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Evolução legislativa e jurisprudencial: da Lei 1.711/52 à Lei 8.112/90

3.7 DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO E DIREITO AO AMPLO ACESSO AOS

3.8.1 Evolução legislativa e jurisprudencial: da Lei 1.711/52 à Lei 8.112/90

Chegou o momento de examinar se a Lei nº 8.112/90, que instituiu o regime jurídico

único dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas

federais, homenageia o direito fundamental de ser informado da acusação, na parte que trata

do processo administrativo disciplinar (Título V, art. 143 e seguintes).

Antes de adentrarmos no exame desse diploma legal, é oportuno estudar do Estatuto

que o precedeu – Lei nº 1.711/52, de 28 de outubro de 1952 –, no intuito de compreender a

evolução do direito fundamental de ser informado da acusação no processo administrativo

disciplinar federal.

Tratou aquele estatuto do processo administrativo disciplinar no seu título V (art. 217

e seguintes), dividindo-o em duas fases. A primeira fase era instrutória, inquisitiva; somente

após sua conclusão o funcionário seria citado para apresentar a defesa. Essa fase, portanto, era

meramente preliminar, tal qual a sindicância prevista no estatuto atual (art. 145).

281

Concluída a primeira fase, caso se arregimentassem provas suficientes da

culpabilidade do servidor, citava-se este para, na qualidade de indiciado, apresentar defesa,

nos termos do art. 222: “Ultimada a instrução, citar-se-á o indiciado para, no prazo de 10

dias, apresentar defesa, sendo-lhe facultada vista do processo na repartição.

O sistema adotado pelo artigo 222 se aproximava do processo penal do sistema

continental europeu, no qual também não há contraditório na instrução preliminar, embora

desenvolvida perante o juiz de instrução. A partir das conclusões da instrução preliminar,

abre-se o processo, aí sim com observância estrita das regras do contraditório.

Contudo, a Administração Pública interpretava este artigo de forma restritiva,

entendendo que, quando o legislador disse “defesa”, o fez referindo-se somente à defesa

escrita, de modo que não era dado ao acusado participar da instrução processual. Com efeito,

era negada ao indiciado a reinquirição de testemunhas, periciais e quaisquer outras

diligências.

Neste sentido,

A administração não está obrigada a interpretar o artigo 222 do Estatuto funcional excluindo a interpretação literal. Se o preceito prescreve que, após encerrada a instrução, deve o acusado apresentar defesa escrita, ilegalidade alguma haverá para a Administração obedecê-lo, porque esta exigência não implica reconhecer que a defesa só se limita a esse tipo, quando, na realidade, ela se manifesta no curso da instrução do processo disciplinar, desde a ouvida do acusado para esclarecimentos até o conhecimento que a este é dado das provas obtidas.

[...]

Os acusados tiveram ciência dos depoimentos que lhes atribuem condutas ilícitas, de modo a confirmar que foi seguido o princípio do contraditório. É certo que não presenciaram a inquirição das testemunhas por si ou seus advogados, mas isso não invalida os depoimentos colhidos, porquanto inexiste no processo disciplinar federal, antes de encerrada a instrução, procedimento previsto que garanta a presença do acusado durante a inquirição de testemunhas, tomaram s acusados conhecimento destes depoimentos, e é isso quanto basta para dar-se como cumprido o princípio do contraditório.282

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281“Art. 145. Da sindicância poderá resultar:

I - arquivamento do processo;

II - aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 (trinta) dias; III - instauração de processo disciplinar.

Parágrafo único. O prazo para conclusão da sindicância não excederá 30 (trinta) dias, podendo ser prorrogado por igual período, a critério da autoridade superior”.

282 Parecer jurídico inserto no processo administrativo disciplinar MF (Ministério da Fazenda) nº 0168- 13.819/79. Manifestação de igual teor foi ofertada pelo Ministério Público Federal no Recurso Extraordinário nº 114.991, julgado em 17.08.1990. Uma observação histórica se impõe: A Advocacia-Geral da União foi criada pela Constituição Federal de 1988, mas só foi instalada em 1999. Com efeito, à época deste julgamento a defesa da União era atribuição do Ministério Público Federal.

Esta interpretação foi severamente criticada pela doutrina, notadamente pelo fato de o

acusado só ser citado após a fase de instrução.

Rubem Rodrigues Nogueira, em artigo publicado em 1977, alerta para a necessidade

de a Administração Pública garantir ao acusado o direito de ser informado da acusação:

Admite-se que a Administração Pública faça sindicância sem ouvir o indiciado, mas a partir do momento em que formula uma acusação especifica com apoio nas informações colhidas, isto é, uma vez instaurado o procedimento administrativo, como base no uma pena disciplinar será ou não aplicada a um funcionário determinado, este deve ser citado para fazer o que lhe pareça útil à sua defesa. A defesa não será eficazmente produzida, ou pelo menos corre o risco de não o ser, desde que ao funcionário e subtraia o direito de conhecer liminarmente a causação formulada e acompanhar a produção de provas, reperguntar testemunhas ou contradita-las, pedir diligências, requerer perícias, com vistas à sustentação de sua inocência. Isto é uma coisa, e outra, muito diferente, entrar o acusado num procedimento já cheio por iniciativa unilateral da Administração.

[...]

imputar a um funcionário a prática de ilícito administrativo, mediante a instauração de procedimento administrativo disciplinar, cuja instrução, no entanto, começa e chega ao fim sem a todos os atos respectivos estar presente o acusado, não cremos que seja assegurar, mas antes golpear profundamente o princípio da ampla defesa, pela Constituição, sem reserva alguma, garantido a todo acusado.283

Para o referido autor, a legislação, in casu a Lei nº 1.711/52, deveria ajustar-se melhor

ao preceito constitucional garantidor da plena defesa do acusado no procedimento

administrativo disciplinar.

284

Também Sérgio de Andrea Ferreira alertava para a necessidade de ser o procedimento

disciplinar contraditório desde sua fase instrutória, sob pena de violação da garantia

constitucional da ampla defesa.

O procedimento disciplinar administrativo, a fim de que se assegure ao acusado ampla defesa, deve ser, necessariamente, contraditório, desde sua fase instrutória. [...] A legislação sobre processo administrativo disciplinar não tem seguido, com rigor, o preceito constitucional.285

Ruy Cardoso de Mello Tucunduva, em tese apresentada no XII Congresso dos

Servidores Públicos do Brasil, defendeu:

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283 Aplicação do principio da ampla defesa no processo administrativo disciplinar. Revista de Informação

Legislativa, n. 53, p. 239.

284 NOGUEIRA. Rubem Rodrigues. Aplicação do princípio da ampla defesa no processo administrativo

disciplinar. Revista de Informação Legislativa, n. 53, p. 241.

285 A garantia da Ampla Defesa no Direito Administrativo Disciplinar. Revista de Direito Público, v. 19, p. 60- 68.

Tendo em vista o princípio constitucional da amplitude de defesa, a similitude do processo penal com o processo administrativo disciplinar e a lição dos doutrinadores, o processo administrativo deveria ser iniciado, sempre, mediante portaria. E esta, que seria a inicial do processo, deveria conter os seguintes requisitos: 1º) a exposição do f ato tido como infração administrativa, com todas as suas circunstâncias; 2º) a qualificação do servidor processado; 3º) o rol de testemunhas da Comissão processante (observadas as regras de Processo Civil, artigo 407 e parágrafo único), garantindo o mesmo número à defesa.286

A compatibilidade do art. 222 da Lei nº 1711/52 com a Constituição Federal foi

resolvida pelo Supremo Tribunal Federal em meados da década de 1980, ao apreciar este o

Recurso Extraordinário nº 107.553.Adotando verdadeira interpretação conforme a

Constituição,

287

aduziu o Ministro Djaci Falcão:

[...] extrai-se da regra que a inteligência que a notificação do indiciado para acompanhar o processo, não constituiu condição essencial ao exercício da ampla defesa. Com efeito, somente ao final da instrução é que se opera a citação do indiciado para, no prazo legal, oferecer a sua defesa. Então, ao indiciado é facultado pedir a reinquirição das testemunhas ouvidas na fase de instrução.

A decisão restou assim ementada: “Processo administrativo disciplinar. A defesa é

assegurada ao indiciado após ultimada a instrução. É facultado então, ao indiciado, o pedido

de reinquirição de testemunhas, ouvidas na fase de instrução. Esta é a melhor exegese do art.

222, da Lei n. 1711/52.”

Esta jurisprudência, no sentido de reabrir a instrução sob o crivo do contraditório após

a citação do indiciado, se consolidou na Corte. Ao proferir voto no julgamento do Mandado

de Segurança nº 21.524, o qual, embora tenha sido julgado em 1991, apreciava processo

disciplinar concluído sob a égide da Lei nº 1711/52, o Ministro Octávio Galotti, ao citar o

Ministro Aldir Passarinho, afirmou:

O inquérito era normatizado no Estatuto dos funcionários públicos civis, no seu título V. A sua primeira fase é instrutória, fase preliminar e somente após ela é que é citado o funcionário para apresentar sua defesa. A primeira fase, assim, é meramente preliminar. Concluída esta, citada o indiciado este terá oportunidade de ampla defesa, podendo, requerer diligencias e reinquirição de testemunhas. Se essas

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286 Aspectos da amplitude de defesa no processo administrativo. Justitia, v. 109. p. 67 e ss.

287 Para Paulo Bonavides, “Uma norma pode admitir várias interpretações. Destas, algumas conduzem ao reconhecimento da inconstitucionalidade, outras, porém, consentem tomá-la por compatível com a Constituição. O intérprete, adotando o método ora proposto [a interpretação conforme a constituição], há de inclinar-se por esta última saída ou via de solução. A norma, interpretada ‘conforme a Constituição’, será portanto considerada constitucional”. (Curso de Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheioros, 2014, p. 474.)

testemunhas, então, não forem ouvidas por negativa, no particular, da comissão de inquérito, então, sim, o servidor poderá alegar cerceamento de defesa e que foi prejudicado, mas não quando se trata apenas da fase preliminar. Esta tem um rito próprio, específico. O Judiciário, aliás, sempre admitiu válidas as normas, a respeito do estatuto, até porque, se assim não fosse, teriam elas de ser declaradas inconstitucionais. Mas fora de dúvida, ainda que se tenha como abrangendo o § 5º do artigo 153 da Constituição Federam também o processo administrativo (pois a jurisprudência tem sido no sentido de que diz respeito ao processo penal), somente se poderia considerar malferido aquele preceito se ao funcionário, após sua citação, fosse cerceada sua defesa. A primeira fase, a rigor, é meramente investigatória.288

O legislador, no novo estatuto, sensível aos apelos doutrinários e na perspectiva de

harmonização com a nova ordem constitucional, fixou a notificação do acusado desde o início

do processo,

289

fato festejado pela doutrina.

Caio Tácito teceu comentários elogiosos ao novel diploma, realçando sua harmonia

com o devido processo legal, o que não acontecia com o estatuto anterior:

O advento da nova Lei do Regime Jurídico Único dos servidores públicos trouxe, a par de outras inovações, o aperfeiçoamento do devido processo legal, fortalecendo a garantia do direito de defesa. O Estatuto anterior (Lei n. 1.711/52), determinava e exigibilidade de processo administrativo para a apuração de responsabilidade, assegurando-se ao acusado ampla defesa (art. 217). Todavia, a citação do indiciado somente se fazia após ultimada a instrução do processo, quando lhe era assegurada vista do processo, para as alegações de defesa (art. 222). A fase instrutória se constituía de forma unilateral, sem procedimento contraditório.290

Concluiu o autor que, após a edição do novo estatuto, o processo administrativo

disciplinar passou a afinar-se com o procedimento criminal.