Introdução É grande o interesse que, ao longo dos anos, o tema da qualidade de vida tem vindo a despertar,
1.2 Principais debates e fracturas em torno do conceito de qualidade de vida
1.2.2 A “desconstrução” do conceito: domínios da qualidade de vida
Como atrás se referiu, um dos pontos relativamente ao qual parece existir algum consenso prende‐ se com o reconhecimento de que a qualidade de vida representa uma construção multidimensional que não pode ser reduzida a um enfoque único, por exemplo ao do rendimento. Apesar do seu carácter holístico, aceita‐se, no entanto, que o conceito possa ser desconstruído em diferentes dimensões quando se pretende avançar no sentido da sua avaliação empírica. A controvérsia surge somente quando se tenta identificar quais as dimensões que devem ser tidas em conta. E, neste ponto, aquilo que se observa é uma grande variabilidade de propostas, quer em consequência de razões teóricas, quer em consequência de razões práticas.
Estão disponíveis na literatura vários ensaios de compilação de domínios da qualidade de vida que têm vindo a ser considerados pela investigação teórica e aplicada (Craglia et al., 1999; Cummins, 1996; Hagerty et al., 2001). A ideia de que é possível estabelecer uma lista única e consensual é, porém, vista com grande cepticismo, na medida em que, sendo a qualidade de vida culturalmente relativa não fazem sentido quaisquer esforços de generalização18, (Fahey, Nolan e Whelan, 2003). Factores de ordem ética e política concorrem também para que não possa ser estabelecida esta listagem única (Galloway, 2006). Por outro lado, a própria concepção de qualidade de vida adoptada tem implicações nos domínios seleccionados. Por exemplo, numa abordagem orientada para a avaliação dos níveis de satisfação considerar um domínio como “bem‐estar emocional” pode ser relevante, o que não acontecerá, certamente, se a perspectiva encarada valorizar apenas as condições de vida objectivas. Tal não significa, contudo, que não haja domínios que se repetem com mais insistência. Craglia et al. identificam aqueles que na literatura constituem uma espécie de “núcleo duro” (Quadro 1.3).
A propósito da grande diversidade de temas considerados na investigação sobre qualidade de vida, Nuvolati (1998) chama a atenção para o facto de este conceito revelar actualmente uma capacidade de integrar aspectos de natureza muito diferente. Este autor organiza essa diversidade e propõe uma classificação cruzando a dicotomia entre aspectos materiais/aspectos imateriais com a dicotomia entre aspectos individuais/aspectos colectivos.
No Quadro 1.4 indica‐se uma série de exemplos de domínios recorrentemente usados, de acordo com esta categorização.
Neste contexto, tem vindo a ganhar uma adesão cada vez maior a ideia de que a escolha dos domínios da qualidade de vida deve ser feita de acordo com os objectivos do exercício em causa, devendo ser seleccionados, em cada caso, os mais importantes tendo em atenção o contexto temporal e o quadro de valores subjacente à avaliação (EEA, 2009; Fahey, Nolan e Whelan, 2003; Stiglitz, Sen e Fitoussi, 2009). Também o nível a que a análise é desenvolvida – e que pode ir desde a abordagem centrada no indivíduo à abordagem de grandes comunidades – faz variar
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significativamente o tipo de aspectos que são considerados relevantes para a análise (Figura 1.2). Por exemplo, se numa avaliação da qualidade de vida à escala internacional o tema dos direitos humanos pode ser tido como relevante, num exercício à escala do lugar de vizinhança, ele dificilmente será eleito como prioritário. Inversamente, um tema como as redes interpessoais de vizinhança será certamente mais valorizado nas análises realizadas à escala dos territórios de proximidade.
Quadro 1.3 Principais domínios da qualidade de vida presentes na literatura Áreas de preocupação População Rendimento e riqueza Condições de saúde Habitação Disponibilidade de serviços Crime e patologias sociais Emprego e condições laborais Ambiente
Relações pessoais Participação
Fonte: Craglia et al. (1999, p. 15)
Do ponto de vista prático, são múltiplos os critérios que têm vindo a ser usados para seleccionar domínios. Nalguns trabalhos são assumidas grandes metas de progresso social definidas no âmbito de projectos nacionais ou internacionais de grande notoriedade e aos quais se reconhece legitimidade política – os objectivos do Milénio da ONU, por exemplo – ou, em alternativa, conjuntos de aspectos propostos pela investigação académica, como é, entre outros, o caso da lista de necessidades humanas proposto por Galtung e Wirak (Nuvolati, 1998). Noutras situações, a escolha é feita com base na auscultação da opinião de peritos técnicos ou na sequência de processos de participação pública em que as próprias populações dão a conhecer o que consideram ser os factores que mais contam para a sua qualidade de vida. Um outro tipo de critério utilizado acaba por ser, ainda, o da própria disponibilidade de informação de base, a qual, muito frequentemente, determina as temáticas que podem ser efectivamente eleitas para a análise.
Uma questão importante, mas que nem sempre tem sido tida em conta quando se debatem as definições operacionais de qualidade de vida, prende‐se com as relações que existem entre os
Apesar de fundamentais para se compreenderem realmente as condições e experiências de vida dos cidadãos, estas relações nem sempre são objecto de análise e de aprofundamento. Como referem Seed e Lloyd (1997, p. 130): “In most of the professional fields where quality of life is measured, the criteria and instruments emphasize areas of living, or domains, and place less emphasis on the connections between them”.
Quadro 1.4 Dimensões da análise da qualidade de vida
Aspectos materiais coletivos em termos da disponibilidade de serviços de base nos seguintes temas:
Saúde
Assistência social Ambiente
Segurança pública Escolaridade obrigatória
Comércio alimentar e transportes …
Aspectos materiais individuais relativos a condições pessoais/familiares dos indivíduos: Rendimento/riqueza Emprego Nível de instrução Condições habitacionais Condições de saúde Mobilidade de território …
Aspectos não materiais colectivos: Instrução superior/formação Actividades de lazer
Actividades para os tempos livres e desportivas Comércio de bens secundários
…
Aspectos não materiais individuais:
Relações privadas interpessoais a nível familiar Relações privadas interpessoais de amizade Ligação à comunidade
Participação/informação/nível cultural …
Fonte: Nuvolati (1993) in Nuvolati (1998, p. 31)
São vários os riscos associados à avaliação da qualidade de vida a partir da análise isolada de cada um dos domínios. Stiglitz, Sen e Fitoussi (2009) identificam, de forma muito clara, alguns dos problemas que se colocam quando não se adopta uma perspectiva relacional, recorrendo ao exemplo da interacção entre a saúde e o rendimento. Segundo estes autores, um primeiro problema
coloca‐se a nível conceptual: uma vez que a saúde e o rendimento constituem vertentes inseparáveis em qualquer formulação de bem‐estar humano, considerar apenas uma delas ignorando os efeitos que uma tem na outra nunca permitirá uma apreciação cabal da realidade. Por outro lado, do ponto de vista empírico, medir a saúde e o rendimento através de um processo aditivo simples não permitirá levar em linha de conta os impactos associados ao handicap duplo dos que estão doentes e, em simultâneo, são pobres, e inversamente às vantagens dos que são ricos e têm saúde. A interpretação destes resultados de forma combinada ou isolada pode ter grandes repercussões ao nível da concepção das políticas públicas, conduzindo ao estabelecimento de prioridades e de estratégias de actuação significativamente distintas.
Figura 1.2 Níveis de análise da qualidade de vida
Fonte: Adaptado de Seed e Lloyd (1997, p. 131)
Existem alguns esforços de investigação no sentido de abordar a qualidade de vida numa perspectiva verdadeiramente holística, em que as relações entre os vários domínios sejam consideradas de uma forma sistemática.
Tal abordagem é privilegiada, por exemplo, pela Fundação Europeia para as Condições de Vida e de Trabalho (Eurofound) na proposta que desenvolve de um quadro conceptual e metodológico para a monitorização da qualidade de vida na Europa (Fahey, Nolan e Whelan, 2003, p. 64): “This approach not only hights multidimentionality from the outset, but also lays heavy emphasis on casual and interactive processes. It broadens the range of topics to be monitored and points to the need for an analytical as well as descriptive dimension to the monitoring activity. It is only through the understanding of causal interactions between various dimensions of an individual’s situation in life that one can provide insight into processes of empowerment and freedom of choice”. Uma preocupação em atender às interacções entre os diferentes domínios está igualmente presente na proposta recentemente apresentada por Hall et al. (2010) de um quadro de referência para se avaliar o progresso social, desenvolvida no âmbito do projecto da OCDE “Measuring the Progress of
Societies”, anteriormente referido. Neste caso, o desafio assumido é o de monitorizar tendências registadas em domínios que constituem objectivos finais e objectivos intermédios do progresso, mas também em domínios que permitem analisar as relações entre os dois conjuntos anteriores e que são considerados fundamentais para se ter uma visão mais completa da evolução efectivamente ocorrida (Quadro 1.5).
Quadro 1.5 Quadro de referência para se medir o progresso social – Proposta de Hall et al. OBJECTIVOS FINAIS
Condição do ecossistema: resultados ambientais Solo (geosfera)
Água (hidrosfera) Biodiversidade (biosfera) Ar (atmosfera)
Bem-estar humano: resultados para as pessoas Saúde física e mental
Conhecimento Trabalho Bem-estar material Liberdade e autodeterminação Relações interpessoais OBJECTIVOS INTERMÉDIOS Economia Rendimento nacional Riqueza nacional Governança Direitos humanos
Envolvimento cívico e político Segurança
Confiança Acesso a serviços
LIGAÇÕES ENTRE OS DOIS CONJUNTOS DE OBJECTIVOS Gestão, uso, desenvolvimento e protecção de recursos
Extracção de recursos e consumo Poluição
Protecção e conservação de activos económicos e ambientais Serviços relacionados com os ecossistemas
Recursos e processos disponibilizados Impacto de acontecimentos naturais PERSPECTIVAS TRANSVERSAIS
Aspectos intrageracionais: igualdade/desigualdade
Aspectos intergeracionais: sustentabilidade/vulnerabilidade/resiliência