ética e
Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados era omisso neste ponto.
Naquela assentada, afirmou o então Ministro Carlos Brito, Relator, não identificar
tanta proximidade entre o processo político-parlamentar e o processo judicial propriamente
dito, principalmente o de índole penal, pois cada qual dos processos tem sua ontologia.
Discordando desta posição, afirmou o Ministro Gilmar Mendes:
Gostaria de aqui registrar, desde logo a minha dissidência com Sua Excelência quando tenta trazer ou propor uma ontologia diferenciada entre estes processos, especialmente no que diz respeito ao contraditório e a ampla defesa. Tão grave quanto à eventual sentença penal é a sentença de condenação por perda de mandato, como perda de direitos políticos ou, às vezes, até mais grave, ainda que as causas, as motivações sejam diferentes.
Embora tenha o Tribunal concedido em parte a medida liminar pleiteada, nos termos
propostos no voto do Ministro Cezar Peluso, tão somente para que, do relatório final do
Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, fosse suprimido o depoimento da testemunha de
acusação ouvida após as testemunhas de defesa, bem como todas as referências àquele
depoimento, não é possível afirmar com segurança que há uma tendência da Corte Suprema
de aplicar o Código de Processo Penal aos processos disciplinares.
45Dois órgãos de caráter administrativo, entretanto, adotam a teoria penalista: o
Conselho da Justiça Federal, no seu Manual de Processo Administrativo Disciplinar, o qual
anotou que Direito Disciplinar guarda relação com o Direito Penal, sendo então aplicáveis as
regras do Direito Penal e do Direito Processual Penal subsidiariamente ao processo
administrativo disciplinar e à apuração de sanções disciplinares
46; e o Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil, por expressa determinação do artigo 68 do Estatuto da
Advocacia, Lei nº 8906, de 4 de julho de 1994, o qual dispõe que “
salvo disposição em
contrário, aplicam-se subsidiariamente ao processo disciplinar as regras da legislação
processual penal comum e, aos demais processos, as regras gerais do procedimento
administrativo comum e da legislação processual civil, nessa ordem”
.
________________________
45 O Ministro Marco Aurélio, adotando posição minoritária, concedeu a medida liminar para determinar a suspensão do processo e determinar a reinquirição de todas as testemunhas de defesa.
1.4 NECESSIDADE DE APONTAR UMA DIRETRIZ NO DIREITO BRASILEIRO
Entre nós, a importância do tema reside no fato de os processos disciplinares
tramitarem com um alto grau de informalidade. O processo administrativo disciplinar federal,
regulado pela Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e objeto de nosso estudo nos
capítulos seguintes, dispõe de poucas regras de instrução processual, permitindo-se ao
julgador administrativo, segundo sua perspectiva pessoal, o preenchimento das lacunas ora
pelo Direito Processual Penal, ora pelo Direito Processual Civil, ou, não raro, pelo princípio
da informalidade moderada
47, afetando o direito fundamental ao trabalho e à condição de
cidadão ao retirar do sujeito a capacidade eleitoral passiva.
Parece-nos que o Brasil vive o mesmo dilema da Espanha antes da Constituição de
1978, quando não se tinha clareza de quais princípios se aplicava ao Direito Administrativo
Disciplinar, até que, em 1972, por meio das sentenças de 2 e 5 de março, o Tribunal
Constitucional daquele país colocou um ponto final na discussão, afirmando que a
inexistência de disposições normativas claras e expressas no âmbito do Direito
Administrativo Sancionador não pode ser entendida como uma habilitação “em branco” para
a Administração, para que esta supra o vazio da maneira que lhe pareça mais oportuna, mas
como uma remissão tácita aos princípios próprios e característicos do Direito Penal.
Para Suay Rincón, trata-se de declaração de extraordinário alcance que fixou as bases
para a modernização desse setor do ordenamento e que, nos anos sucessivos, o Tribunal
Supremo repetiu à saciedade.
48Na Constituição de 1978 daquele país, foi prevista expressamente a aplicação dos
princípios do Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador. Nessa ordem de ideias,
sem defender a autonomia do Direito Disciplinar ou negar a autonomia das instâncias penal,
civil e administrativa, entendemos que o estabelecimento de acerca de quais princípios deve a
Administração Pública exercer seu poder disciplinar é, sem dúvida, uma das necessidades
mais urgentes, pelas seguintes razões:
a) o crescimento dos órgãos destinados à apuração de penalidades disciplinares,
notadamente com a criação do Sistema de Correição do Poder Executivo Federal
49, bem como
________________________
47 Odete Medauar explicita que esse princípio “se traduz na exigência de interpretação flexível e razoável quanto a formas, para evitar que estas sejam vistas como um fim em si mesmas, desligadas das verdadeiras finalidades do processo”. (MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 176.)
grande número de pessoas punidas com a pena máxima: demissão e cassação de
aposentadoria;
50b) a atuação da administração deve ser necessariamente conforme o Direito, incluído
por certo o exercício do poder disciplinar, e para isso é mister que exista claridade ao menos
em torno dos princípios sobre os quais deve pautar seu exercício, sob pena de se delegar ao
administrador poderes além daqueles que lhe outorgara a Constituição Federal;
c) o agente público sujeito a um processo disciplinar é digno, e por isso deve ser
respeitado pela Administração ao exercer seus poderes disciplinares – por mais necessários
que estes sejam –, e por isso é uma necessidade de primeira ordem conformar seu exercício a
princípios claros, uniformes e garantistas;
d) a inexistência de princípios uniformes permite que distintos órgãos administrativos,
inclusive da mesma pessoa política, possam decidir de forma diferente diante de casos
idênticos, afetando o princípio da igualdade;
e) do mesmo modo, a ausência de princípios claros para o exercício do poder
disciplinar permite que entre quem é objeto, ao mesmo tempo, de uma persecução judicial –
na qual está amparado por garantias claramente delineadas – e uma disciplinar – na qual
impera o informalismo e não existe a mesma claridade quanto a suas garantias, ainda que
________________________
49 O Sistema de Correição do Poder Executivo Federal foi criado pelo Decreto nº 5.480, de 30 de junho de 2005, e constitui-se de unidades voltadas às atividades de prevenção e apuração de irregularidades disciplinares, desenvolvidas de forma coordenada e harmônica. A Controladoria-Geral da União (CGU) integra o referido sistema na condição de órgão central. Há, ainda, as unidades setoriais, que atuam junto aos Ministérios e são vinculadas técnica e hierarquicamente ao órgão central; as seccionais, que atuam e fazem parte dos órgãos que compõem a estrutura dos Ministérios e suas entidades vinculadas (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista), com supervisão técnica das respectivas unidades setoriais; e a Comissão de Coordenação de Correição, instância colegiada com funções consultivas, cujo objetivo de atuação é o fomento da integração das diversas unidades, bem como a uniformização de entendimentos adotados no âmbito do Sistema de Correição. Nesse sentido, a atividade de correição tem atuação preventiva e repressiva. Preventivamente, às unidades da Corregedoria-Geral da União compete orientar os órgãos e 13 entidades supervisionados – não só em questões pontuais, como também por meio de ações de capacitação na área correicional –, e realizar inspeções nas unidades sob sua ingerência – o que permite visualizar, de um modo geral, a qualidade dos trabalhos disciplinares na unidade inspecionada e as estruturas disponíveis (física e de recursos humanos). Repressivamente, a Corregedoria-Geral da União realiza atividades ligadas à apuração de possíveis irregularidades disciplinares, cometidas por servidores e empregados públicos federais, e à aplicação das devidas penalidades. Ademais, ao órgão central compete padronizar, normatizar e aprimorar procedimentos atinentes à atividade de correição, por meio da edição de enunciados e instruções; gerir e exercer o controle técnico das ações desempenhadas pelas unidades integrantes do Sistema, com a avaliação dos trabalhos e propositura de medidas a fim de inibir e reprimir condutas irregulares praticadas por servidores e empregados públicos federais em detrimento do patrimônio público.A CGU também apresenta competência para instauração de procedimentos disciplinares em situações de inexistência de condições objetivas para sua realização no órgão ou entidade de origem, da complexidade e relevância da matéria, da autoridade envolvida e da participação de servidores de mais um órgão ou entidade.
pelos mesmos fatos – venha a ser condenado nesta e absolvido naquela por insuficiência de
provas, o que é constitucionalmente inaceitável;
f) a pena aplicada no processo disciplinar pode ser mais gravosa do que aquela
aplicada no âmbito judicial. Basta imaginar o servidor público processado por improbidade
administrativa pelos mesmos fatos:é possível que seja condenado no âmbito judicial, por
exemplo, à pena de multa e, no âmbito administrativo, à demissão a bem do serviço público, o
que o impede, para sempre, de retornar ao servido público federal.
511.5 FUNDAMENTO DO PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Questão diferente da natureza do poder disciplinar - idêntica em todo poder punitivo
do Estado – é a relativa a seu fundamento. Para alguns, esse fundamento reside numa relação
especial de sujeição
52que se estabelece entre a Administração e o agente público, o que
________________________
51 Lei nº 8112/90: Art. 137. Parágrafo único. “Não poderá retornar ao serviço público federal o servidor que for demitido ou destituído do cargo em comissão por infringência do art. 132, incisos I, IV, VIII, X e XI”. Trata-se de pena de caráter perpetuo, vedada pelo artigo 5º, inciso XLVII, alínea “b” da Constituição Federal. A matéria já foi levada ao Supremo Tribunal Federal por meio da ADI nº 2975, ajuizada pelo Procurador Geral da República, mas ainda não há julgamento de mérito nem medida liminar deferida. Contudo, ao apreciar o RE nº 154134/SP, o STF afastou a incidência de norma semelhante, quanto à pena de inabilitação permanente para os cargos de administração ou gerência de instituições financeiras impostas dos então recorridos: “DIREITO CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. PENA DE INABILITAÇÃO PERMANENTE PARA O EXERCÍCIO DE CARGOS DE ADMINISTRAÇÃO OU GERÊNCIA DE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. INADMISSIBILIDADE: ART. 5º, XLVI, e, XLVII, b, E § 2, DA C.F. REPRESENTAÇÃO DA UNIÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO: LEGITIMIDADE PARA INTERPOSIÇÃO DO R.E. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. À época da interposição do R.E., o Ministério Público federal ainda representava a União em Juízo e nos Tribunais. Ademais, em se tratando de Mandado de Segurança, o Ministério Público oficia no processo (art. 10 da Lei nº 1.533, de 31.12.51), e poderia recorrer, até, como "custos legis". Rejeita-se, pois, a preliminar suscitada nas contra-razões, no sentido de que lhe faltaria legitimidade para a interposição. 2. No mérito, é de se manter o aresto, no ponto em que afastou o caráter permanente da pena de inabilitação imposta aos impetrantes, ora recorridos, em face do que dispõem o art. 5 , XLVI, e, XLVII, b, e § 2 da C.F. 3. Não é caso, porém, de se anular a imposição de qualquer sanção, como resulta dos termos do pedido inicial e do próprio julgado que assim o deferiu. 4. Na verdade, o Mandado de Segurança é de ser deferido, apenas para se afastar o caráter permanente da pena de inabilitação, devendo, então, o Conselho Monetário Nacional prosseguir no julgamento do pedido de revisão, convertendo-a em inabilitação temporária ou noutra, menos grave, que lhe parecer adequada. 5. Nesses termos, o R.E. é conhecido, em parte, e, nessa parte, provido.” (Grifos nossos).