• Nenhum resultado encontrado

Devido processo legal processual e devido processo legal substancial

2.4 GARANTIAS PROCESSUAIS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

2.4.1 Devido processo legal

2.4.1.3 Devido processo legal processual e devido processo legal substancial

O princípio do devido processo legal relaciona-se não apenas com o princípio da

legalidade, mas também com a legitimidade, uma vez que o devido processo legal é aquele

estruturado mediante o qual se faz presente a legitimidade da jurisdição, entendida jurisdição

como poder, função e atividade.

Para Cândido Rangel Dinamarco, a Constituição teve os seguintes objetivos ao adotar

expressamente a cláusula do devido processo legal:

[...] (i) pôr esses valores sob a guarda dos juízes, não podendo eles ser atingidos por atos não-jurisdicionais do Estado; [...] (ii) proclamar a autolimitação do Estado no exercício da própria jurisdição, no sentido de que a promessa de exercê-la será cumprida com as limitações contidas nas demais garantias e exigências, sempre segundo os padrões democráticos da República brasileira.120

Ainda para esse autor, quanto ao devido processo legal,

[...] importa ainda reafirmação da garantia de igualdade entre as partes e necessidade de manter a imparcialidade do juiz, inclusive pela preservação do juiz natural. Ela tem também o significado de mandar que a igualdade em oportunidades processuais se projete na participação efetivamente franqueada aos litigantes e praticada pelo juiz (garantia do contraditório, art.5, inc.LV) [...]. Absorve igualmente a regra de que as decisões judiciárias não motivadas ou insuficientemente imotivadas serão nulas e, portanto incapazes de prevalecer (a exigência de motivação: Const., art. 93, inc. IX [...]) e a de que, com as naturais ressalvas destinadas à preservação da ordem pública e da intimidade pessoal, os atos processuais deverão ser dotados de publicidade [...]121

________________________

119 In: Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 11. ed. rev., ampl. e atual. com as novas súmulas do STF (simples e vinculantes) e com análise sobre a relativização da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 91.

120 Instituições de direito processual civil. v. I. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 249. 121 Instituições de direito processual civil. v. I. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 250.

A doutrina, nacional e estrangeira, usualmente divide o devido processo legal em duas

espécies: substancial e processual.

O devido processo processual é o princípio empregado em sua acepção estrita,

referindo-se tanto ao processo judicial quanto ao processo administrativo, assegurando-se ao

litigante vários direitos no âmbito do processo, a exemplo dos direitos à citação, à

comunicação eficiente acerca dos fundamentos da instauração do processo do qual é uma das

partes, o direito de ser informado da acusação da qual é imputado, à ampla defesa, à defesa

oral, à apresentação de provas na defesa de seus interesses, a ter um defensor legalmente

habilitado (advogado), ao contraditório, à contra-argumentação mediante as provas arroladas

pela outra parte (inclusive quando se tratar de prova testemunhal), ao juiz natural, a

julgamento público mediante provas lícitas, à imparcialidade do juiz, a uma sentença

fundamentada, ao duplo grau de jurisdição e à coisa julgada.

Paulo Fernando Silveira explica o que se pode entender como devido processual legal

processual:

[...] refere-se à maneira pela qual a lei, o regulamento, o ato administrativo ou a ordem judicial são executados. Verifica-se, apenas, se o procedimento empregado por aqueles que estão incumbidos da aplicação da lei, ou do regulamento, viola o devido processo legal, sem se cogitar da substância do ato. Em outras palavras, refere-se ao conjunto de procedimentos (como informar alguém do crime de que está sendo acusado, ou seu direito de consultar advogado), que devem ser aplicados sempre que de alguém for retirada alguma liberdade básica [...]122

Com efeito, a garantia do devido processo legal na sua acepção processual é um

continente de diversos direitos. Assim, aquele princípio estará atendido se ao jurisdicionado

forem asseguradas as garantias fundamentais do processo.

O devido processo legal substancial considera o direito material e requer uma

produção legislativa com razoabilidade, quer dizer, as leis devem satisfazer ao interesse

público, aos anseios do grupo social a que se destinam.

Para o doutrinador norte-americano Charles Cole,

O conceito de devido processo substantivo é uma teoria pela qual o governo é limitado quanto ao modo pelo qual ele pode afetar a vida, liberdade ou patrimônio de alguém, com o conceito estabelecendo limitações substantivas à autoridade regulamentadora governamental. Essencialmente, o devido processo substantivo é uma teoria pela qual o judiciário olhará para a substância das leis para ver se o poder

________________________

legislativo excedeu em sua autoridade. Assim sendo, o devido processo substantivo é o conceito pelo qual o judiciário revê com independência a legislação para determinar se o governo usou os meios apropriados, i. e., se a legislação promulgada tem uma relação razoável com um fim governamental legítimo.123

Trata-se, assim, do princípio da razoabilidade que procura garantir ao cidadão a

inafastável elaboração legislativa comprometida com os reais interesses sociais, vale dizer, a

produção de leis razoáveis.

124

Luís Roberto Barroso explica:

125

Na primeira fase, a cláusula teve caráter puramente processual (procedural due process), abrigando garantias voltadas, de início, para o processo penal e que incluíam os direitos de citação, ampla defesa, contraditório e recursos. Na segunda fase, o devido processo legal passou a ter um alcance substantivo (substantive due

process), por via do qual o Judiciário passou a desempenhar determinados controles de mérito sobre o exercício da discricionariedade pelo Legislador e os fins visados, bem como na legitimidade dos fins.

Com efeito, a lei que contenha direitos e normas que devam ser respeitadas em um

devido processo devem ser geradas de forma legítima e cumprindo com as regras

parlamentares, conforme o ordenamento constitucional, entregando ferramentas de proteção a

essas garantias.

Ademais, conforme registra Carlos Roberto de Siqueira Castro, essa nova concepção

do devido processo legal também realçou o papel do Poder Judiciário:

Inaugura-se, aí, a era do governo dos Juízes, com os Tribunais assumindo um papel de censor da vida social, política e econômica da nação. O abandono da visão estritamente processualista da cogitada garantia constitucional (procedural due process) e o início da fase substantiva na evolução desse instituto (substantive due process) retrata a entrada em cena de Judiciário como árbitro autorizado e final das relações de governo como a sociedade civil, revelando o seu papel de protagonista e igualmente substantivo no seio das instituições governativas. A dialética do poder e as metafísicas questões do direito público encontram, enfim, no plano institucional, a autoridade dotada de prerrogativa decisória (do final enforcing power) e revestida

________________________

123 COLE, Charles D. O devido processo legal na cultura jurídica dos Estados Unidos: passado, presente e futuro. Tradução de Maria Cristina Zucchi. Revista da Associação de Juízes Federais do Brasil, ano 16, n. 56, p. 33- 43, 1997.

124 Charles Fried relata o caso Dred Scott v. Sandford (1856), julgado pela Suprema Corte americana, entendendo esta que uma lei que retira de um cidadão a propriedade sobre seus escravos, pelo fato de levá-los a outro território, é arbitrária e não razoável, sendo, por conseguinte, violadora do devido processo. O diploma legal objeto de discussão era uma lei do Território de Missouri, de 1820, que proibia a escravidão e a servidão involuntária, salvo em caso de punição por crime pelo qual a parte tenha sido regularmente condenada. (FRIED, Charles. Saying what the law is: the Constitution in the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 2004, p 172.)

125 Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 256.

dos predicados de intérprete derradeiro do sentido da Constituição: o Poder Judiciário.126

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

127

é pacífica no sentido de que a

Constituição Federal de 1988 consagra o devido processo legal nos seus dois aspectos,

substantivo e processual, conforme se depreende do voto do Ministro Celso de Mello no

julgamento do Recurso Extraordinário nº 374.981:

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do "substantive due process of law" (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 - RTJ 178/22-24, v.g.): "O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador." (RTJ 176/578-580, Rel. Min. Celso de Mello).128

________________________

126

A Constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 80.

127 Para Sérgio Mattos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o devido processo legal substancial é ampla e vaga. Diz este autor que “segundo a jurisprudência do STF, devido processo legal pode significar

desde a proibição de ‘leis que se apresentem de tal forma aberrante da razão’, passando pela exigência ‘de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (’resonablenesss) e de racionalidade (‘rationality’), devem guardar, segundo W. Holmes, um real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir’, até a necessidade de ‘perquirir-se [...] se, em face do conflito entre bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto a produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto”. (MATTOS, Sérgio Luis Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 97.)

128 Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira cita dois julgados do Supremo Tribunal Federal, anteriores à vigência da Constituição Federal de 1988, nos quais aquela Corte de Justiça entendeu que a Lei injusta não era inconstitucional: Agravo de Instrumento n. 19.747/DF, Primeira Turma, Relator Luiz Gallotti, J. 11/09/1958, v.u; e STF, Primeira Turma, Recurso Extraordinário n. 47.588/Guanabara, Primeira Turma, Relator Ministro Luiz Gallotti, j. 27/07/1961, v.u. O Devido Processo Legal Substantivo e o Supremo Tribunal Federal nos 15

O devido processo legal processual e substancial representa, por todo o exposto, o

núcleo central não da relativização, mas da integração do binômio direito e processo e procura

dar o máximo de eficácia às normas constitucionais para a efetivação do controle dos atos de

poder e da igualdade substancial das partes no processo.

129

Com efeito, a corrente substancial não deixa de considerar o fato de que a garantia do

devido processo deve ter um conteúdo de direitos fundamentais básicos para o

desenvolvimento de um juízo justo. A grande diferença com a processual radica no fato de

que a substancial não entende como objeto do devido processo essa gama de direitos, mas a

garantia do devido processo como a justiça em si mesma.

130