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Para desenvolver este projecto foi decisivo o apoio que recebi de várias pessoas e instituições às quais não posso deixar de expressar, nesta altura, o meu reconhecimento.
À Profª. Doutora Teresa Sá Marques agradeço pela sua orientação, exigência científica, estímulo e permanente disponibilidade, mas também, por todos os desafios que ao longo dos anos me tem lançado e que muito influenciaram o meu trajecto individual.
Ao António Lacerda quero agradecer o incentivo incondicional e decisivo durante o demorado processo de elaboração desta dissertação mas, sobretudo, os seus ensinamentos técnicos e de rigor que marcaram profundamente a minha formação profissional e pessoal, e de que este trabalho naturalmente beneficiou.
Ao Luis Delfim Santos agradeço todas as reflexões e os conselhos que muito me ajudaram a avançar na investigação. Não esquecerei o encorajamento e o apoio constantes em todas as etapas deste percurso.
Ao Sérgio Rocha e à Marta Gomes não posso deixar de agradecer a sua valiosa e empenhada ajuda em todas as fases do trabalho que envolveram a utilização dos SIG. Neste domínio das tecnologias de informação geográfica, em particular no que se refere à utilização do software de análise de redes, foi também preciosa a colaboração do Filipe Silva e do Pelayo.
À Ana Azevedo quero expressar o meu agradecimento pela ajuda concedida no tratamento e interpretação de dados da coorte EPIPorto e pelos seus comentários ao capítulo referente ao tema da saúde, que contribuíram para o seu aperfeiçoamento. O meu reconhecimento para todos os colegas do Gabinete de Estudos e Planeamento da CMP com quem ao longo dos anos tenho vindo a partilhar reflexões sobre a metrópole portuense. À minha talentosa amiga Mónica agradeço as magníficas fotografias do Porto. Desejo ainda estender os meus agradecimentos:
‐ À Câmara Municipal do Porto por todas as facilidades que me concedeu para elaborar esta dissertação.
‐ A várias instituições e entidades pela permissão de utilização de dados estatísticos, entre as quais cabe destacar, o Instituto Nacional de Estatística, o Comando Nacional da Polícia de Segurança Pública, a STCP S.A. e a Metro do Porto S.A.
‐ Ao Serviço de Higiene e Epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto pelo fornecimento de dados relativos à coorte EPIPorto.
Metropolitanas de Lisboa e Porto”. Agradeço em particular aos colegas Álvaro Pereira e Marluci Meneses o acolhimento dado ao meu pedido de informação e a sua disponibilidade imediata para colaborar. Os últimos agradecimentos são reservados para a minha família: Pelo incentivo de todos – e no caso do Zé Sousa Ribeiro – também pela ajuda na revisão de parte do texto (a parte bem revista!).
Pela compreensão das minhas maravilhosas filhas Mariana e Ana Luísa para com esta minha aventura.
Pelo estímulo constante e todo o apoio “logístico” da minha Mãe, cuja energia e dedicação inexcedível à família são para mim motivo de orgulho e de admiração em cada dia que passa. Por tudo aquilo que contribuiu para que este projecto de investigação se concretizasse e, sobretudo, para que chegasse ao fim, não é sequer possível agradecer neste espaço ao Amadeu.
Perante a metamorfose da vida urbana e as contradições com que esta está confrontada, ganha força a ideia de que é necessário repensar a organização e o funcionamento da cidade contemporânea. Para que se possa planear e intervir melhor, promovendo o bem‐estar e combatendo as desigualdades sócio‐espaciais de uma forma transversal, reconhece‐se que é necessário construir novas plataformas de informação e de conhecimento para suporte da decisão técnica e política.
Na primeira parte deste trabalho procura mostrar‐se como a investigação realizada no campo da avaliação da qualidade de vida tem dado contributos importantes nesse sentido, propondo referenciais multidimensionais, metodologias e métricas muito úteis para a leitura da realidade urbana actual e para a monitorização das políticas. Assume‐se que uma orientação particularmente promissora desta investigação prende‐se com o aprofundamento da análise das disparidades que se verificam no interior das cidades. As avaliações da qualidade de vida nos territórios de vizinhança podem proporcionar um suporte mais rico e rigoroso para o diagnóstico das situações e para o desenho de soluções integradas e inovadoras para os problemas e aspirações dos cidadãos. Directamente relacionadas com as experiências do quotidiano, estas abordagens podem, adicionalmente, ajudar a mobilizar o envolvimento dos actores locais em processos de aprendizagem colectiva e uma maior cooperação na hora de actuar.
A segunda parte deste trabalho é totalmente dedicada à identificação e caracterização dos padrões espaciais que traduzem a variação das condições de vida e de bem‐estar na cidade do Porto. O quadro conceptual e metodológico estabelecido é influenciado pela perspectiva assumida de que a qualidade de vida é o resultado de um processo cumulativo complexo em que ocorrem múltiplas interacções entre os vários domínios que determinam o bem‐estar humano. O modelo analítico desenvolvido encontra‐se estruturado em dois grandes blocos: condições territoriais associadas ao quadro de vida de proximidade e condições individuais. Recorre‐se a descritores estatísticos objectivos – recolhidos directamente ou gerados para o efeito em ambiente SIG – para se analisar a fragmentação do espaço urbano, numa primeira fase segundo uma lógica temática e, no final, com base numa tipologia de síntese. Com o apoio da cartografia em que se apresentam os padrões da diferenciação intra‐urbana discute‐se o seu significado em termos dos desequilíbrios actuais da qualidade de vida da população do Porto, destacam‐se as situações mais desfavoráveis e questionam‐se as suas perspectivas de evolução futuras.
São objecto das reflexões finais deste trabalho, as condições em que este tipo de dispositivos de avaliação pode contribuir para uma nova geração de políticas urbanas, abrindo novas possibilidades ao nível das ferramentas e das práticas do planeamento.
Given the major transformations of urban life and the contradictions it is confronted with, the idea that there is an urgent need to rethink how the modern city is organised and structured gains force. In order to better plan and intervene, promoting well‐being and combating socio‐spatial inequalities transversally, it is widely acknowledged that new information and knowledge platforms need to be built as a basis for technical and political decision‐making.
The first part of this study explores how research in the field of assessing quality of life has yielded important insights, proposing multidimensional, methodological and metric guidelines that are highly useful in reading current urban realities and monitoring policy. A particularly promising area in this research focuses on broaden analysis of the disparities taking place within cities. Assessments of quality of life in neighbouring zones can provide a richer and more precise basis to diagnose situations and design integrated, innovative solutions for the problems and aspirations of citizens. Directly related with daily experiences, these approaches may also encourage the involvement of local actors in processes of collective learning and greater cooperation when the time comes to act.
The second part of this study is entirely dedicated to identifying and characterising the spatial patterns that translate the variations affecting quality of life and well‐being in Porto. The conceptual and methodological framework employed is influenced by the perspective that quality of life is the result of several domains that determine human well‐being. The analytical model developed is structured into two major blocks: territorial conditions associated with a framework of life in proximity and individual conditions. Objective statistical descriptors are applied – collected directly or generated on a GIS – so as to analyse the fragmentation of urban space, following at first a thematic order, and, at the end, seeking to provide an overview of the outcomes. With the support of maps covering the patterns of intra‐urban differentiation, their meaning is discussed in terms of current unbalances in quality of life of Porto’s population, highlighting the more unfavourable situations and questioning their prospects for future developments.
The conclusions to this work focus on the circumstances in which this type of assessment devices can contribute to a new generation of urban policies, opening new possibilities in terms of planning instruments and practices.
Índice
Introdução geral 1
1 Delimitação do campo de investigação 1
2 A natureza e os objectivos da abordagem adoptada 5
3 Estrutura e organização da dissertação 7
1ª PARTE – Qualidade de vida urbana: o quadro teórico e a avaliação empírica 11
Introdução 13
1 As origens e a evolução do conceito de qualidade de vida 14
1.1 As propostas iniciais 14
1.1.1 Monitorizar a realidade social: o enfoque nas condições de vida 15
1.1.2 A escola americana da psicologia social 18
1.2 Principais debates e fracturas em torno do conceito de qualidade de vida 21
1.2.1 Abordagem objectiva versus abordagem subjectiva 21
1.2.2 A “desconstrução” do conceito: domínios da qualidade de vida 29
1.2.3 O contexto de referência: culturas e normas 34
1.2.4 Construção ao nível social versus construção ao nível individual 36
1.3 Modelos de conceptualização e operacionalização 39
1.3.1 Os estudos suecos sobre o nível de vida 40
1.3.2 A proposta de Allardt: “Having, loving, being” 42
1.3.3 A abordagem das capacidades 43
1.3.4 A construção abrangente de Berger-Schmitt e Noll 45
1.3.5 A qualidade social de Beck, van der Maesen e Walker 50
1.3.6 O modelo do ecossistema humano de Hancock 54
1.4 Qualidade de vida: um referencial útil para as políticas urbanas? 56
2 Abordagens, métodos e instrumentos da análise empírica 61
2.1 Os indicadores como ferramentas de produção de conhecimento e de apoio à
decisão 62
2.1.1 Tipologias de indicadores 63
2.1.2 Funções e impacto dos indicadores 68
2.2 A investigação baseada em sistemas de indicadores objectivos 72
2.2.1 Operacionalização do conceito de qualidade de vida 72
2.2.2 Recolha dos dados de base 76
2.2.3 Tratamento da informação 77
2.3 A investigação baseada em indicadores subjectivos 80
2.3.1 A medição do bem-estar subjectivo 82
2.3.2 Os novos desafios na medição do bem-estar subjectivo 84
3 Avaliar a qualidade de vida urbana 90
3.1 Valores e referenciais normativos 91
3.2 Experiências de avaliação 96
3.2.1 Análises comparadas entre cidades 97
3.2.2 Projectos à escala local 106
3.2.3 Análises intra-urbanas 114
3.3 Alguns constrangimentos e desafios à investigação aplicada sobre qualidade de
vida urbana 119
2ª PARTE – A avaliação da qualidade de vida na cidade do Porto 123
Introdução 125
4 Modelo de análise e opções metodológicas 125
4.1 Qualidade de vida quotidiana: as preocupações e a orientação da abordagem 125
4.2 O referencial geográfico 132
4.3 Metodologia da avaliação empírica 134
5 Avaliação por domínios: a situação de referência e as variações espaciais 142
5.1 Condições do quadro de vida de proximidade 144
5.1.1 Habitação 145
5.1.1.1 Enquadramento 145
5.1.1.2 Condições de habitação na cidade 148
5.1.1.3 Disparidades intra-urbanas 152
5.1.2 Ambiente 158
5.1.2.1 Enquadramento 158
5.1.2.2 O estado actual do ambiente urbano 162
5.1.2.3 Disparidades intra-urbanas 172
5.1.3 Espaços verdes 176
5.1.3.1 Enquadramento 176
5.1.3.2 Os espaços verdes do Porto 180
5.1.3.3 Disparidades intra-urbanas 183
5.1.4 Equipamentos e serviços de proximidade 190
5.1.4.1 Enquadramento 190
5.1.4.2 Níveis de dotação 193
5.1.4.3 Disparidades intra-urbanas 202
5.1.5 Mobilidade 209
5.1.5.1 Enquadramento 209
5.1.5.2 As condições de mobilidade interna 214
5.1.5.3 Disparidades intra-urbanas 222
5.1.6 Segurança 227
5.1.6.3 Disparidades intra-urbanas 234
5.2 Condições individuais 240
5.2.1 Rendimento e nível de vida 240
5.2.1.1 Enquadramento 240
5.2.1.2 Situações de vulnerabilidade à pobreza à escala local 245
5.2.1.3 Disparidades intra-urbanas 249
5.2.2 Emprego e condições laborais 253
5.2.2.1 Enquadramento 253
5.2.2.2 O panorama do mercado de emprego 257
5.2.2.3 Disparidades intra-urbanas 266
5.2.3 Educação 269
5.2.3.1 Enquadramento 269
5.2.3.2 Perfil de qualificação dos recursos humanos 273
5.2.3.3 Disparidades intra-urbanas 280
5.2.4 Saúde 283
5.2.4.1 Enquadramento 283
5.2.4.2 O estado de saúde da população residente 288
5.2.4.3 Disparidades intra-urbanas 299
5.2.5 Família e relações sociais 304
5.2.5.1 Enquadramento 304
5.2.5.2 Os padrões de organização da vida familiar 310
5.2.5.3 Disparidades intra-urbanas 319
6 Os padrões espaciais das disparidades – uma visão de síntese 324
6.1 A abordagem da fragmentação urbana 324
6.2 A geografia das disparidades 327
6.2.1 Tendências gerais 327
6.2.2 Uma tipologia territorial 330
Conclusão 349
1 O itinerário da investigação, os seus principais resultados e utilidade 350
2 Limitações da análise desenvolvida e perspectivas futuras de desenvolvimento 355
3 Condições em que os dispositivos de avaliação da qualidade de vida podem dar
um contributo relevante para uma nova geração de políticas urbanas 359
Índice de Figuras 365
Índice de Quadros 369
Índice de Gráficos 373
Introdução geral
“Thus, at their best, these social benchmarks systems are not simply a monitoring device, a new management tool or a better statistical system, although they should be all of these. They can be a process for communities and governments to define the goals and values that are important to them, and measure progress towards their achievement, by a process that is open and participatory. Potentially, therefore, they are a means for better governance, better communities and better democracy.”
Salvaris et al. (2000)
1 Delimitação do campo de investigação
Se é verdade que, no plano económico, o modelo urbano actual, em particular o europeu, surge dominantemente associado à ideia de prosperidade – com a riqueza, o conhecimento, o potencial de inovação e o emprego qualificado a concentrarem‐se cada vez mais nas cidades –, no plano das condições de vida e de bem‐estar dos cidadãos a realidade é marcada por tendências contraditórias, não existindo, por isso, uma ideia tão consensual quanto à eficácia do seu desempenho para oferecer qualidade de vida às pessoas. Por um lado, são inegáveis as melhorias registadas ao longo do tempo em muitos aspectos da vida quotidiana: melhorou a qualidade e conforto das habitações, alargou‐se muito a oferta de serviços especializados na área da saúde e da educação, as redes de equipamentos para o desporto e o lazer foram reforçadas, a vida cultural é mais diversificada e vibrante e o acesso a bens considerados não essenciais aumentou. Podem, no entanto, ser dados vários outros exemplos que ilustram evoluções de sinal oposto. As agressões de que é alvo o meio natural, em consequência da trajectória de crescimento dos níveis de consumo, manifestam‐se de forma severa na degradação da qualidade do ambiente urbano e, apesar do prolongamento do tempo de vida, há uma deterioração das condições de saúde associada aos problemas de poluição e aos estilos de vida, nomeadamente ao stress da vida urbana. A compatibilização entre a vida profissional e a vida familiar representa um domínio de preocupação no contexto da cidade contemporânea, com a gestão do tempo a constituir um dos grandes desafios da vida de todos os dias.
Além de todas estas tendências, empiricamente analisadas em documentos como o relatório da Comissão Europeia “State of European Cities Report” (ECOTEC, 2007) ou o relatório produzido pela Agência Europeia de Ambiente “Ensuring the quality of life in Europe’s cities and towns” (EEA, 2009), cresce a certeza de que os ganhos obtidos em matéria de qualidade de vida não se encontram distribuídos de forma equitativa pela população, sendo justamente as cidades os territórios que exibem as disparidades mais acentuadas. No seu interior, são patentes diferenças muito marcadas
nos níveis de rendimento, nas taxas de desemprego (sobretudo de longa duração), nas condições habitacionais e nos níveis de educação. Os contrastes são, na verdade, muito evidentes quando se confrontam áreas distintas de um mesmo centro urbano ao nível da qualidade do ambiente e do espaço construído, dos índices de insegurança e, sobretudo, da pobreza.
Estes são traços da situação actual que se encontram já bem identificados e descritos, mas, entretanto, há mudanças em curso – e com um ritmo muito intenso – que se prevê venham a produzir mutações significativas no quotidiano dos indivíduos e das comunidades, mas cujos efeitos concretos ainda não é possível determinar com grande rigor e profundidade. As transformações que se estão a operar ao nível das estruturas etárias e familiares, da organização do trabalho, da utilização das tecnologias de informação e comunicação (TIC), dos modelos de provisão de serviços públicos e do próprio sentido de comunidade no contexto da transição de uma sociedade de consumo individualista para uma sociedade pós‐consumidora, são apenas algumas tendências, de natureza muito distinta, que tornam mais complexo o exercício de qualificar o sentido da evolução que está a ter lugar.
Identificar os mecanismos de actuação daquelas que são hoje em dia as grandes determinantes individuais e colectivas da qualidade de vida urbana, avaliando os seus efeitos nas dimensões temporal e espacial, representa um amplo campo de análise para a comunidade académica, que se liga a uma preocupação central dos poderes públicos e dos cidadãos, em geral. Com efeito, perante a metamorfose da realidade urbana e das tensões a que esta se encontra submetida, faz‐se sentir um grande apelo para que se repensem as ideias sobre as melhores formas de organizar a vida colectiva e de se promover uma equilibrada partilha das condições e das oportunidades dadas aos indivíduos para que estes possam desenvolver projectos de vida gratificantes, isto é, como afirmou Sen, “to do valuable acts or reach valuable states of being” (Sen, 1993, p. 30).
Para que se possa planear e intervir eficazmente ao nível urbano, melhorando o bem‐estar e reduzindo as desigualdades sócio‐espaciais, torna‐se necessário dispor de novos auxiliares para suporte da decisão. A construção de respostas para os desafios actuais, em termos de políticas públicas, encontra‐se, na verdade, estreitamente ligada à informação que estiver disponível sobre as condições de vida e as experiências das pessoas no seu dia‐a‐dia. E a exigência sobre a natureza e a qualidade desta informação tem vindo a crescer. Como referem Anderson et al. (2009, p. 1): “Appropriate measures will demand intelligence not only on objective conditions or the social situation, but also regarding how people feel about their conditions, their concerns and priorities”.
Apesar das circunstâncias presentes darem uma nova relevância à pesquisa no campo da avaliação da qualidade de vida, esta tem já um percurso histórico de algumas décadas e uma série de conquistas alcançadas, quer ao nível do debate teórico e da delimitação do próprio conceito – sujeito a múltiplas interpretações e aplicado em contextos muito variados –, quer ao nível das abordagens metodológicas para a sua medição. Sobretudo ao longo dos últimos cinquenta anos, múltiplos estudos têm proposto, às mais diversas escalas e usando diferentes perspectivas, referenciais de avaliação multidimensionais e métricas associadas que constituem alternativas à visão tradicional do progresso, baseada quase exclusivamente na componente do crescimento
Neste âmbito, uma das abordagens mais adoptadas é a que se baseia na construção de conjuntos de indicadores sociais objectivos, seleccionados de modo a contemplar as diferentes condições materiais e imateriais da qualidade de vida e que se possam revestir de particular significado face aos propósitos da análise em causa. Com base na leitura da evolução destas medidas torna‐se possível apreciar o sentido e a intensidade das mudanças ocorridas nas várias dimensões consideradas, sendo que subjacente a este exercício está sempre um compromisso entre, por um lado, a necessidade de coligir um número de parâmetros que não seja demasiado extenso de modo a permitir uma leitura de conjunto e, por outro, a necessidade de não enveredar por simplificações excessivas e enviesadoras da própria realidade.
A abordagem subjectiva que, desde a década de 70, constitui a matriz de uma outra ampla frente de trabalhos tem, por seu lado, permitido aprofundar o conhecimento sobre os sentimentos das pessoas face aos seus quotidianos, não só no que diz respeito às características do contexto social, económico e ambiental em que vivem, mas também quanto aos valores, preferências e aspirações que manifestam. Os estudos sobre felicidade e satisfação pessoal têm feito aumentar o acesso a medidas de bem‐estar baseadas na percepção dos indivíduos, cada vez mais tidas como necessárias e complementares face aos sistemas de indicadores de natureza objectiva.
A construção de índices sintéticos, mais ou menos sofisticados, baseados numa selecção reduzida de descritores estatísticos ou, noutros casos, envolvendo as próprias opiniões dos cidadãos, tem sido igualmente um dos resultados da investigação produzida, com grande aplicação no campo das análises comparativas e do estabelecimento de rankings, designadamente a nível internacional. Apesar de todos os esforços de conceptualização da noção de qualidade de vida e de formulação de medidas, reconhece‐se que há ainda muito a fazer no sentido de tornar os seus resultados verdadeiramente úteis e aplicáveis nos processos de governação dos territórios, às mais diversas escalas. Essa é uma aposta que deve continuar a ser feita, como o demonstra um conjunto de iniciativas que têm vindo a surgir, entre as quais a Conferência “Beyond GDP”1, organizada pela Comissão Europeia e realizada em 2007, o convite do Presidente Sarkozy aos especialistas Stiglitz, Sen e Fitoussi, em 2008, para coordenarem uma unidade de reflexão designada “The Commision on the Measurement of Economic Performance and Social Progress”2 ou o actual Projecto “Measuring the Progress of Societies”3 da OCDE, no qual têm vindo a participar activamente várias instituições internacionais, a comunidade académica, governos a diferentes escalas e muitas organizações não governamentais.
No que diz directamente respeito às cidades, constata‐se facilmente que muita da actividade corrente do planeamento urbano e de tomada de decisão não incorpora estes desenvolvimentos.
1
Informação sobre esta iniciativa encontra-se disponível em http://www.beyond-gdp.eu/. 2
Pode aceder-se ao trabalho desta Comissão em http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr/en/index.htm. 3
Desde logo, não são sistematicamente tidos em conta os impactos na qualidade de vida das medidas de política e dos projectos de intervenção que, na generalidade dos casos, continuam a ser concebidos e avaliados segundo lógicas exclusivamente sectoriais e não numa perspectiva abrangente de bem‐estar. Aquilo que se observa é que, ao mesmo tempo que o conceito de qualidade de vida se afirma como uma meta consensual assumida pelos poderes públicos, na qual se revêem os restantes actores urbanos e as populações em geral – ainda que a maior parte das vezes enunciada de uma forma abstracta e imprecisa –, há ainda um longo caminho a percorrer no que toca ao desenvolvimento de instrumentos que possam, na prática, ajudar a melhor orientar as políticas nessa direcção e a avaliar o seu desempenho efectivo.
Esta insatisfação tem levado a que nos anos mais recentes se tenha instalado um debate sobre os novos rumos para os estudos baseados em indicadores de qualidade de vida no sentido de os tornar mais capazes de sustentar a actividade dos decisores técnicos e políticos.
Stiglitz, Sen e Fitoussi (2009) apresentam uma sistematização das direcções em que importa avançar na investigação, destacando três grandes desafios que se colocam, transversalmente, às várias linhas de abordagem que têm vindo a debruçar‐se sobre o tema da qualidade de vida. Um desses desafios decorre da ideia de que para melhorar as condições de vida e de bem‐‐estar não basta monitorizar indicadores sobre múltiplas tendências relacionadas com a sociedade, a economia e o ambiente. Importa complementar esta aproximação mais descritiva com ferramentas analíticas e com métodos de avaliação que evidenciem o modo como as diferentes dimensões da qualidade de vida se combinam e interactuam entre si. Atender às relações entre o comportamento dos indicadores no quadro de uma visão holística da qualidade de vida afigura‐se fundamental para que se possa formular objectivos operacionais, estabelecer estratégias integradas de intervenção e, por outro lado, tirar conclusões sobre o próprio impacto das políticas e das medidas levadas à prática. A este propósito, Stiglitz, Sen e Fitoussi (2009, p. 206), constatam: “Moving beyond this ‘silo thinking’ in policy making is one of the greatest appeals of the broad notion of quality of life” . Um outro desafio prende‐se com a necessidade de se produzirem medidas agregadas de qualidade de vida. Apesar de existir hoje em dia uma forte convicção geral de que não é possível chegar a um índice único que atenda a todas as vertentes e dimensões que têm vindo a ser associadas ao conceito, reconhece‐se a importância de não limitar as abordagens à utilização de indicadores por domínio e continuar a desenvolver esforços no sentido de sintetizar a informação. Existem já vários exemplos de medidas agregadas cuja utilidade é patente, para fins e aplicações bem determinadas, e que abrem boas perspectivas para novos desenvolvimentos neste campo.
Finalmente, o terceiro desafio emerge ligado à importância cada vez mais atribuída às preocupações relacionadas com as disparidades.
Muitas das experiências de avaliação da qualidade de vida oferecem um panorama da situação baseado em médias, omitindo aqueles que por vezes são contrastes muito marcados em termos das experiências do dia‐a‐dia das pessoas. Nesse sentido, é sublinhada a importância de se
desenvolverem metodologias e análises que permitam dar conta das desigualdades existentes, entre indivíduos, entre lugares ou entre gerações.
2 A natureza e os objectivos da abordagem adoptada
Como se verá de seguida, a todos estes desafios se procurou atender na dissertação que agora se apresenta.
Enquadrando‐se na linha de trabalhos que procuram avaliar a qualidade de vida urbana, nela se privilegia, no entanto, como objecto central da investigação, o fenómeno das disparidades espaciais. A área analisada diz respeito à cidade do Porto.
O objectivo central definido, orientador de todo o processo de pesquisa, foi o de proceder à identificação e caracterização de padrões espaciais que reflectissem a variação actual das condições de vida e de bem‐estar no centro urbano.
Este tema, não sendo novo no contexto da geografia urbana4, mantém‐se, como atrás se viu, actual e relevante, face às mudanças económicas, sociais e ambientais em curso que tendem a acentuar as diferenças entre grupos sociais e entre lugares dentro das cidades – produzindo fenómenos graves de fragmentação espacial – e à necessidade de dar respostas, em termos de políticas, a estes desafios. Com efeito, melhorar a qualidade de vida urbana e combater as desigualdades requer, em muito casos, respostas que terão que ser desenhadas e implementadas, à escala local, no contexto da própria comunidade5. Daí que identificar e compreender os padrões das disparidades intra‐ urbanas da qualidade de vida constitua um suporte fundamental para a concepção de estratégias e para a definição de prioridades de intervenção à escala do quarteirão, do lugar, da unidade de vizinhança. Conhecer melhor as diferenças existentes no que respeita às condições de vida e de bem‐estar constitui um input fundamental para que possa emergir uma nova geração de políticas menos “standardizadas” e, inversamente, inovadoras, integradas, desenhadas de acordo com combinações específicas de problemas, potencialidades, recursos e actores. Mais próximas do quotidiano das pessoas, este tipo de abordagens pode revelar‐se, por outro lado, como uma via para inverter o seu crescente distanciamento face às causas colectivas e cívicas, promovendo uma maior participação e co‐responsabilização das comunidades e dos cidadãos individualmente nos processos de desenvolvimento urbano. Esta neighbourhood agenda, caracterizada pela preponderância das abordagens multissectoriais e pela participação ampla da comunidade no âmbito de projectos de intervenção de base territorial, tem já, de resto, vindo a ser assumida ao
4 Constituem uma referência incontornável os trabalhos de M. Pacione dedicados às desigualdades em grandes áreas urbanas, com particular enfoque na delimitação das situações mais desfavoráveis do espectro da qualidade de vida urbana (Pacione, 1995; 2003b).
5
Nas conclusões do “5º relatório da Comissão Europeia sobre a coesão económica, social e territorial: o futuro da política de coesão” (CE, 2010) encontra-se claramente expressa esta necessidade de se reforçar o papel das comunidades locais na concepção e aplicação das estratégias de desenvolvimento urbano.
nível da política urbana de alguns países, com mais vigor a partir dos anos 90, nomeadamente em França (“Grands Projects de Ville”), no Reino Unido (“New Deal for Communities”), na Dinamarca (“Danish Urban Regeneration Experiment”), na Suécia (“Local Development Agreements”) e na Alemanha (“The Socially Integrative City”). Em Portugal, esta perspectiva encontra‐se actualmente presente no quadro da actual política urbana nacional, estando subjacente à dimensão de intervenção “Regeneração Urbana” da Política de Cidades Polis XXI (2007‐2013). Reconhece‐se, contudo, que a actual crise económica terá efeitos na redução dos investimentos públicos e um forte impacto no quotidiano dos indivíduos e das comunidades. Tal facto vem reforçar mais a importância de se perceberem bem os problemas locais de modo a que o tempo e os escassos recursos financeiros sejam aplicados nos aspectos que possam ter uma influência mais decisiva nas suas vidas, no contexto de estratégias integradas, potenciadoras de inovação social e capazes de articular os interesses, frequentemente conflituais, dos diversos actores urbanos.
Uma visão aplicada está, assim, claramente subjacente a esta investigação, a qual, tendo por objectivo central identificar e caracterizar as disparidades intra‐urbanas no caso concreto da cidade do Porto, envolveu a montagem de um dispositivo mais abrangente para a avaliação da qualidade de vida local. Para a concretização desse dispositivo foi necessário fazer escolhas e desenvolver soluções operacionais relativamente a um conjunto de requisitos que à partida se colocaram, designadamente:
i. Clarificar um quadro de referência conceptual para a avaliação empírica da qualidade de vida de proximidade;
ii. Seleccionar uma escala geográfica compatível para a análise;
iii. Estabelecer uma metodologia para a determinação das disparidades;
iv. Conceber um conjunto de indicadores‐chave à escala intra‐urbana e desenvolver um sistema de informação de base para a avaliação da qualidade de vida local;
v. Definir um método para chegar a uma visão de síntese da diferenciação territorial.
Importa sublinhar que analisar as variações da qualidade de vida no interior das cidades implica um grande esforço de recolha de dados e de compatibilização de múltiplas fontes, o que explicará, certamente, que este tipo de estudos seja ainda pouco comum, designadamente no contexto nacional. Os trabalhos de Marques (2004) e Ferrão e Guerra (2004), usando vastos conjuntos de indicadores, fornecem uma avaliação da qualidade de vida para todos os municípios portugueses, mas, em ambos os casos, a escala privilegiada é a concelhia. O próprio Município do Porto tem vindo a desenvolver um observatório da qualidade de vida urbana, baseado num painel de mais de 70 indicadores6, mas quase todo o acompanhamento de tendências evolutivas que é feito diz respeito à trajectória global do concelho/cidade.
6
Informação sobre este projecto, intitulado “Sistema de Monitorização da Qualidade de Vida Urbana”, encontra-se disponível em http://www.cm-porto.pt/gen.pl?sid=cmp.sections/915.
Apesar de serem ainda significativas as lacunas nos elementos estatísticos oficiais quando se pretende realizar pesquisas a escalas geográficas mais desagregadas7, o que é facto é que se tem vindo a assistir a uma crescente abertura de muitas instituições (públicas e privadas) detentoras de dados relevantes para a caracterização das condições locais no sentido de disponibilizarem conteúdos das suas bases de dados, por iniciativa própria (por exemplo, através dos seus sítios electrónicos) ou na sequência de pedidos que lhes são dirigidos. Este acesso a bases de dados sectoriais – que frequentemente, contêm referências geográficas como a rua, o número de polícia ou já se encontram mesmo associadas a cartografia digital – e, em paralelo, a possibilidade de usar meios computacionais para integrar, agregar e analisar todos estes elementos (em particular os sistemas de informação geográfica), abrem novas possibilidades às avaliações intra‐urbanas da qualidade de vida. Tirar partido desse potencial e conseguir converter um manancial de variáveis dispersas e desarticuladas num dispositivo integrado e coerente de informação para apoio ao diagnóstico urbano, constituiu um desafio adicional assumido no âmbito da presente dissertação. Em síntese, os principais resultados que se procurou atingir com este trabalho foram os seguintes:
Ensaiar metodologias de análise que abram novas possibilidades para a leitura e compreensão da realidade urbana actual e possam alimentar plataformas multidimensionais de monitorização, de suporte à gestão estratégica e participada das cidades e à avaliação das políticas, potenciando uma maior usabilidade da informação estatística disponível à micro‐escala;
Aprofundar o conhecimento sobre a diversidade territorial da cidade do Porto, em matéria das condições de vida e de bem‐estar de todos os que nela residem, construindo uma imagem de conjunto das variações espaciais;
Evidenciar e caracterizar os principais contrastes e desigualdades que, a esse nível, se verificam, de modo a que as situações mais desfavoráveis possam ser objecto de atenção e intervenção prioritárias.
3 Estrutura e organização da dissertação
A presente dissertação encontra‐se estruturada em duas partes.
Na 1ª parte faz‐se uma revisão sumária dos esforços de conceptualização e das principais linhas de abordagem empírica que têm vindo a ser propostos ao longo dos cerca de 50 anos que leva a investigação moderna sobre qualidade de vida. Deste modo, pretende‐se contextualizar o quadro
7 Esta é uma situação que não caracteriza apenas a realidade portuguesa, generalizando-se à grande maioria dos países europeus, como ficou demonstrado pelo escasso número de variáveis que foi possível recolher à escala intra-urbana no âmbito do projecto “Urban Audit IV”. Os censos populacionais continuam a ser a fonte de informação mais rica quando se consideram unidades espaciais mais desagregadas.
teórico e metodológico adoptado para a avaliação da qualidade de vida na cidade do Porto, a que se dedica a 2ª parte do trabalho. No capítulo 1 aborda‐se o conceito de qualidade de vida. Situam‐se as suas origens e traça‐se uma breve panorâmica da evolução a que tem estado sujeito para melhor evidenciar as perspectivas que influenciam o debate teórico na actualidade. Distinguem‐se várias esferas de aproximação ao tema e referenciam‐se algumas das tentativas concretas de modelização, no plano conceptual. Termina‐ se este capítulo a sustentar a sua relevância como potencial referencial unificador das políticas urbanas, em particular à escala dos territórios de proximidade.
As principais linhas de avaliação empírica são sistematizadas e confrontadas entre si no capítulo 2. Antes de se entrar propriamente no retrato do actual estado da arte no campo da investigação sobre qualidade de vida faz‐se uma reflexão mais geral sobre o uso de indicadores como ferramentas de produção de conhecimento científico e como instrumentos, cada vez mais generalizados, de suporte à tomada de decisão.
Conclui‐se a 1ª parte do trabalho com o capítulo 3 dedicado concretamente à avaliação da qualidade de vida em cidades. Sendo culturalmente relativa, a definição de qualidade de vida tem forçosamente que se enquadrar em referenciais normativos, em valores largamente partilhados. Este é o ponto de partida do capítulo 2 que se debruça sobre esta questão e procura identificar alguns dos pilares que, no contexto da sociedade europeia actual, reúnem um consenso alargado e que, sendo localmente traduzidos em objectivos claros e transparentes de desenvolvimento, podem sustentar os exercícios de avaliação e monitorização da qualidade de vida em cidades. Seguidamente ilustram‐se algumas experiências de investigação aplicada desenvolvidas a diferentes escalas. Procura‐se colocar em evidência o âmbito destes trabalhos e o tipo de resultados obtidos para, a partir daqui, tecer alguns comentários sobre aqueles que são desafios e constrangimentos que continuam a verificar‐se e que reclamam uma atenção particular por parte da investigação futura.
A 2ª parte do trabalho é integralmente dedicada à avaliação da qualidade de vida na cidade do Porto e nela se incluem os capítulos 4, 5 e 6.
O capítulo 4 estabelece o referencial conceptual e metodológico que sustenta o trabalho empírico conduzido no âmbito desta dissertação. Reconhece‐se, em primeiro lugar, que não obstante os indivíduos se deslocarem cada vez mais, e por motivos muito diversos, a qualidade de vida continua a ser, para a maioria das pessoas, uma experiência local, relacionada com a inserção numa comunidade e num espaço de proximidade. De seguida, procura‐se clarificar que a perspectiva conceptual adoptada – partindo da ideia de que a qualidade de vida tem a ver com múltiplas condições em que se desenrola o quotidiano das pessoas, mas também com as oportunidades de escolha de que estas desfrutam – assume que esta é o resultado de um processo cumulativo complexo em que ocorrem múltiplas interacções entre os vários domínios que concorrem para o bem‐estar humano. Descreve‐se o modelo de análise concreto estabelecido para a avaliação da qualidade de vida de proximidade, o qual surge estruturado em dois grandes blocos (condições
se as escolhas que conduziram até ele. A preocupação central de analisar as disparidades intra‐ urbanas no Porto tornou necessária a escolha de uma unidade espacial de análise, compatível com o exercício em causa, mas também viável do ponto de vista da recolha de informação empírica. A escolha assumida de utilização das secções estatísticas do INE é, igualmente, debatida no capítulo 4, o qual conclui com uma descrição detalhada da metodologia usada para o desenvolvimento da abordagem empírica. Discutem‐se, em particular, as opções assumidas de privilegiar o recurso a indicadores de natureza objectiva, bem como de recorrer a indicadores‐chave para se medirem as desigualdades e se construir a uma visão de síntese da qualidade de vida de proximidade.
O capítulo 5 é inteiramente dedicado à apresentação dos resultados a que se chegou na sequência de uma primeira análise da variação intra‐urbana da qualidade de vida, conduzida numa lógica sectorial. Para cada um dos onze domínios incluídos no modelo de análise – habitação, ambiente, espaços verdes, equipamentos e serviços de proximidade, mobilidade e segurança, referentes às condições territoriais, e rendimento e nível de vida, emprego e condições laborais, educação, saúde e família e redes sociais, referentes às condições individuais – é desenvolvida uma caracterização da situação da cidade e das disparidades observadas a nível intra‐urbano, apoiada por cartografia. Em cada um dos casos, esta apresentação de resultados é antecedida por um breve enquadramento do domínio em causa, realizado a partir da literatura especializada, em que se identificam os mecanismos causais através dos quais este interfere na qualidade de vida dos cidadãos e que funciona como quadro de referência para a abordagem analítica conduzida e para a leitura e compreensão dos resultados empíricos. A importância concreta que os residentes na cidade do Porto atribuem a cada um dos domínios enquanto determinantes do seu bem‐estar individual – de acordo com dados obtidos através de um inquérito municipal – é ainda apresentada neste capítulo 5.
Após a leitura da variação intra‐urbana nos diferentes domínios privilegiados no modelo de análise adoptado, apresenta‐se, no capítulo 6, uma visão integrada dos contrastes espaciais existentes no centro urbano. Antes de se entrar, propriamente, na discussão dos resultados obtidos, situa‐se a abordagem desenvolvida no contexto mais geral do estudo da fragmentação urbana. Assinala‐se a sua divergência do mainstream das análises orientadas exclusivamente para as áreas urbanas em declínio e enfatiza‐se, quer o seu carácter extensivo, procurando dar conta da pluralidade de realidades que caracterizam a cidade contemporânea, quer o seu enfoque mais abrangente, atento à identificação dos problemas mas também das vantagens e das oportunidades das diferentes áreas. Segue‐se a apresentação dos padrões da diferenciação intra‐urbana e discute‐ se o que estes exprimem em termos dos desequilíbrios actuais das condições de vida e de bem‐ estar da população. Relativamente à imagem resultante – baseada na classificação das unidades de análise (secções estatísticas) segundo uma tipologia de síntese construída de modo a traduzir as principais combinações entre condições do quadro de vida de proximidade e condições individuais das quais resultarão, certamente, experiências de vida quotidiana distintas – sinalizam‐se as situações mais desfavoráveis e questionam‐se as suas perspectivas de evolução futuras.
No final, procede‐se à apresentação das conclusões principais desta dissertação e debatem‐se as condições em que dispositivos de avaliação da qualidade de vida à escala intra‐urbana podem dar um contributo relevante para uma nova geração de políticas urbanas.
1ª PARTE – Qualidade de vida urbana: o quadro teórico
e a avaliação empírica
1 As origens e a evolução do conceito de qualidade de vida
2 Abordagens, métodos e instrumentos da análise empírica
3 Avaliar a qualidade de vida urbana
Introdução
É grande o interesse que, ao longo dos anos, o tema da qualidade de vida tem vindo a despertar, quer ao nível da investigação mais teórica, quer ao nível da análise empírica. Tal não significa que exista hoje uma unanimidade quanto a uma definição precisa do conceito ou quanto às formas de o medir. Pelo contrário, o facto de a qualidade de vida emergir como um foco de atenção por parte de várias disciplinas – do domínio das ciências sociais, da psicologia, da medicina, (…) –, encarada, umas vezes, ao nível do indivíduo, outras ao nível de comunidades, tem contribuído para a proliferação de noções e de abordagens, por vezes muito distintas8.Ao longo dos três capítulos iniciais que constituem a 1ª parte da dissertação procura‐se sistematizar as principais perspectivas e orientações que marcam hoje em dia a pesquisa sobre qualidade de vida no plano teórico (capítulo 1), no plano metodológico (capítulo 2), e no plano da investigação aplicada em cidades (capítulo 3), traçando o quadro de referência indispensável para situar e fundamentar as bases conceptuais e a abordagem empírica adoptadas na análise do caso de estudo, desenvolvido na 2ª parte desta dissertação.
A visão que se dá do debate em curso é necessariamente parcial, uma vez que se seleccionaram as abordagens que se consideraram mais relevantes, na perspectiva do trabalho desenvolvido nesta dissertação. De fora ficam, assim, contributos teóricos e metodológicos importantes, muitos dos quais identificados e debatidos em exercícios de sistematização anteriores, contidos, designadamente, nos trabalhos de Phillips (2006), Setién (1993) e Sirgy et al. (2006) ou ainda, no caso de publicações portuguesas, de Ferrão (2004), Marques (2004) e Pinto (2005).
Esta componente do trabalho foi essencialmente desenvolvida a partir de uma revisão de literatura especializada que é, nesta altura, muito extensa e fragmentada. Para além de várias obras teóricas dedicadas ao tema, publicadas sobretudo ao longo das duas últimas décadas, tem vindo a assistir‐ se a uma proliferação de artigos empíricos em publicações e revistas científicas, dispersos por múltiplas áreas disciplinares. Acresce a este volume de materiais um outro manancial de documentação, grande parte dele orientado para as questões metodológicas e de avaliação, produzido por organismos e instituições internacionais9. Entre estes, cabe destacar a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a própria União Europeia (EU), em particular através da Agência Europeia do Ambiente (EEA) e da Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho (Eurofound).
8 No endereço http://www.deakin.edu.au/research/acqol/index.php do “Australian Centre on Quality of Life”, unidade de investigação inserida na Universidade de Deakin, encontra-se uma secção dedicada à exemplificação de como o conceito de qualidade de vida tem vindo a ser definido e aplicado por variadas disciplinas no âmbito da economia, das ciências sociais e da medicina.
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Madureira Pinto (2010) refere-se a este contributo dos “sistemas periciais”, assinalando o papel inovador que este tipo de instituições exteriores ao mundo académico tem desempenhado no processo de elaboração de conhecimento científico.
Relativamente a esta última, impõe‐se uma nota de destaque. Desde 2003, ano em que foi divulgado o relatório “Monitoring Quality of Life in Europe” (Fahey, Nolan e Whelan, 2003), que esta Fundação, através dos múltiplos trabalhos publicados, tem vindo a contribuir, não apenas para um melhor conhecimento das condições de vida e dos níveis de satisfação dos cidadãos europeus, mas também para um aprofundamento do debate teórico e metodológico em torno da própria avaliação da qualidade de vida no contexto da sociedade actual. Para além da literatura tradicional, a internet constituiu uma fonte importante para se poder aceder a outro tipo de suportes em que são apresentados desenvolvimentos que vão sendo produzidos ao nível da investigação aplicada. Sendo um repositório imenso de informação que oferece grandes potencialidades, a sua exploração exige métodos de trabalho particularmente rigorosos e procedimentos muito disciplinados.
1 As origens e a evolução do conceito de qualidade de vida
Qualquer revisão de literatura sobre o tema encontrará, certamente, referências à ausência de consenso sobre a definição de qualidade de vida. Um desentendimento epistemológico, como classifica Rogerson (1995) leva, na verdade, a que a expressão assuma uma multiplicidade de conotações: bem‐estar individual ou de grupos, satisfação com a vida, felicidade, nível de prosperidade de uma sociedade, condições de vida e amenidades de um território, ou mesmo condições de saúde de uma população.
A dificuldade de conceptualizar a qualidade de vida reflectirá, em larga medida, a sua complexidade enquanto construção multidimensional que remete para todo um conjunto de aspectos, materiais e imateriais, que contribuem para que as pessoas se sintam bem e se realizem no seu dia‐a‐dia. Também a circunstância de a qualidade de vida, pela sua natureza intrínseca, ser muito sensível ao factor tempo, acompanhando a transformação das necessidades, dos modelos culturais e dos valores, cria um factor adicional de dificuldade à estabilização do seu significado, sobretudo quando se pretende passar de formulações vagas e genéricas para definições mais claras e específicas. A somar a estes factores surge ainda o facto de ser uma noção trabalhada por diferentes disciplinas académicas, cada uma delas com um ângulo de abordagem próprio, decorrente das suas próprias origens, tradições e orientações actuais.
Apesar destes e de outros obstáculos que poderiam ser referidos, muitos têm sido os esforços levados a cabo no sentido de tornar o conceito de qualidade de vida uma construção mais robusta, capaz de enquadrar diferentes perspectivas e motivações na sua investigação.
1.1 As propostas iniciais
contribuir para essa qualidade. Na tentativa de situar cronologicamente as origens deste tipo de preocupações, autores como Diener e Suh (1997), Sirgy et al. (2006) ou Rapley (2003) recuam ao tempo dos antigos gregos para demonstrar que, pelo menos a partir desta altura, este tem sido um tema em permanente discussão num plano teórico‐filosófico.
No contexto das ciências sociais o debate e a investigação sobre o conceito de qualidade de vida irrompem, porém, muito mais tardiamente.
1.1.1 Monitorizar a realidade social: o enfoque nas condições de vida
Apesar de alguns trabalhos anteriores se terem dedicado à análise das condições sociais – destacando‐se, entre eles, o do sociólogo William Ogburn, em particular o seu relatório “Recent Social Trends”, de 1933, elaborado no âmbito do Comité de Investigação sobre Tendências Sociais, criado nos EUA pela Presidência Hoover (Massam, 2002) –, a verdade é que só é possível falar de uma frente de investigação sobre o tema a partir de meados da década de 6010.
É, de facto, só a partir desta altura que a expressão “qualidade de vida” ganha uma crescente difusão, coincidindo com o início de um debate público em torno daquela que passa a ser uma realidade evidente: o crescimento económico (que se vinha a registar) e o próprio desenvolvimento não se traduzem necessariamente na melhoria das condições de vida das populações. A clivagem cada vez maior entre países ricos e países pobres coloca em causa, inevitavelmente, o paradigma da “modernização”. Por outro lado, mesmo no conjunto dos países ricos, tornam‐se evidentes os desequilíbrios internos de natureza social, concretamente a persistência de bolsas de pobreza e, sobretudo nas áreas mais urbanizadas, a manifestação de um conjunto de realidades que, nesta fase, eram globalmente classificadas como problemas de congestão, por exemplo o aumento da criminalidade e da degradação de certas áreas (Martinotti in Nuvolati, 1998 ).
É também neste período que se começa a afirmar uma nova consciência sobre o ambiente, sobre os impactos do modelo de desenvolvimento em vigor e, sobretudo, sobre o consumo incontrolado dos recursos naturais finitos. Os trabalhos do Clube de Roma, em particular o relatório publicado em 1972, “Os limites do crescimento”, desenvolvido por um grupo de investigadores do MIT (Massachusetts Institute of Technology), contribuíram significativamente para que o ambiente e a sua preservação passassem a ocupar um lugar de destaque na agenda científica e política.
Todas estas realidades suscitam a investigação sobre a problemática da qualidade de vida, sobre os factores que a determinam e sobre as formas de promover a sua melhoria. À falência do crescimento económico como o grande objectivo da sociedade, contrapõe‐se, assim, uma crescente proeminência do conceito de qualidade de vida, o qual emerge como uma alternativa mais
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Os esforços precursores não tiveram sequência, em grande medida, devido à Grande Depressão e, depois, à Segunda Guerra Mundial, que desviaram a atenção da monitorização social para os indicadores económicos, os quais passaram a ser alvo de atenção, praticamente exclusiva, no decorrer dos anos 40 e 50.
complexa e multidimensional. Nestas discussões iniciais, as preocupações desdobravam‐se entre as condições individuais e a qualidade da própria sociedade: igualdade de direitos, oportunidades de participação, protecção de minorias (Zapf, 2000).
O PIB, proposto nos anos 30 por Kuznets, e desde essa altura usado não apenas como uma medida de progresso económico – finalidade para a qual foi originalmente criado – mas como uma proxy do bem‐estar da sociedade, é vigorosamente posto em causa. Entre os factores que o tornam desadequado para este efeito e que suscitam grandes críticas conta‐se, desde logo, a circunstância de contabilizar as transacções monetárias relacionadas com a produção de bens e serviços independentemente de estas contribuírem ou não para a qualidade de vida das pessoas. Com efeito, nesta contabilidade não se diferenciam custos de benefícios e trata‐se de igual modo as actividades que promovem o bem‐estar e aquelas que o ameaçam. Como chamam a atenção Cummins et al. (2003, p. 160): “(...) GDP includes, as positive addictions to the index, moneys spent fighting the breakdown of social structure, exploitative destruction of the natural environment, maintaining prisons, health care following drug abuse, and so on”. Uma outra limitação que se tornou evidente era a de que o PIB não atendia a um aspecto central, mesmo em termos monetários: a real distribuição do rendimento.
Surgem, neste final dos anos 60, várias publicações contendo propostas de sistemas de indicadores sociais com o objectivo de tornar a avaliação do progresso um exercício que não envolva apenas variáveis económicas e passe a atender a outras dimensões que influenciam a qualidade de vida das populações. De acordo com Sharpe (1999), uma das primeiras publicações a aparecer foi “Toward a Social Report”, documento criado pela Administração americana do Presidente Johnson, com o propósito de fornecer uma avaliação das condições sociais no país, tal como acontecia já com as condições económicas, tradicionalmente objecto de relatórios periódicos11.
Esta busca de novos instrumentos que pudessem ajudar a ultrapassar as visões exclusivamente baseadas em medidas económicas alimentou uma corrente de investigação nas ciências sociais que habitualmente é designada como “Movimento dos indicadores sociais”12. Iniciado nos EUA, este movimento alastrou para a Europa e floresceu ao longo dos anos 70, com vários países – EUA, Grã‐ Bretanha, França, Alemanhã e Holanda (Cobb e Rixford, 1998, cit. por Scrivens e Iasiello, 2010) – a publicarem relatórios de monitorização social. Em 1974 é lançada a revista Social Indicators Research, fundada por Alex Michalos, que desempenhou um importante papel na difusão da investigação produzida.
11 Vários autores, entre os quais Noll (2004), são mais precisos e referem que o que terá despoletado este movimento terá sido o interesse da Agência Espacial Norte-Americana (NASA) em recolher dados que lhe permitissem prever quais poderiam ser os efeitos do programa espacial na sociedade americana. A constatação de que não só a informação disponível era muito escassa como o quadro conceptual e metodológico que lhe estava associado era muito frágil terá constituído um impulso decisivo para esta investigação.
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Para a dinâmica deste movimento foi igualmente decisivo o papel activo assumido por várias agências internacionais, como é o caso do Banco Mundial, da OCDE, da OMS e das Nações Unidas (Alkire e Sarwar, 2009). No caso concreto da OCDE, esta organização instituiu, em 1970, um programa visando o desenvolvimento de indicadores sociais, o qual conduziu à “Lista de Indicadores Sociais da OCDE”, contendo 33 indicadores divididos por oito áreas principais: saúde, educação e aprendizagem, emprego e qualidade de vida no trabalho, tempo e lazer, bens e serviços disponíveis, meio físico, segurança das pessoas e administração da justiça, participação na vida colectiva (Pinto, 2005). Para além de um conjunto de medidas, este programa produziu uma série de linhas de orientação no sentido de ajudar os países membros a monitorizarem os fenómenos sociais.
Para os envolvidos neste movimento, este foi um período de grande entusiasmo face à possibilidade de modelização das estruturas e dos processos sociais (Land, 2001) e face à possibilidade de os indicadores se afirmarem como ferramentas verdadeiramente úteis na definição das estratégias e das prioridades dos governos, projectando a qualidade de vida como o grande enfoque das políticas públicas (Noll, 1996). Com efeito, esperava‐se que os indicadores sociais não assumissem apenas uma função de descrição das condições de vida e de monitorização de tendências evolutivas, mas também uma função de suporte directa à intervenção. Tal ideia encontra‐se claramente expressa na definição das Nações Unidas, invocada por Noll (2004, p. 153), em que os indicadores sociais eram caracterizados como “(…) statistics that usefully reflect important social conditions and their evolution. Social indicators are used to identify social problems that require action, to develop priorities and goals for action and spending, and to assess the effectiveness of programs and policies”.
Nos anos 80 a investigação em torno dos indicadores sociais perde vigor. O agravamento das condições económicas remete para segundo plano as preocupações sociais e leva mesmo à redução dos investimentos neste domínio por parte dos países e das agências internacionais que, antes, tinham sido grandes impulsionadoras deste tipo de projectos. Mas outros factores explicam também este declínio. Segundo Sharpe (1999), terá sido igualmente determinante o facto de se registar uma deriva para posições ideologicamente mais conservadoras13 e, em paralelo, a constatação de que, na prática, o recurso aos indicadores sociais por parte dos decisores era muito escasso e de que a sua utilidade para orientar as políticas ficava muito aquém das expectativas. Por seu lado, Scrivens e Iasiello (2010), baseando‐se em Cobb e Rixford (1998), acrescentam relativamente aos anteriores três outros argumentos: a incapacidade de se desenvolver uma métrica comum que permitisse agregar indicadores (algo equivalente ao dinheiro no caso das medidas económicas), a ausência de um quadro teórico abrangente que fosse integrador das várias dimensões analisadas pelos indicadores sociais e, finalmente, a impossibilidade de se dispor de um referencial normativo consensualizado, com base no qual as tendências observadas pudessem ser
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Esta deriva torna-se mais efectiva com a eleição de Ronald Reagan para a Presidência dos EUA e de Margaret Thatcher para líder do governo britânico.