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45º Encontro Anual da Anpocs SPG 39 - Sobre periferias urbanas: infraestruturas, mobilidades e desigualdades

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45º Encontro Anual da Anpocs

SPG 39 - Sobre periferias urbanas: infraestruturas, mobilidades e desigualdades

Presidentes de Rua como ancoradouros na gestão comunitária ao combate à pandemia da Covid-19 na favela de Paraisópolis, São Paulo – SP

Maria Alice de Faria Nogueira (ECO-UFRJ)1

Andrea Maria Abreu Borges (ONG Grupo Pensar Cultural)2

Resumo:

Esse artigo tem como foco de reflexão o plano de combate à Covid-19 em Paraisópolis.

Organizado pela União dos Moradores e Comerciantes de Paraisópolis-UMCP sem o incentivo financeiro das esferas públicas governamentais, o plano alternativo de combate à pandemia conseguiu minimizar a circulação do vírus localmente, por meio da (re)organização das práticas e dos regimes de mobilidade dos sujeitos, objetos e informação pré-existentes na favela. À frente da espacialização das atividades em seus três eixos (saúde, economia e social), um grupo de voluntários e voluntárias moradores de Paraisópolis se fez presente: os chamados ‘Presidentes de Rua (PR)”. Os Presidentes de Rua ficaram responsáveis por monitorar a circulação e os deslocamentos dos moradores na favela, assim como atender às demandas de saúde das famílias em sua área de cobertura. Ao controlarem, facilitarem ou impedirem os fluxos de comunicação, pessoas, objetos e riscos; das políticas sanitárias e, a reboque, do vírus, os PR incorporaram o papel de “ancoradouros” (Hannam; Sheller; Urry,2006), se tornando parte das “infraestruturas socioespaciais de interação” (Freire-Medeiros; Lages, 2020) que centralizaram ações locais de mitigação da fome, do desemprego e da incidência do vírus na comunidade, diante das mobilidades desiguais e dos regimes de mobilidade implementados na favela.

Introdução

Após viagem de 15 dias à região da Lombardia, na Itália, no dia 24 de fevereiro de 2020, um homem branco, de 61 anos, brasileiro, morador da cidade de São Paulo, foi atendido no Hospital Israelita Albert Einstein, na unidade do Bairro do Morumbi. Com suspeitas de estar infectado pelo novo coronavírus – com sintomas de febre baixa, tosse seca, dor de garganta e coriza -, o paciente passou por exames para detecção de SARS-CoV-2,

1 Professora Adjunta do Departamento de Métodos e Áreas Conexas (DMAC), da Escola de

Comunicação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ). Membro do Grupo de Pesquisa MTTM – Mobilidades, Teorias, Temas e Métodos. Mariaalice.nogueira@eco.ufrj.br

2 Mestre em Ativos Culturais e Projetos Sociais (CPDOC/FGV-RJ); Pesquisadora, fundadora e diretora da ONG Grupo Pensar Cultural. Membro do Grupo de Pesquisa MTTM – Mobilidades, Teorias, Temas e Métodos. andreaborgesprofessora@gmail.com

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conforme preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Diante do resultado positivo, nesse dia o governo brasileiro confirmou o primeiro caso de Covid-19 no paísi3. Epicentro dos contágios no Brasil, após um mês de pandemia a cidade de São Paulo já tinha 8 mil casos confirmados e 563 mortes por Covid-19. Vizinha do Morumbi, a favela de Paraisópolis, uma das maiores do Brasil, com aproximadamente 100 mil moradores, nesse momento já sentia o impacto da doença na comunidade, com o aumento de 300%

dos casos nas duas primeiras semanas de abril4. A falta de infraestrutura sanitária e de saúde na favela, a alta densidade populacional e a própria geografia do local, somado ao descaso do governo com a população periférica, no que diz às políticas públicas de combate ao coronavírus nas favelas, levou a UMCP a lançar um plano comunitário alternativo de combate à pandemia da covid-19 na comunidade.

Desenvolvido pela UMCP, mas implementado por lideranças comunitárias locais relacionadas ao grupo G10 Favelas, o plano alternativo minimizou a incidência do vírus localmente, por meio da reorganização das práticas de econômicas e de sociabilidade, e dos regimes de mobilidade (Glick, Schiller & Salazar, 2013; Sheller, 2018; Freire- Medeiros & Lage, 2020; Mano, 2021, entre outros) dos sujeitos, objetos e informação pré-existentes na favela. Sem nenhum apoio das esferas governamentais locais, a mobilização comunitária atuou, em pelo menos, três eixos que serão aqui tratados - saúde, economia e o social – e em três frentes: internamente, na comunidade; externamente, em busca de patrocínios e apoio na iniciativa privada e na sociedade civil; e, posteriormente, em uma ampla atuação nacional, com a implementação do plano alternativo em 181 territórios vulneráveis em outros estados brasileiros.

No centro da gestão das atividades de organização do plano de combate à pandemia está Gilson Rodrigues, 36 anos, líder comunitário, presidente da UMCP, Coordenador Nacional do G10 Favelas e CEO do G10 Bank. Foi dele a ideia de mobilizar a comunidade em torno de 12 iniciativas5 que, ao longo de 2020, deram suporte à população de

3 Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/26/ministerio-da-saude-fala-sobre-

caso-possivel-paciente-com-coronavirus.ghtml. Acessado em: 01/06/2021

4Disponível em https://www.dw.com/pt-br/casos-suspeitos-de-covid-19-explodem-em- parais%C3%B3polis/a-53144807 . Acessado em: 01/06/2021.

5 Presidentes de Rua; Produção e distribuição de marmitas; ambulâncias privadas 24/7; distribuição de cestas básicas e kits de higiene; “Adote uma diarista” pelo Projeto Emprega comunidades; home office das Costureiras para produção e distribuição de máscaras, no Projeto “Costurando Sonhos”; Centro de Acolhimento para doentes de Covis-19; Formação de Brigadistas/Socorristas; Teleatendimento médico;

Fortalecimento do Comércio Local; Atuação jurídica; Apoio a imigrantes e refugiados. Disponível em:

http://www.g10favelas.org/ . Acessado em: 05/08/20221.

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Paraisópolis, em extrema vulnerabilidade diante das condições precárias de saúde, de trabalho e de insegurança alimentar.

À frente da espacialização das atividades de combate à covid na favela, um outro grupo de trabalho, agora de voluntários e voluntárias moradores de Paraisópolis, se fez presente:

os chamados Presidentes de Rua -PR. Recrutados pelas redes sociais da comunidade – Facebook e Instagram6 - os Presidentes de Rua foram responsáveis por monitorar a circulação e os deslocamentos dos moradores na comunidade, assim como atender às demandas de saúde e de alimentação das famílias em sua área de cobertura.

Como veremos, os Presidentes de Rua operam como uma infraestrutura fundamental na organização da gestão comunitária em Paraisópolis. Ao incorporarem o papel de mediadores entre os moradores e a organização comunitária, os PR assumem a qualidade de “ancoradouros” (Hannam, Sheller, Urry, 2006) ao centralizarem em uma só entidade, o controle e a propensão à diferentes tipos de mobilidades – de pessoas, objetos, informação, riscos, apoio sanitário e alimentar e, especialmente do coronavírus - em temporalidades, ritmos, materialidades e ressonâncias afetivas diversas.

De caráter exploratório, esse artigo tem como objeto a gestão comunitária do plano de combate à Covid-19 em Paraisópolis, entre março e dezembro de 2020. Ao enfocar a mobilização das lideranças locais no combate à pandemia na favela, queremos não só chamar à atenção para a superior eficiência do plano alternativo no manejo da crise pandêmica em relação às políticas públicas de saúde, como jogar luz em problemas sociais estruturais do país que acometem a população socialmente vulnerável brasileira, mesmo antes da pandemia.

Metodologicamente, esse texto utiliza o método misto (Santos, 2009), que congrega em uma mesma pesquisa levantamento de dados quantitativos sobre a pandemia no Brasil, em São Paulo e em Paraisópolis; com consultas à fontes secundárias tais como o levantamento bibliográfico a propósito dos regimes de mobilidades e mobilidade e saúde (Adey, Hannam, Sheller, Tyfield, 2021; Lavau, 2014; entre outros autores), com a técnica de entrevistas em profundidade feitas com integrantes da equipe de gestão do plano, todas realizadas de forma remota, entre os meses de fevereiro a julho de 2021.

6 https://www.facebook.com/UniaoParaisopolis https://www.instagram.com/mulheresdeparaisopolis/

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Paraisópolis: a periferia no centro da área nobre de São Paulo

Com uma população estimada entre 100 e 120 mil habitantes7, Paraisópolis é a segunda maior favela de São Paulo e fica localizada na região da Zona Sul, área nobre da cidade.

Conhecida hoje por ser uma região composta em sua maioria, por bairros cujos moradores possuem um elevado poder aquisitivo8, no início do século XIX, o local em que Paraisópolis está instalada fazia parte de uma grande fazenda de chá chamada “Fazenda Morumbi”, de propriedade do inglês John Maxwell Rudge. Em 1921, a fazenda foi dividida em 2.200 lotes cujos terrenos de topografia bastante irregular, não foram ocupados por seus respectivos donos e, em sua maioria, restaram abandonados por quase 30 anos.

Foi somente em 1950 que aconteceram as primeiras ocupações por famílias japonesas, que transformaram os terrenos em pequenas chácaras com plantações de banana e café.

Logo em seguida, a partir da década de 1960, o perfil de moradores foi alterado pela construção do bairro do Morumbi e de outros empreendimentos – como o próprio Hospital Albert Einstein, onde o primeiro paciente com covid-19 do Brasil foi internado.

Atraídos pela construção civil e pela crescente industrialização de São Paulo, um acelerado fluxo migratório, principalmente de nordestinos, chegava à cidade sem moradia e passa a ocupar os assentamentos irregulares da comunidade. Sem nenhum planejamento urbano ou políticas públicas para o desenvolvimento de infraestrutura local, as ocupações aconteceram de forma desordenada e o número de moradores de Paraisópolis cresceu exponencialmente, tendo dobrado em menos de uma década.

Historicamente, esse foi o começo da afirmação de Paraisópolis como periferia. Cabe ressaltar que a noção de periferia nesse caso, não se refere à ideia de que Paraisópolis cresceu à margem sob o ponto de vista espacial, isto é, distante em relação ao centro - do poder, da lei, da lógica econômica e da racionalidade burocrática – da cidade de São Paulo. Pelo contrário. Ao estar localizada em uma vizinhança nobre, desde sua origem Paraisópolis se afirmou como um território resultante da produção de desigualdades e de formas específicas de precarização da vida no espaço urbano. Ao favorecerem regimes

7 A quantidade de moradores, baseia-se nas estimativas das diferentes entidades políticas locais. O último Censo realizado no Brasil, em 2010 traz em seu resultado um número inferior de moradores (apenas 42.826 habitantes).

8 Segundo dados do Mapa das Desigualdades elaborado em 2020, os bairros que compreendem a região do Morumbi possuem a sétima maior renda da capital paulista com um rendimento médio de R$ 8.310,20 mensais. Disponível em https://www.nossasaopaulo.org.br/wp-content/uploads/2020/10/Mapa-da- Desigualdade-2020-TABELAS-1.pdf. Acesso em 28/08/2021

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de segregação, a falta de políticas públicas direcionadas à população periférica inviabiliza a experiência da vida citadina - tanto na ordem social e simbólica, quanto política e institucional (Birman et al., 2015). E é por esse viés social, portanto, que Paraisópolis, será tratada, nesse texto, como uma comunidade periférica da cidade de São Paulo.

Um dado que confirma a perspectiva de periferia social diz respeito à propriedade: no começo da década de 1980, 96,8% da população residente no local não era proprietária legal do terreno (Maziviero e Silva, 2018). Essa situação foi o ponto de partida para que um grupo de 200 famílias, moradoras de Paraisópolis, começasse a se articular para fundar a UMCP, na tentativa de abrir um canal de diálogo com o poder público municipal.

Apesar dessa primeira articulação ter dado resultado - autoridades municipais instalaram postes de iluminação e água encanada em algumas regiões da favela - historicamente Paraisópolis se recente do descaso do poder público diante dos problemas dos assentamentos precários. Sobre esse assunto, Maziviero e Silva (2018) afirmam que em relação às intervenções realizadas pelas variadas gestões públicas municipais entre 2001 e 2016, é possível perceber “o estabelecimento de um jogo político no manejo dos recursos, que desencadeia um conjunto de ‘des-ações’ para manter, ampliar e consolidar o poder”. Entretanto, uma vez que Paraisópolis está inserida em uma realidade de extrema vulnerabilidade socioeconômica, “o jogo político pode ter consequências nefastas”

(ibidem), como ficou bastante claro nessa pandemia.

Nesse sentido, a criação da UMCP, naquele momento, viria a ser fator de grande importância para transformar favela de Paraisópolis no que ela é hoje9. Ao pressionar o poder público por melhorias e, principalmente, por elaborar suas próprias estratégias de gestão comunitária local, ao longo das últimas décadas a UMCP tem conseguido desenvolver ações internas que geram inúmeros benefícios para a favela, como no caso da gestão pandêmica, analisada neste capítulo. Como veremos adiante, a gestão do plano alternativo de combate à Covid-19 foi criada, desenvolvida e implementada pela comunidade, mas com o suporte financeiro das parcerias firmadas com a iniciativa privada e da sociedade civil.

O modelo de parceria com atores sociais de fora da favela não é criação recente. Em meados de 2010, a atuação da UMCP já começava a atrair os olhares de veículos de

9 Neste trabalho nos dedicamos a ressaltar positivamente as ações sociais realizadas pela UMCP. A favela ainda enfrenta inúmeros problemas relativos à falta de infraestrutura sanitária, influência do tráfico de drogas, pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, insegurança alimentar, dentre outros.

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imprensa, figuras públicas, pesquisadores, empresários brasileiros e até estrangeiros, iniciando uma movimentação de pessoas querendo conhecer a favela. Nessa ocasião, Gilson Rodrigues, então presidente a UMCP, elaborou o projeto “Visite a Cidade do Paraíso”, uma iniciativa que propunha a criação de um roteiro turístico no local, cujo percurso faria a visita aos projetos sociais e culturais que aconteciam dentro da favela.

Para além da atividade turística, o projeto previa também, a fabricação de produtos com a marca “Paraisópolis”, que seriam comercializados como parte do roteiro, sendo o dinheiro arrecadado reinvestido nos projetos locais. Apesar do referido projeto não ter sido realizado exatamente nos moldes citados, ele pode ser considerado um embrião das atividades criadas, desenvolvidas e implementadas na favela, cuja repercussão é sentida ainda hoje, com diversas empresas e marcas da iniciativa privada firmando parcerias com o grupo gestor das ações empreendedoras em Paraisópolis.

Parte desse interesse da inciativa privada se faz sentir desde a primeira década dos anos 2000, quando o Brasil atravessou um período de prosperidade econômica que favoreceu principalmente as classes sociais mais baixas, as quais pertencem a maioria dos moradores das favelas brasileiras, e que passaram a encabeçar os rankings de consumo no país, em especial a classe C1 e C210. Empresas do ramo de telefonia móvel, cartões de crédito, varejo popular, dentre outros, passaram a buscar formas de estarem presentes massivamente nos locais de moradias das classes “C” e “D”. Atentos a esses movimentos, a UMCP passou a oferecer às essas empresas propostas de projetos que propunham retorno ao investidor e, principalmente, desenvolvimento econômico para a favela.

Assim, foram estabelecidas inúmeras parcerias com diversas empresas e, atualmente, a capacidade de mobilizar apoios da sociedade civil e de empresas interna e externamente, faz parte da “marca de Paraisópolis”, enquanto espaço de empreendedorismo social11,

10 De acordo com o Critério Brasil e Classificação Econômica (ABEP, 2019), as estimativas de renda familiar mensal para os estratos socioeconômicos C (C1 and C2) se situa entre R$ 1,805.91 a R$ 3,402.47.

Disponível em: https://www.abep.org/criterio-brasil Acessado em: 16/08/2021

11 Durante as várias entrevistas realizadas com líderes da UMCP o termo “empreendedorismo social” foi utilizado para denominar as ações desenvolvidas por sua gestão. Entendemos aqui essa categoria em um m contexto da elaboração de alternativas para a redução as desigualdades sociais, o empreendo ismo tem uma função central na perspectiva da mudança, ampliando o olhar para que os negócios não atendam somente as necessidades econômicas, mas também àquelas de ordem social e ambiental. Os emprenhadores socias, inseridos em suas realidades, compreendem de forma abrangente todos os problemas, avanços e soluções ali contidos, as ideias surgem e são implementas “de dentro da favela para dentro da favela”, método que tem logrado êxito em Paraisópolis.

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com essa experiência a expertise sendo replicada em outras favelas e comunidades do Brasil12.

Sobre esse aspecto, Borges (2012) aponta que existem cerca de sessenta instituições governamentais e não governamentais, de diversas categorias atuando em Paraisópolis, e que a inserção da maioria delas no território deu-se basicamente por dois motivos:

primeiro, pela localização vizinha à grandes empresas, localizadas na Zona Sul de São Paulo, que acabam direcionando suas atividades de responsabilidade social no seu entorno, contemplando Paraisópolis; e segundo, pela organização interna da própria UMCP na gestão, mediação, interlocução e implementação de várias ações realizadas na favela. No caso específico da gestão comunitária da pandemia de Covid-19, diante do descaso do governo municipal, as parcerias com as empresas e com a sociedade civil foi

“estratégia de sobrevivência”13, sem a qual Paraisópolis não teria tido a capacidade de mitigar a fome, o desemprego e a incidência do vírus na comunidade.

“Um morador apoia o outro”: pandemia na favela e gestão comunitária em Paraisópolis

Tratando das “carências e potências” da pandemia nas favelas do Rio de Janeiro, Fleury e Menezes (2020) afirmam que diante da falta de medidas de políticas públicas para mitigar o impacto econômico devastador da pandemia na economia das favelas, organizações e lideranças existentes nas comunidades se mobilizaram através de diferentes tipos de ação e distintas estratégias no enfrentamento à Covid-19. Parte importante dessa estratégia posta em prática nas favelas foi potencializada pelos meios digitais e pelas redes sociais da comunidade, assim como por grupos de troca de mensagens por celular, como WhatsApp e Telegram, através das quais a organização local colocava em circulação dados sobre contágio, informações sobre prevenção, pedidos de

12 A experiência de Paraisópolis tem se replicado por intermédio de Gilson Rodrigues que criou o lidera o G10 das favelas, em “prol do desenvolvimento econômico e protagonismo das Comunidades, visando o desenvolvimento econômico e social dessas áreas urbanas”. Ao longo da pandemia, o G10 Favelas ampliou sua atuação e em agosto de 2021 atuava em 181 territórios em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Amazonas, Pará, Maranhão, Pernambuco e em Brasília. Disponível em:

http://www.g10favelas.org/ Acessado em: 10/08/2021. Perfil no Instagram: @g10favelasbr

13 Para saber mais sobre as ações comunitárias nas favelas do Rio de Janeiro, consultar FLEURY e MENEZES, 2020.

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apoio, dicas de higienização das mãos, uso de máscara e álcool em gel, em diversos formatos, como vídeos, áudios, mensagens, cartilhas e posts.

Mesmo sabendo que quando se fala em favelas não é possível generalizar, visto a diversidade das experiências de “trajetória política, organização comunitária, lideranças e recursos existentes na localidade, bem como a capacidade de mobilizar apoios, fazer parcerias e montar coalizões” (Fleury e Menezes, 2020, p.3), é possível afirmar que o caso de Paraisópolis não foge à regra: uma semana depois da Organização Mundial da Saúde decretar como pandemia a infeção por coronavírus e a transmissão da doença Covid-19, no dia 19 de março de 2020 as lideranças comunitárias de Paraisópolis se reuniram para definirem como a favela iria se organizar para combater o vírus localmente.

À frente dos esforços da organização de um plano alternativo contra a pandemia, estava Gilson Rodrigues. Líder comunitário, presidente da UMCP, Coordenador Nacional do G10 Favelas e presidente do G10 Bank14, com base em sua experiência de mais de uma década como ‘prefeito’ de Paraisópolis, Rodrigues tinha consciência de que o governo municipal não iria dar conta de organizar políticas públicas de combate à pandemia nas favelas, não somente em função do histórico descaso com essa população, mas, em especial, nesse caso, diante da celeridade de propagação da doença na cidade de São Paulo. “Imaginávamos que o governo não conseguiria criar uma política pública efetiva para as favelas no combate à pandemia, como não criou. Assim, decidimos criar um programa baseado em uma grande rede de solidariedade, em que um morador apoia o outro”, afirmou Rodrigues, em uma das muitas entrevistas concedidas às mídias brasileira e internacional sobre a gestão da mobilização comunitária em Paraisópolis15.

Como já mencionado na introdução, o primeiro paciente registrado com Covid-19 no Brasil era morador do Morumbi, área nobre vizinha à Paraisópolis. Segundo dados internos das lideranças comunitárias, um grande contingente de moradores da favela trabalha na casa dos moradores do Morumbi prestando serviço como porteiro, empregada

14 Disponível https://forbes.com.br/forbes-tech/2021/02/g10-favelas-anuncia-banco-para-impulsionar- desenvolvimento-de-negocios-nas-comunidades/ Acessado em 13/08/2021. Para saber mais:

http://www.g10bank.com/ . Perfil do Instagram: @g10bankbr.

15 Segundo a Coordenadora da Agência de Comunicação de Paraisópolis, a Cria Brasil, Francisca Rodrigues, foram mais de 2000 matérias jornalísticas que citaram Paraisópolis, em mídias dos EUA, França, Espanha, Grécia, Itália, China, Portugal, Alemanha, entre outros. Disponível

https://www.facebook.com/AgenciaCriaBrasil e no perfil Instagram @criabrasilcomunicação

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doméstica, diarista, motorista, em um trânsito entre as populações vizinhas que, em tempos de pandemia, se tornou um risco diário de contaminação e transmissão do vírus.

Do ponto de vista histórico, estudos epistemológicos afirmam à relação entre doença e mobilidade. De acordo com Prothero, (1977) “não apenas a mobilidade deve ser identificada como fator de transmissão da doença, pois a própria doença é um fator responsável pelo movimento”. Em linha com Prothero, Lavau (2014) afirma que corpos móveis são veículos de doenças e os vírus são passageiros nesses corpos, lançando luz na própria mobilidade do vírus a partir do corpo que circula. Além do mais, segundo a autora,

“o próprio vírus é ontologicamente móvel”, a partir do momento em que “está constantemente em mutação e sendo reconstituído por meio da interação com o sistema imunológico do hospedeiro” (Lavau, 2014, p.298).

Na tentativa de conter rapidez e letalidade da contaminação por SARS-CoV-2 globalmente, no caso da pandemia de Covid-19 muitas das práticas de mobilidades cotidianas foram interrompidas abruptamente, enquanto outras foram reorganizadas de forma drástica. As mobilidades virais desencadearam não apenas uma interrupção das mobilidades humanas, mas também uma vasta intensificação das relações desiguais existentes de (im)mobilidades (Adey et al. 2021) e no caso específico de Paraisópolis, coube a comunidade se organizar e minimizar os riscos localmente.

De acordo com Elizandra Cerqueira, fundadora da iniciativa “Mãos de Maria Brasil”16 e integrante da equipe gestora, o impacto imediato da paralização da circulação de pessoas e meios de transporte, da implementação de isolamento social e do home office em São Paulo foi o desemprego da população de Paraisópolis. Em entrevista concedida as autoras, Cerqueira relata:

“muita gente da comunidade trabalha no Morumbi é ficou muito assustado porque a mídia ficou veiculando aqui em São Paulo o primeiro caso e era no Morumbi então imagina, os ricos ficaram apavorados, tipo assim, eu é que não quero pegar covid né, então eu vou dispensar a minha diarista, vou dispensar minha empregada doméstica, porque se não elas vão ficar lá circulando na comunidade e vão trazer vírus pra mim. [...] aí, Paraisópolis teve muita gente desempregada, que perdeu o emprego do dia pra noite, tipo ‘não vem mais trabalhar na minha casa, porque eu não quero pegar covid’” (Cerqueira, 9/2/2021).

16 Para conhecer mais sobre essa inciativa, visite www.maosdemariabrasil.com.br ou o perfil no Instagram @maeosdemariabr.

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Tendo em vista que o primeiro caso de contaminação foi registrado em um morador do Morumbi recém-chegado da Itália, nesse ponto é interessante chamar atenção para a inversão do fato: na teoria, os moradores de Paraisópolis eram aqueles que deveriam ter

“medo” dos moradores do Morumbi e não ao contrário. Na prática, tal inversão na leitura da situação de maneira tão automática, chama a atenção para a experiência de vida sob

‘regimes de mobilidade’ que, a partir de suas práticas normativas e dispositivos de vigilância vão regular as relações de poder altamente desiguais inscritas no direito e no dever de quem pode (ou não) circular, por onde, de que maneira e em que circunstâncias (Glick, Schiller & Salazar, 2013; Sheller, 2018; Freire-Medeiros & Lage, 2020; Mano, 2021). Em tempos de pandemia, a assunção de que são ‘os pobres’ que iriam passar a doença para ‘os ricos’, ressalta, ainda, em como a articulação entre mobilidade e saúde é marcada pela estigmatização de alguns corpos sobre outros, em uma relação fortemente marcada pela interseccionalidade entre raça, classe, etnia, gênero, deficiência e outros determinantes sociais, como saúde, segurança e vulnerabilidade financeira, de moradia, entre outros.

A situação relatada Cerqueira foi o ponto da partida para a mobilização comunitária e a criação do plano alternativo de combate à Covid-9 em Paraisópolis. Segundo Rodrigues, a mobilização e formação dessa rede de apoio comunitária começou a ser organizada a partir de um mapeamento local, no que diz respeito às condições infra estruturais e sanitárias da moradia das famílias na comunidade. Em conjunto com esse mapeamento, foi feita a chamada de voluntários, depois nominados de Presidentes de Rua, para serem os pontos de apoio da rede de solidariedade que vai sustentar as ações do plano de combate à Covid-19 em seus três eixos – saúde, economia e social – e em três frentes:

internamente, a partir das 12 iniciativas organizadas pela UCMP e o G10 Favelas, em Paraisópolis; externamente, na articulação de financiamentos direto com empresas e com a sociedade civil feita pelas lideranças comunitárias locais. E, posteriormente, diante do sucesso do plano alternativo em Paraisópolis, a importação da metodologia para outros 181 territórios vulneráveis brasileiros, por meio do G10 Favelas, como veremos a seguir.

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Presidentes de Rua como “ancoradouros” na gestão da pandemia de Covid- 19 em Paraisópolis

Em entrevistas concedida às autoras, Givanildo Pereira Bastos, a.k.a. Giva, Coordenador Nacional dos Presidentes de Rua e CEO do “Favela Express Brasil, explica o conceito e atuação dos PR:

“Presidente de Rua é um voluntário, então ele assina um termo de responsabilidade de voluntário. Não é tipo um contrato, não tem um período obrigatório, ele pode abdicar do cargo a qualquer momento. Mas a gente dá uma prioridade a mais pro Presidente de Rua por ele ser Presidente de Rua e ele não receber nada em troca, não receber nenhum pagamento. Então, se o Presidente de Rua precisar de uma cesta [básica de alimentação]

precisar de alguma coisa, um apoio a mais, a gente vai se aproximar mais dele”. Para iniciar o trabalho, [a equipe d]os PRs foi dividida em quatro times:1) Mapeamento: para mapear as famílias em condições de vulnerabilidade social ou de saúde; 2) Ligação:

equipe que entrava em contato com os PRs para saber quais condições de cada família, quais as necessidades. Esse equipe também opera como um canal de informações entre a coordenação nacional e os PRs; 3) Digitação: equipe responsável por protocolar e cadastrar toda a documentação e a necessidades da famílias, assim como controlar as doações recebidas mensalmente; 4) Documentação: visto que o PR é um voluntário, essa equipe organiza e cadastra os presidentes de rua. (Giva, 14/07/2021).

Ao longo dos seis primeiros meses de isolamento social, o grupo de PR chegou a ter 652 voluntários que atendiam em média, 50 famílias cada um. No total, foram 32.600 famílias contempladas, todas cadastradas no Banco de Dados da UCMP e G10 Favelas. Pelos critérios usados para cadastramento das famílias – responsável financeiro desempregado, com mais de cinco pessoas por domicílio, crianças ou pessoas mais velhas e em vulnerabilidade de saúde ou alimentar – 80% de Paraisópolis foi cadastrada para ser atendida pelo programa de auxílio.

No começo, os PR faziam a distribuição de cestas básicas, máscaras e kits de higiene de porta em porta, em um movimento de controle da circulação dos moradores na favela.

Com a pandemia se alongando, assim como o número de famílias atendidas, ficou impossível esse atendimento direto nas residências. Dessa forma, a entrega das marmitas, cestas básicas e kits de higiene passaram a ser entregues no Pavilhão Social, local central da organização do G10 em Paraisópolis, em um trânsito relativamente organizado de pessoas, mercadorias e informação.

Para melhor atender a população, 240 Presidentes de Rua foram ainda treinados como brigadistas e estavam aptos a fazer os primeiros socorros dos doentes, se necessário, além de chamar as ambulâncias contratadas para atendimento em Paraisópolis. Com a dificuldade topográfica da região, e sem conhecer as ruelas da favela, a equipe da ambulância era guiada pelos PR vizinhos da família a ser atendida que, com plaquinhas

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na mão, indicavam o caminho que a ambulância devia seguir. Ainda sobre a rotina, os PR dedicavam atenção aos moradores “invisíveis” ao poder público: idosos, pessoas vulneráveis, crianças, usuários de drogas, entre outros, não elegíveis à política de auxílio governamental implementado em 2020, monitorando suas condições de saúde.

A pandemia no Brasil seguiu em números altos por vários meses, observando alguns intervalos de relativa melhora, principalmente graças às múltiplas inciativas da sociedade civil, a exemplo do objeto de estudo aqui em análise. Tratando especificamente de Paraisópolis, a situação dos casos de contaminação e óbitos até meados de outubro de 2020, esteve em relativo controle. As iniciativas locais seguiam funcionado com o apoio financeiro da iniciativa privada e campanhas de crowdfunding. Porém, depois da abertura parcial de comércio e das atividades na cidade de São Paulo, parcela significativa dos moradores da favela precisou sair para trabalhar, causando novos fluxos de pessoas, objetos, informação e, consequentemente, do vírus na comunidade. “Não há home office na favela, o morador precisa se expor ao vírus para sobreviver”, afirma Cerqueira. O

“novo normal” levou à diminuição do número de PR e quem ainda está na equipe, como é o caso de Liliane, extraordinariamente, atende até 100 famílias. Por outro lado, as funções de PR agora são desenvolvidas grande medida de maneira online e/ou digital, tendo no WhatsApp sua principal ferramenta de contato. Esse foi o relato de Liliane Lima Araújo que atua como Presidente de Rua desde março 2020, em entrevista concedida às autoras. Segundo Liliane, sua rotina diária é verificar as necessidades básica, alimentares e de saúde de “suas famílias”. O que ela faz duas vezes ao dia, normalmente, pelo aplicativo:

“Eu acordo de manhã e ligo meu note e começo a mandar mensagem pra todo mundo, pra perguntar se tá tudo bem. Mando mensagem no grupo, aí, as pessoas falam que tá bem, aí outro fala que tá faltando alguma coisa, né? E aí, eu tento ajudar, né? vou na casa daquela pessoa e vejo o que ela tá precisando e aí começo a correr atrás, né? Se tá precisando de uma consulta, se tá precisando de ir ao médico. Eu falo gente, pelo amor de Deus não sai de casa, fica em casa. Mas tá sendo essa rotina. Aí eu vou fazer minhas coisas, qualquer coisa é eles precisar de qualquer coisa eles me mandam mensagens. Aí, eu vou a noite na casa de cada um, né? que tá precisando de mim naquele momento e é isso” (Liliane, 11/3/2021)

Sobre o aspecto da comunicação, a moderação dos grupos de WhatsApp é feita pelos PR, tanto no que diz respeito a quem participa dos grupos no aplicativo de mensagens, como quem participa do grupo de famílias atendidas. De acordo com Giva, a partir da relação de confiança que se estabelece entre o representante da família e o PR é bastante comum quando a família não mais precisa do apoio, ela mesma comunicar ao PR - por exemplo, quando o responsável financeiro arruma emprego -, que a tira do grupo do WhatsApp e a

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descadastra do programa de auxílio, mesmo que temporariamente. Quando não há essa comunicação, o próprio PR ao perceber certa melhora, faz o convite à família, para que a ela possa ceder a vaga para quem precisa mais. O desligamento não é mandatório, mas segundo afirma Giva, tem sido relativamente fácil substituir as famílias nos atendimentos, visto que depois de alguns meses, a comunidade entendeu como funciona o auxílio.

A relação de confiança estabelecida entre a comunidade e os PR, nos leva a pensar na noção de people as infraestrutures (Simone, 2004). Diante das condições impostas pelo cenário urbano, Simone afirma que certo grupo de pessoas se torna uma referência sólida, mesmo que móvel, de uma rede “de colaboração mútua entre residentes aparentemente miseráveis e marginalizados pela vida urbana”. O autor afirma que essas pessoas operam como infraestrutura ao terem a habilidade de engajar a si mesmo e outros indivíduos em complexas combinações, cruzamentos e (des)acoplagens - da qual também fazem parte objetos, tecnologias, trajetórias, informação, práticas e espaços-, por meio das quais são capazes de ancorar os meios de subsistência e a experiência de vida do grupo de referência.

Segundo Freire-Medeiros e Lages (2020), a ideia de ancoradouro está relacionada às infraestruturas materiais necessárias que sustentam, vigiam ou retêm os fluxos – de pessoas, objetos e informação – tais como estradas e aeroportos, rede elétrica e cabos de fibra óptica, assim como barreiras aduaneiras e campos de refugiados. Essas

“infraestruturas socioespaciais de interação” potencialmente podem ser atravessadas por pessoas, meios de transporte ou mercadoria, mas, também por afetos, mensagens e imagens, “que para ali convergem e, já transmutados, são projetados em várias direções”

(Freire-Medeiros e Pereira da Silva, 2019). No entanto, essa “arquitetura da mobilidade”, nos termos de Larkin (2013), não deve se referir somente a sistemas materiais e tecnológicos. O autor argumenta que as infraestruturas também podem ser pensadas pelo seu caráter biopolítico e social, o que abre espaço para pensarmos as infraestruturas também como um objeto biológico, fisicamente incorporado em um indivíduo ou, ainda, como uma prática social hibridizada entre homens e máquinas, postos em rede por meio de dispositivos tecnológicos.

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Presidentes de Rua: atuação em eixos

A gestão do plano comunitário foi executada em eixo, tendo cada um deles a atuação direta ou indireta dos Presidentes de Rua. No eixo “saúde”, houve a disponibilização gratuita de serviço médico para atuar exclusivamente na favela. No começo da pandemia, Paraisópolis chegou a ter quatro ambulâncias contratadas e uma equipe exclusiva 24/7 de médicos e enfermeiros para atendimento dos moradores. Ao longo de 2020, foram mais de 10 mil de atendimentos locais e não só de Covid-19. Segundo Francisca Rodrigues, assessora de comunicação da Cria Brasil, a ambulância ficou conhecida como o “SAMU da comunidade”17, atendendo a outras situações médicas, inclusive partos. Houve também a formação debrigadistas e socorristas para moradores, que atuavam em uma das 60 bases de emergência instaladas nas microrregiões da comunidade – Grotinho, Grotão, Antonico, Brejo e Centro. Ainda com relação ao atendimento à saúde da comunidade, foi desenvolvido um projeto de telemedicina, além da instalação de hospitais de campanha – ou casas de acolhimento - para tratamento de contaminados, em duas escolas da comunidade. Com uma média de cinco pessoas por residência de dois cômodos, grande parte sem esgoto e/ou vivendo com racionamento de água, as casas de acolhimento foram criadas para tratar dos doentes em estado mais grave da doença e em cada local era possível atender até 250 moradores durante o período de quarentena exigido pela doença.

Para complementar as ações da saúde, com o apoio financeiro da iniciativa privada – que doou as máquinas de costura - foi possível colocar em home office as costureiras da iniciativa local “Costurando Sonhos Brasil”18 que, entre março e outubro de 2020, produziram mais de 1 milhão de máscaras, que foram distribuídas na comunidade.

No eixo da “economia”, o plano partiu de uma realidade local visto Paraisópolis possui um comércio muito forte - com 14 mil pontos de pequenos varejos, que empregam aproximadamente 20% dos moradores da comunidade. Dessa forma, na área econômica, o trabalho foi focado no comércio local. Uma das ações nessa área foi o programa de distribuição de cartões de cesta básica para a compra e consumo de bens diretamente na

17 O SAMU é o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, que atende os casos de urgência e emergência, financiado pelo Governo Federal, Estadual e Municipais com a finalidade de melhorar o atendimento à população. Foi criado em 2003 e faz parte do Política Nacional de Urgências e Emergências. Disponível em: http://www.samunoroestepr.com.br/samu/o-que-e-o-samu Acesso em:

15/08/2021

18 Para conhecer melhor essa iniciativa, visite https://www.costurandosonhosbrasil.com.br/ ou o perfil do Instagram @costurandosonhosbrasil.

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favela, entre outras inciativas que já estavam ocorrendo mesmo antes da pandemia, como ações de empreendedorismo social, já mencionado na primeira parte desse capítulo. Sobre esse aspecto, Rodrigues afirma que o objetivo é “posicionar as favelas como potências econômicas, e não como carentes, marginais ou que tenham necessidade de esmola”19. Nesse sentido a pergunta-chave no desenvolvimento desses programas é “como conseguimos criar oportunidades para que essas favelas se desenvolvam, cresçam e sejam agentes da sua própria transformação?”. Mas do que nunca, a atuação do G10 Bank foi fundamental na oferta de crédito para sobrevivência do comércio local e, principalmente, para lançamento de novos negócios, focados no atendimento de demandas e oportunidades surgidas durante a pandemia. Uma dessas inciativas criadas na pandemia foi a “Favela Express Brasil”20, empresa de logística que entrega as compras feitas por e- commerce em toda e qualquer região da favela, em especial àquelas em que os Correios não chegam.

No eixo “social”, antes mesmo da pandemia, já havia em Paraisópolis o projeto “Emprega Comunidades”21, conhecido como “o LinkedIn da favela”, com 8 mil famílias cadastradas, as quais eram atendidas com doações de cestas básicas. Com o impacto da pandemia na comunidade foi desenvolvido um sistema de distribuição diária de alimentos para moradores em situação de insegurança alimentar. Produzidas pela iniciativa local

“Mãos de Maria Brasil”, de 23 de março a 31 de dezembro de 2020 foram entregues 1,467 milhão de marmitas para a população mais vulnerável na comunidade, referentes à 700 toneladas de comida. De acordo com Cerqueira, no auge da pandemia se chegou a distribuir 10 mil marmitas por dia.

Do ponto de vista “financeiro”, a distribuição de comida só foi possível com o apoio da incitativa privada e de campanhas de crownfunding, que possibilitaram a remuneração 27 cozinheiras do grupo. No entanto, do ponto de vista da gestão local, tal inciativa só pode ser posta em prática pela força do trabalho dos Presidentes de Rua, pontos centrais da rede imaginada por Rodrigues, em que “um morador suporta o outro”.

19 Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/gvexecutivo/article/view/82129/78277 Acessado em: 1/08/2021

20 Empresa de logística focada em entregas nas áreas de difícil acesso nas favelas. Para saber mais, vivite https://empreendedorsocial2020.folha.com.br/comite-das-favelas-presidentes-de-rua ou o perfil no Instagram @givapereirabr.

21 Para conhecer mais sobre essa iniciativa, visite https://linktr.ee/empregacomunidades ou o perfil do Instagram @empregacomunidades

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Considerações finais

Como vimos nesse artigo, diante do descaso histórico do governo local e a precariedade dos serviços públicos nas favelas brasileiras, ainda mais em evidência em tempos pandêmicos, no caso específico de Paraisópolis, os PR constituem a infraestrutura de cuidado, de comunicação e de circulação que suportam as ações comunitárias em suas três frentes. Seriam, nesse sentido, parte constituinte fundamental do “complexo sociotécnico” de ancoragem, ao incorporarem – física e tecnologicamente - todo um sistema de regimes de mobilidades pelo qual são postos em movimento, em pausa ou fixação, pessoas, objetos, informação, riscos e afetos. “Regimes de mobilidades não são exclusivamente formais e governamentais, podendo também assumir características informais e fora das estruturas legais”, (Mano, 2021) exatamente como no caso de Paraisópolis, cuja gestão alternativa no combate à pandemia de Covid-19 se formaliza, desenvolvendo, por um lado, uma nova lógica organizacional do cotidiano das comunidades e, por outro, permitindo que as comunidades reforcem suas identidades socioculturais ao fazerem sua própria história.

As medidas de proteção necessárias para enfrentamento da pandemia evidenciaram a precariedade dos serviços públicos nas favelas brasileiras. A iniciativa comunitária aqui relatada contribuiu para minimizar com sucesso a circulação dos coronavírus e, assim, diminuir a taxa de contágio e de mortalidade pela doença em Paraisópolis. A experiência se mostrou tão exitosa que, além de ganhar destaque em meios de comunicação nacionais e internacionais, está sendo reproduzida em outros 181 territórios de baixa renda do país22. Segundo dados do Instituto Pólis23, entre fevereiro e maio de 2020 as taxas de contaminação e mortes na favela de Paraisópolis foram mais controladas do que as do município de São Paulo.

Apesar da investigação aqui relatada cobrir o período de março a dezembro de 2020, é importante comentar que a partir de março de 2021, com parte da população adulta brasileira já vacinada, as ações desenvolvidas pelo G10 Favela em comunidades do Brasil estão mais direcionadas a minimizar os efeitos econômicos da pandemia nas favelas do que focadas na prevenção sanitária. Guardadas as características de cada um das 181

22 Disponível em: https://www.instagram.com/g10favelas/. Acessado em: 11/06/2021

23 Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/analise/65231/contexto-territorial-e-acao-coletiva-no- enfrentamento-da-covid-19 Acessado em 16/08/2021

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territórios vulneráveis, seu modelo de organização comunitária e força de mobilização interna e externa, a ideia do G10 Favelas e das outras inciativas aqui relatadas, com especial protagonismo de G10 Bank, é ampliar o escopo de atuação dos Presidentes de Rua e torná-los analistas de projetos de empreendedorismo social, a partir das ideias de negócio desenvolvidas pelas famílias atendidas. Nesse sentido, os PR vão ainda mais reforçar seu papel de ‘ancouradoros’, ao serem o primeiro filtro entre o proponente do negócio e o G10 Bank.

Referências

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Carneiro, S. de S. Dispositivos urbanos e trama dos viventes. Rio de Janeiro: Editora FGV.

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mobilidades, mídia e memória no Jardim Bíblico do Templo de Salomão. In Farias, E. &

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