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2.4 GARANTIAS PROCESSUAIS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

2.4.1 Devido processo legal

2.4.1.2 Evolução histórica

O devido processo legal é fruto de uma evolução histórica do sistema da Common

Law. Aponta a doutrina dominante que suas origens estariam na Carta Magna inglesa de

1215, com a denominação law of the land.

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Esta tem seu nascimento devido ao pacto

firmado entre o Rei João Sem Terra e os Barões Normandos, no qual se comprometeram a

respeitar uma série de direitos e garantias processuais.

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Mais tarde, essa garantia foi reconhecida por outros instrumentos normativos do

Direito Anglo-saxão, pela Petição de Direitos do Rei Juan Carlos I de 1628, o Bill of Rigths

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111 Contudo, relata Ademar Ferreira Maciel que a expressão due process of law remonta a mais de cinco séculos antes da era cristã. Diz este autor que “na Antígona de Sófocles, peça estreada em Atenas, presumidamente no

ano de 441A.C., já se invocavam determinados princípios morais e religiosos, não escritos, que podiam ser invocados à tirania das leis escritas. Édipo [...], quando descobriu que seus quatro filhos eram filhos dele com sua própria mãe, num gesto de autopunição, vazou seus olhos e passou a vaguear pela Grécia, guiado pela filha Antígona. Com sua morte, seus dois filhos, vale dizer, irmãos de Antígona, passaram a disputar o poder político em Tebas. Numa batalha, um irmão matou o outro, e um tio deles, Creonte, assumiu o governo. O primeiro decreto de Creonte foi proibir que dessesepultura a um dos irmãos mortos, Polinices, considerado traidor da pátria. A pena pela desobediência seria a morte do infrator. Antígona, então, após invocar as leis não escritas, que se perdiam na perspectiva dos tempos, retrucou que acima das leis do Estado, das leis escritas, existiam as leis não-escritas, de cunho universal, que deviam prevalecer sobre as leis escritas, pois se calcavam na natureza do homem. Pois bem, essa revolta da Antígona é apontada como sendo o germe do Direito natural, do qual o direito de resistência seria uma variante.” (MACIEL, Adhemar Ferreira. O devido processo legal e a Constituição brasileira de 1988: Doutrina e Jurisprudência. Revista de Julgados do Tribunal

de Alçada de Minas Gerais, v. 23, n. 68, p. 33-41, 1997.)

112 Para Miguel Satrústegui GIL-DELGADO, “En definitiva, lo verdaderamente sobresaliente de la Magna Carta, lo que hace de ella una Ley diferente de cualquier otra del Medioevo no está en ella ni en su contexto, sino que le fue añadido después. Es su destino, su proyección importante y duradera en el constitucionalismo inglés y norteamericano, es el hecho de que su famoso Capítulo XXXIX, con el juicio por jurados y la “lex terrae”, siga en vigor en Gran Bretaña hoy e indirectamente también en los Estados idos, al haberse incorporado a su Derecho Constitucional. Y este destino sobresaliente lo debe la Carta, en gran medida, a su utilización y a su instrumentación como un mito poderoso por parte de los agentes que llevaron a cabo la “revolución constitucionalista” en Inglaterra, desde mediados del siglo XV hasta mediados del siglo XVII; esos agentes – entre los que destacan grandes juristas como Sir Edward Coke- argumentaron con la Magna Carta y la reinterpretaron para controlar el ejercicio de la prerrogativa regia e incluso para reforzar el poder del Parlamento.36 Y aunque la “Gloriosa Revolución” de 1688 abrió, desde luego, un horizonte político y cultural radicalmente distinto al de la Magna Carta, no hizo tabla rasa de ella, sino que la incorporó y la acomodó, como un precedente a la vez tosco y venerable del nuevo paradigma constitucional britânico” . Resumiendo esta idea, Lord Chatham dijo, en el siglo XVIII, que la Magna Carta, la Petition of Right y la Bill of Rights forman la “Biblia de la Constitución Británica”. Pero habría que añadir que fue el triunfo de la revolución, representado por la Bill of Rights de 1689, lo que dotó de proyección y expandió el significado del viejo precedente –que, conforme a esta alegoría bíblica, podemos calificar de veterotestamentario- que es la Carta Magna de Juan Sin Tierra de 1215.” (LA MAGNA Carta: realidad y mito del constitucionalismo pactista medieval. Revista História Constitucional, Madrid, Editorial del Centro de Estudios Políticos Y Constitucionales, n. 10, edición online, p. 243-262. Disponível em: <///C:/Users/Livia/Downloads/232-861-1- PB.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2014, às 14h).

113 Carlos Roberto de Siqueria Castro, valendo-se das lições de Bernard Schwartz, traça as diferenças entre o entre os Bill of Rights inglês e norte-americano: “O conceito de declaração de direitos (Bill of Rights) inglês

em 1689 tende a obscurecer este fato. Todavia, exceto pelo nome, o estatuto de 1689 pouco tem em comum com o documento americano posterior. Em primeiro lugar, o Bill inglês foi aprovado, como lei, pelo Parlamento e estava, assim, em sentido jurídico, sujeito a ser emendado ou revogado à discriminação da legislatura que a criara. A noção americana de um Bill of Rights incorpora garantias de liberdade individual

de 1689 e a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776. Contudo, sua maior importância se

iniciou em 1791, com a incorporação de seus ditames à 5ª Emenda à Constituição Federal dos

Estados Unidos da América, na qual aparece pela primeira vez o conceito de “devido

processo”.

Eis o teor:

Nenhuma pessoa será detida para responder por crime capital ou hediondo, a menos que apresentada ou indiciada por um grande Júri, exceto em casos levantados perante as forças terrestres e navais, milícia, quando em efetivo serviço em tempo de guerra ou perigo público; nem será pessoa alguma sujeita por duas vezes à mesma ofensa, colocando em risco sua vida ou parte do corpo; nem ser compelida em qualquer caso criminal a ser testemunha contra si mesma, nem ser privada da vida, liberdade e propriedade, sem o devido processo; nem a propriedade privada ser tomada para o uso público sem justa compensação.114

Posteriormente, no ano de 1868, a 14ª Emenda estendeu a aplicação do instituto, até

então aplicável somente ao Governo Central, a todos os Estados da Federação.

Eis a íntegra:

Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado em que residem. Nenhum Estado fará executar qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nem negará a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis.

Com precisão, ensina Leda Boechat Rodrigues:

A Emenda nº 5, portanto, protegia os direitos individuais dos abusos do governo federal, ao passo que a Emenda nº 14 trouxe o devido processo legal como uma garantia federal contra a ação arbitrária estadual que viesse a intervir nos direitos individuais, passando toda espécie de legislação estadual à sujeição da Corte Suprema, sempre que se levantasse a questão de ser ou não ela essencialmente justa.115

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a um documento constitucional no qual se define e limita as áreas de legitimidade da ação legislativa. Nesse sentido, a Declaração de Direitos de Virginia de 1776, foi o primeiro Bill of Rights moderno, desde que foi o pioneiro em usar uma Constituição escrita para imunizar direitos individuais dos ventos cambiantes dos caprichos legislativos.” (O devido processo legal e os princípiosda razoabilidade e da proporcionalidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 72).

114 Na língua original: “No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger, nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation.” (SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 28).

115 RODRIGUES, Leda Boechat. A Corte Suprema e o direito constitucional americano. Rio de Janeiro: Forense, 1958.

No âmbito do Direito Internacional, o devido processo é consagrado por diferentes

tratados. Entre eles, podemos destacar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,

que o reconhece em seus artigos 10 e 11; e o Pacto Internacional de Direitos Civis e

Políticos

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, que faz referência ao instituto principalmente em seu artigo 14, mencionando

diversos direitos como igualdade ante os tribunais de justiça, presunção de inocência, direito

de defesa, possibilidade de recorrer das decisões condenatórias a tribunais superiores e a não

ser submetido a processo por um delito pelo qual já foi julgado anteriormente (non bis in

idem), dentre outros.

No continente americano, foi reconhecido pela Convenção Americana de Direitos

Humanos, a qual estabeleceu no seu artigo 8º as garantias judiciais, entre as quais se encontra

o direito de ciência da imputação formulada, que será objeto de estudo neste trabalho.

No Direito brasileiro, embora sem expressa previsão legal, sempre se observou o

princípio do devido processo legal, embora com alcance limitado, até ser expressamente

previsto como direito fundamental pelo artigo 5º, LIV da Constituição Federal de 1988.

117

Neste sentido, a lição de José Afonso da Silva

118

Não deixemos de mencionar, de passagem, que o princípio do due processo of law não esteve propriamente ausente do nosso direito constitucional. Ele emergia de algumas normas de garantia do processo e do direito de segurança inscritos entre os direitos e garantias individuais. Seu reconhecimento dependia de pesquisa no texto constitucional e de construção doutrinária. Agora ele está expresso. Basta à doutrina compreendê-lo na evolução centenária que tanto o enriqueceu. E, sendo limpidamente expresso, pode-se até reproduzir suas potencialidades em novos avanços, mormente porque inscrito numa Constituição com tantas novidades que hão de nele repercutir.

Para Nelson Nery Júnior, trata-se do princípio constitucional fundamental do processo

civil, uma verdadeira base sobre o qual todos os outros princípios e regras se sustentam. Com

efeito, bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido processo

legal para que o caput e a maioria dos incisos do art. 5º fossem absolutamente despiciendos.

De todo modo, a explicitação das garantias fundamentais derivadas do devido processo legal,

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116 Incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 592, de 6 de junho de 1992. 117 Maria Rosynete Oliveira Lima noticia a aplicação do devido processo legal em 1981, quando “o Ministro

Cordeiro Guerra do Supremo Tribunal Federal deparou-se com um caso, no qual o litisconsorte necessário em uma ação de mandado de segurança não havia sido citado para integrar o litígio, havendo decidido que não eralícito impedir que o terceiro participasse do devido processo legal, ou seja, ele reconheceu que o processo exige que o beneficiário ou afetado, pelo ato impugnado, seja chamado ao feito (artigo 47 do Código de Processo Civil brasileiro). E, não se observando esta regraprocedimental, o feito devia ser anulado a partir daquele momento.” (Devido processo legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 201).

118 SILVA, José Afonso. Prefácio. In: Castro, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios

como preceitos desdobrados nos incisos do art. 5º, é uma forma de enfatizar a importância

dessas garantias, norteando a Administração Pública para que possa aplicar a cláusula sem

maiores indagações.

119

Essa lição é de suma importância para o nosso estudo, uma vez que, ao analisarmos os

demais princípios constitucionais nos itens e capítulos seguintes, trabalharemos os demais

princípios e garantias constitucionais não de forma autônoma, mas como concretizadores do

devido processo legal.