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TENSÕES INTERCULTURAIS E OS IMPACTOS NO PROCESSO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE/ CCBS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM- MESTRADO

Luiz Henrique Chad Pellon

TENSÕES INTERCULTURAIS E OS IMPACTOS NO PROCESSO

SAÚDE-DOENÇA NA POPULAÇÃO GUARANI MBYÁ DO MUNICÍPIO

DE ARACRUZ, ESPÍRITO SANTO

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Luiz Henrique Chad Pellon

TENSÕES INTERCULTURAIS E OS IMPACTOS NO PROCESSO

SAÚDE-DOENÇA NA POPULAÇÃO GUARANI MBYÁ DO MUNICÍPIO

DE ARACRUZ, ESPÍRITO SANTO

Orientadorª: Profª Drª Liliana Angel Vargas Co-orientador: Prof. Dr. José Ribamar Bessa Freire

RIO DE JANEIRO-2008

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para a obtenção do Título de Mestre em Enfermagem.

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Pellon, Luiz Henrique Chad.

P392t Tensões interculturais e os impactos no processo saúde-doença na

população guarani mbya do Município de Aracruz, Espírito Santo / Luiz Henrique Chad Pellon. – Rio de Janeiro, 2008. 243p.

Orientador: Liliana Angel Vargas. Orientador: José Ribamar Bessa Freire.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Programa de Pós-Graduação. Mestrado em Enfermagem.

1. Índios Guarani Mbya. 2. Saúde indígena. 3. Enfermagem

transcultural. 4. Pesquisa em enfermagem. I. Vargas, Liliana Angel. II. Freire, José Ribamar Bessa. III. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Programa de Pós-Graduação. Mestrado em Enfermagem. IV. Título.

CDD – 610.72

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Luiz Henrique Chad Pellon

TENSÕES INTERCULTURAIS E OS IMPACTOS NO PROCESSO

SAÚDE-DOENÇA NA POPULAÇÃO GUARANI MBYÁ DO MUNICÍPIO

DE ARACRUZ, ESPÍRITO SANTO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO como requisito para a obtenção do título de Mestre em Enfermagem.

Aprovada em______/_______/ 2008.

Banca Examinadora

Prof.______________________________________________________________- Presidente

Liliana Angel Vargas Drª em Saúde Coletiva

Prof._____________________________________________________-Primeiro Examinador

Ribamar Bessa Freire Dr. em Literatura Comparada

Prof._______________________________________________________________-Suplente

Armando Martins Barros Dr. em Educação

Profª____________________________________________________-Segunda Examinadora

Fátima Teresinha Scarparo Cunha Drª em Saúde Coletiva

Profª_______________________________________________________________-Suplente

Florence Romijn Tocantins Drª em Enfermagem

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Ao Grande Espírito de Luz que tudo vê, tudo

sabe e ilumina o meu caminho para caminhar;

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Agradeço aos Guarani, especialmente, ao amigo Marcelo (Wera Djeckupe) e à sua

família, por me propiciarem conhecer uma centelha do universo sagrado Mbyá; aos meus

filhos Íris Flora e Uirá Tupã que, com o brilho do seu sorriso renovam diariamente minha

alegria de viver; aos meus pais, pela dedicação e amor incondicional; aos meus irmãos ,

parentes e amigos que contribuíram para a realização desta obra; aos meus orientadores

Liliana Angel Vargas e José Ribamar Bessa Freire, pela conjugação de esforços e pelo

apoio nesta jornada; ao amigo Felipe Veiga, ao professor Armando Barros, à amiga

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Percebemos a paz de todo o universo dentro

do nosso coração, e à noite quando

olharmos as estrelas, poderemos ter

or-gulho de pertencer à humanidade desse

pequeno planeta. Cuidaremos da terra com

o carinho que ela merece porque sentiremos

que é como um jardim onde cultivamos não

só plantas, mas também nossas próprias

almas.

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PELLON, Luiz Henrique Chad. Tensões Interculturais e os impactos no Processo

Saúde-Doença na População Guarani Mbyá do Município de Aracruz, Espírito Santo. 2008.

243 p. Dissertação [Mestrado em Enfermagem]. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2008.

RESUMO

O Mbyá é um subgrupo Guarani que circula e habita historicamente em áreas de mata próximas ao litoral sul e sudeste do país onde possui relações com elementos materiais e simbólicos que lhe garante a sua reprodução enquanto povo, língua e cultura. O grupo que habita as terras de Aracruz, Espírito Santo, alcançou esta região na década de 1960 após 40 anos de caminhada sagrada (oguata) sob a condução de uma líder religiosa de grande proeminência entre seu povo, Tatati Yva Ete. Suas terras no Espírito Santo foram invadidas, desmatadas e transformadas em monocultura de eucalipto pela transnacional Aracruz Celulose, exceto pequena área que se encontra ao redor das aldeias. A inviabilidade para a agricultura tradicional, para a prática da caça e para a medicina tradicional devido à degradação das terras e ao repentino processo de urbanização dos arredores das aldeias tem feito com que os Guarani modifiquem suas estratégias de sobrevivência, estabelecendo parcerias e estreitando laços, na maioria das vezes, com instituições e serviços que não consideram sua peculiaridades culturais na forma de se relacionar com o processo saúde-doença. Com base nessas considerações, formulamos os seguintes objetivos da dissertação: identificar as formas como as tensões interculturais impactam o processo saúde-doença no grupo Guarani Mbyá de Aracruz, no Espírito Santo; analisar as contradições que surgem entre as propostas normativas e o cotidiano do grupo em foco e discutir os aspectos normativos nas políticas públicas que poderiam minimizar esses impactos. A metodologia qualitativa na forma de um estudo de caso, possibilitou a formulação de uma questionário semi-estruturado que foi realizado com agentes de saúde, lideranças e educadores Guarani dessas aldeias. Para a leitura dos dados foi utilizado o referencial teórico de Bakhtin e a análise se apoiou nas propostas normativas que versam sobre os direitos dos povos indígenas em âmbito nacional e internacional. Os dados foram reveladores em apontar a ausência de estratégias de fortalecimento das estruturas determinantes de qualidade de vida e saúde e a incapacidade do poder público em atender condignamente as necessidades mais amplas em promoção, proteção e recuperação da saúde indígena. Esta situação, aliada à escassez dos recursos naturais impossibilita aos índios desenvolverem suas práticas autóctones de atenção à saúde e traduz-se em uma precária situação sanitária, onde despontam elevados índices de doenças relacionadas com a falta de infra-estrutura econômica, social, e ambiental.

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PELLON, Luiz Henrique Chad. Intercultural tensions and impacts in health-disease case

in Guarani Mbyá population of Aracruz council, Espírito Santo. 2008. 243 p. Dissertação

[Mestrado em Enfermagem]. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

The Mbyá is a Guarani sub-group that circulates and inhabits zones of bush next to the south and southeastern coast of Brazil where it has relations with material and symbolic elements that guarantee its reproduction as people, language and culture. The group that inhabits lands of Aracruz, Espirito Santo, reached this region in the decade of 1960, after 40 years of sacred (oguata) walk under the Tatati Yva Ete religious leader conduction. Its lands in Espirito Santo had also been invaded, deforested and transformed into eucalypt cultivation by the transnational Aracruz Cellulose, except a small portion located around the villages. The uncapacity for traditional agriculture due to degradation of lands, the loss of its traditional pharmacy, practical of hunting and the sudden process of urbanization of the outskirts of the villages made the Guaranis modify their strategies of survival, establishing partnerships and relationships most of the time with institutions and services that do not know their cultural peculiarities in relating with health-illness. Based on these facts we formulate the following objectives of this report: to identify how the intercultural tensions impact the health-illness process in the Guarani Mbyá group, from Aracruz, in the State of Espirito Santo; to analyze the contradictions that appear between the normative proposals and the daily routine of the group in focus and to argue the normative aspects in the public politics that could minimize these impacts. The qualitative methodology as a case study enabled the creation of a half-structuralized questionnaire by agents of health, leaderships and Guarani educators of these villages. The theoretical referencial of Bakhtin was used to read the data and the analysis was based on the normative proposals that that dictate the rights of the aboriginal people in national and international scope. The data had been revealing in pointing the absence of strategies to increase structures that enable the quality of life and health as well the incapacity of the public power in provide with the promotion, protection and recovery of the aboriginal people's health. This situation together with the absence of natural resources that enable the Indian people to develop its aborinal attention to the health translates a precarious sanitary condition, pointing high indices of illnesses related with the lack of economic, social, and environmental infrastructure.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1- Dispersão demográfica Guarani no ano de 1979 82

Tabela 2- Distribuição da população Guarani por ano e aldeia 91

Tabela 3- Distribuição das famílias Guarani por ano e aldeia 92

Tabela 4- Crianças Guarani de 0-5 anos desnutridas e em risco nutricional 119

nos levantamentos de maio a novembro de 2004 Tabela 5- Resultados dos exames parasitológicos de fezes realizado em 119

crianças Guarani no ano de 2005 Tabela 6- Informações sobre parto e nascimentos na população Guarani e Tupiniquim 126

Tabela 7- Atendimentos ambulatoriais na população Guarani e Tupiniquim 128

Tabela 8 Atendimentos especializados na população Guarani e Tupiniquim 129

Tabela 9- Causas de Internação na População Guarani e Tupiniquim 129

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO 12 Pressupostos Teóricos 15 Fontes 19 METODOLOGIA 24 O Trabalho em campo 27

1-OS POVOS INDÍGENAS E A SOCIEDADE NACIONAL 32

1.1 Brasil Colonial 32

1.2 Brasil Império 37

1.3 Brasil República 40

1.4 As Políticas Indigenistas de Saúde no Brasil República 44

1.5 Panorama Atual da Saúde Indígena no Brasil 49

2- POVOS INDÍGENAS, GLOBALIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E SAÚDE-DOENÇA 55

2.1 Cultura e Interculturalidade Entre os Guarani 61

2.2 Guarani, Línguas, Território e População 64

2.3 Os Guarani e os Aldeamentos Jesuíticos 71

3-OS GUARANI MBYÁ EM ARACRUZ, ESPÍRITO SANTO 74

3.1 A Fundação de Tekoa Porã (Aldeia Boa Esperança) 80

3.2 A Aracruz Celulose, a Eucaliptocultura e os Guarani Mbyá 83

3.3 Estrutura Social e Aspectos Gerais das Aldeias Guarani do Espírito Santo 89

4-COSMOVISÃO MBYÁ E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA 95

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4.1.1 Mito e Práticas de Atenção à Saúde na Cultura Guarani Mbyá 103

4.1.2 Mito, Plantas Medicinais, Alimentação e Saúde na Cultura Guarani Mbyá 109

4.2 Processo Saúde-Doença: o Discurso Oficial 115

4.2.1 Estrutura do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no Município de Aracruz 117

4.2.2 Saúde da Criança e o Risco Nutricional 118

4.2.3 Enfermidades Crônico-Degenerativas, um Reflexo das Transformações Sociais 121

4.2.4 Saúde Bucal, uma Situação de Precariedade 124

4.2.5 Saúde da Mulher, Doenças Sexualmente Transmissíveis 125

4.2.6 Gravidez, Parto e Puerpério entre os Mbyá de Aracruz 126

4.2.7 Atendimentos Ambulatoriais, Internações e Óbitos na População Indígena 127

de Aracruz: Um Retrato das Tensões Interculturais 5-ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS 132

5.1 Processo Saúde-Doença, uma Dimensão Espaço Temporal 138

5.1.1 A Doença do Preconceito 142

5.1.2 Ambiente, Dinheiro e Alimentação, uma Tríade de Tensões 146

5.2 Tensões Interculturais e a Atenção à Saúde Guarani, uma Mediação 156

entre o Local e o Global 5.2.1 Educação Intercultural e Saúde 158

5.2.2 Língua e Religião Mbyá, Identidade, Pertencimento e Saúde 162

5.2.3 Interculturalidade e a Atenção à Saúde Indígena, uma Trajetória de Tensões 166

5.2.4 Parto Hospitalar, Isolamento, Tensões e Impactos no Processo Saúde-Doença 171

5.2.5 Capacitação Profissional x Dominação Cultural, o Sujeito em Foco 177

5.2.6 A alopatia nos Serviços de Saúde: os Guarani e a Medicalização 186

CONCLUSÃO 191

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APÊNDICES

• Apêndice A- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido(TCLE) 211

• Apêndice B- Descrição do Processo de obtenção do TCLE 212

• Apêndice C- Orçamento 213

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INTRODUÇÃO

Ao longo da jornada acadêmica na Graduação em Enfermagem realizei meu Trabalho de Conclusão de Curso nas aldeias Guarani Mbyá, denominadas Boa Esperança (Tekoa Porã) Três Palmeiras (Boapy Pindo) e Piraquê-Açu, localizadas no município de Aracruz, no estado do Espírito Santo.

Tive a oportunidade de participar do Seminário Interno de Escolarização dos Agentes Indígenas de Saúde Guarani Mbyá do estado do Rio de Janeiro, modelo de Educação de Jovens e Adultos, que o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (PRÓ-Índio/ UERJ) vinha desenvolvendo em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Escola de Formação Técnica em Saúde “Enfermeira Isabel dos Santos” (ETIS), a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e as Prefeituras de Angra dos Reis e Paraty, desde o ano de 2003. O projeto, em concordância com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n° 9394/96), direcionava-se à formação intercultural em serviço, com enfoque na construção de competências/habilidades dos Agentes Indígenas de Saúde Guarani do Estado do Rio de Janeiro. O seminário interno objetivava a sistematização de conhecimentos sobre o processo saúde-doença na população Guarani, no sentido de levantar informações que auxiliassem no desenvolvimento do projeto.

Passei, então, a envolver-me com maior afinco nos estudos sobre a população Guarani Mbyá, solidificando um vínculo com a comunidade onde realizei minha pesquisa. Por intermédio do Pró-índio pude inserir-me de forma intensa no vasto mundo de informações sobre a realidade indígena nacional, o que me conferiu a oportunidade de enquanto graduando, participar de seminários, debates e encontros que abordavam temas relacionados à saúde indígena.

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Os resultados do estudo realizado em tais aldeias foram reportados no projeto “Saúde Guarani: uma abordagem antropológica”. (PELLON; SAUTHIER, 2005). Os dados coletados convergiram para categorias que relacionavam os impactos no processo saúde-doença aos problemas advindos, principalmente, das tensões nos relacionamentos entre o povo Guarani Mbyá e a sociedade envolvente, que se encontra fortemente comprometida com a filosofia desenvolvimentista da empresa transnacional Aracruz Celulose, maior produtora de celulose branqueada do mundo e responsável pela maioria dos empregos diretos e indiretos na região. As tensões transpareceram, essencialmente, como oriundas de um relacionamento mal estabelecido nos âmbitos social, ambiental, político, econômico e sanitário, refletindo o choque de interesses distintos na busca pela qualidade de vida e saúde entre ambos os grupos sociais.

A empresa implementou na década de 1960, sob os auspícios da ditadura militar, a monocultura de eucalipto em larga escala no estado, mais precisamente no município de Aracruz, apropriando-se irregularmente de áreas já habitadas pelos grupos indígenas Tupiniquim e Guarani. Seu modelo produtivo comporta atualmente, afora o plantio diário de aproximadamente 37 mil mudas dessa mesma espécie, um complexo fabril altamente comprometedor do ecossistema nativo, originalmente composto pela mata atlântica de onde os indígenas retiravam as plantas medicinais e grande parte da sua subsistência alimentar.

A maior parte das aldeias Guarani, como as de Aracruz, situa-se bem próximas aos grandes centros urbanos com os quais os indígenas estabelecem relações de troca. Muitas delas estão localizadas em áreas cobiçadas por empresas extrativistas e mineradoras, grandes latifúndios, fazendeiros e outros que corroboram para a destruição da natureza onde os índios reconhecem sua fonte alimentar e medicamentosa. Como decorrência da limitação dos recursos naturais resta a muitos desses grupos o estreitamento das relações com a sociedade envolvente e o redimensionamento das suas necessidades sócio-econômicas e culturais. Estes

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fatores, agravados pelas inúmeras barreiras encontradas nos relacionamentos interculturais, vêm incidindo em impactos diretos e indiretos na qualidade de vida e saúde dos Guarani que se encontram expostos à estas situações.

Neste sentido, merece destaque especial a situação dos Guarani Mbyá da região de Missiones na Argentina, que também têm seus territórios cercados pelas empresas papeleiras e sojicultoras. Em um período de apenas dois meses no ano de 2006 foram registrados 21 óbitos de crianças por problemas respiratórios e por desnutrição. Os desmatamentos têm repercutido na perda da sua farmácia natural, onde os Mbyá identificavam, pelo menos, 150 plantas medicinais. Os indígenas, sem os recursos necessários à manutenção de suas práticas terapêuticas autóctones, passaram a enfrentar uma outra dificuldade, a de se adaptar aos tratamentos da medicina ocidental. (VALENTE, 2006). O Mbyá Hilário Moreira confirma: “No es casual que empezamos a morir partir de la pérdida de territórios de la mano de las sojeras, las madereras y papeleras. Si hay 30 familias sobreviviendo amontonadas en 30 hectáreas, es obvio que no podrán tener alimentos ni las medicinas naturales que hacen nuestra forma de vida”.(ARANDA, 2006, p.2).

Somam-se a este quadro sombrio os números alarmantes de óbitos por desnutrição infantil e por suicídios entre os adolescentes Guarani e Kaiowá, habitantes das aldeias localizadas no estado do Mato Grosso do Sul. Segundo os dados disponíveis, do ano 2000 ao ano 2006 ocorreram 300 casos de suicídio na área de quase 3.5 mil hectares, que abriga em torno de 11 mil índios.(UNISINOS, 2006). Os membros do Conselho Indigenista Missionário, Pauletti, Shneider e Mangolim (1997, p.41), destacam que:

Os Guarani e Kaiowá se suicidam por falta de perspectiva de vida. Foram encurralados. Não há mais terras, foram roubadas e as poucas que ocupam são insuficientes para a subsistência, física e cultural. Na carona do encurralamento foram-se as matas, os peixes, a caça, a erva-mate, que permitiam sobrevivência digna. Os casamentos, por falta de espaço, deixaram de ser estimulados. O encurralamento trouxe miséria, fome e desnutrição.

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No ano de 2006 foram registrados 14 óbitos por desnutrição em crianças Guarani menores de dois anos de idade e, somente no ano de 2007, morreram 12 crianças indígenas com o mesmo problema.

No estado do Espírito Santo o “Mapa da Fome entre os Povos Indígenas do Brasil” (1994 apud VEIGA et al, 2004) descreveu a situação da seguinte forma: “Carência alimentar, desnutrição e mortalidade infantil que atingem os Tupiniquim, enquanto a inteira população Guarani passa fome”. Um professor Guarani assinala que, “com a redução de nossas áreas, ficamos em meio à monocultura de eucalipto. Ficamos sem terra para plantar e praticar caça que era um dos meios de subsistência do nosso povo”. (BRASIL, 2000, p.13).

Muito embora tenha se passado mais de uma década deste triste diagnóstico, pouco mudou em relação aos problemas identificados, pois, segundo os relatórios anuais da Fundação Nacional da Saúde (2004, 2005, 2006) explorados nesta pesquisa, são prevalentes ainda elevados índices de desnutrição infantil, gastroenterites, problemas de saúde bucal, doenças respiratórias e óbitos decorrentes de violências internas e externas entre os grupos indígenas do Espírito Santo.

Pressupostos Teóricos

Os impactos no processo saúde-doença vêm alcançando dimensões amplas e de difícil resolução para o sistema biomédico por afetarem, não somente a base nutricional e farmacológica dos Guarani, mas também, os elementos condicionantes de qualidade de vida e saúde segundo a sua cosmovisão e cultura. Dessa forma, doenças e mortes misteriosas, inexplicáveis, associadas ao produto das imperfeições humanas (teco achy) passaram a constituir uma categoria cada vez mais em ascensão entre os Mbyá de Aracruz, sendo

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reportadas por Ciccarone (2001) em diferentes momentos de seu convívio com os mesmos. A autora denominou “estado de desordem” ao que era atribuído pelos mais velhos como uma relação entre a deterioração dos recursos naturais e o afastamento do modo de ser Guarani. Apesar dos dados epidemiológicos disponíveis evidenciarem uma precária situação de saúde entre os Guarani de Aracruz, são ainda, insuficientes para elucidar a dimensão desses impactos, a maneira como os sujeitos vivenciam os eventos mórbidos e as formas como as tensões interculturais interferem na mobilização de recursos materiais e simbólicos para a promoção, proteção e recuperação da saúde entre os membros do grupo atualmente.

Partimos do pressuposto, portanto, que saúde e doença são fenômenos universais e

constituem as formas pelas quais a vida se manifesta nas diferentes sociedades, o que requer que sejam abordados de maneiras distintas em cada uma delas, conforme ressaltam Gualda e Bergamasco (2004, p.25-26):

Saúde e doença não são questões unicamente pessoais, mas sócio-culturais. Se por um lado, a saúde é considerada uma condição básica para a qualidade de vida, a doença representa uma ameaça ao senso de segurança e é geradora de ansiedade. Como conseqüência, as sociedades mobilizam recursos materiais e culturais para que as pessoas possam lidar com o processo. [...]Na tentativa de compreender e analisar saúde e doença em qualquer sociedade, comportamentos individuais, interações e estrutura social precisam ser colocados em um contexto cultural.

Em concordância com as autoras optamos por aprofundar-nos na concepção que os membros da etnia Guarani Mbyá das aldeias Boa Esperança (Tekoa Porã) Três Palmeiras (Boapy Pindo) e Piraquê-Açu têm sobre saúde-doença. A partir destes dados, buscamos identificar as tensões que emergem do convívio intercultural e influenciam a forma como os sujeitos vivenciam os eventos mórbidos e se mobilizam para promover, proteger e recuperar a saúde em sua ampla dimensão, considerando os aspectos essenciais da sua cosmovisão e cultura.

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A questão norteadora do estudo é de que forma as tensões interculturais influenciam o processo saúde-doença na população Guarani Mbyá do município de Aracruz, no estado do Espírito Santo?

A partir dessa questão buscamos formular os seguintes objetivos: identificar as formas como as tensões interculturais impactam o processo saúde-doença no grupo Guarani Mbyá de Aracruz, no Espírito Santo; analisar as contradições que surgem entre as propostas normativas e o cotidiano do grupo em foco e discutir os aspectos normativos nas políticas públicas que poderiam minimizar esses impactos.

A noção de interculturalidade, fundamental para nossa reflexão, precisa, portanto, ser definida. Por interculturalidade, entendemos, conforme Canclini (2005, p.17), “a confrontação e o entrelaçamento, aquilo que sucede quando os grupos entram em relações de trocas”. Segundo Soria (1998, p.02) esse entrecruzamento “tende a construir constelações poliaxiológicas, onde convivem, não sem conflito, diversos estilos de vida e normas de bem-viver, enraizadas em diferentes discursos.”

Contudo, o convívio entre as culturas pode ser um elemento revelador de tensões, como sinaliza Cuche (2002, p.144):

É preciso fazer uma análise “polemológica” das culturas, pois elas revelam conflitos; elas se desenvolvem na tensão, às vezes na violência. No entanto, neste tipo de análise, é necessário evitar as interpretações redutoras demais, como a que supõe que o mais forte está sempre em condições de impor pura e simplesmente sua ordem (cultural) ao mais fraco. Na medida em que a cultura real só existe se produzida por indivíduos ou grupos que ocupam posições desiguais no campo social, econômico e político, as culturas dos diferentes grupos se encontram em maior ou menor posição de força (ou de fraqueza) em relação às outras. Mas mesmo o mais fraco não se encontra jamais totalmente desarmado no jogo cultural.

Os conflitos e tensões abordados pelos autores se evidenciam claramente nos vários campos de convívio estipulados entre os membros dos diferentes grupos sociais como dentro dos próprios grupos em função dos sujeitos vivenciarem, também, diferentes formas de relacionamentos interculturais.

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A importância desse estudo deve-se, sobretudo, ao fato de tratar de problemas persistentes nos relacionamentos históricos que envolvem as populações indígenas do Brasil, no entanto, em um contexto que oferece respaldo político-normativo para a resolução dos mesmos.

Se em outros períodos da história do país, as políticas indigenistas estiveram voltadas para a “pacificação e integração” dos grupos indígenas à sociedade nacional, legitimando a aniquilação cultural e a homogeneização social, atualmente, elas reconhecem a diversidade sócio-cultural da nação como imprescindíveis à formação de um Estado democrático e multicultural.

De acordo com Soria (2006, p.01):

A Interculturalidade é um fenômeno que vem perdendo gradualmente o seu caráter de excepcionalidade. Hoje em dia, todos os povos, todas as culturas, enfim, todos os seres humanos tiveram que se adaptar ao novo curso dos tempos, combinando eventos tradicionais com novas manifestações da modernidade. [...] O dado novo, no entanto, não é a diversidade, que sempre existiu, mas o fato de que agora começamos a assumi-la como componente do nosso quadro de referência perceptivo e representativo, e inclusive entende-la como parte do nosso horizonte normativo e axiológico.

Contudo, apesar dos avanços políticos que se deram com o reconhecimento da diversidade sócio-cultural dos povos indígenas, a partir da Carta Magna de 1988, a sociedade nacional tem demonstrado encontrar-se, ainda, despreparada para aceitar as diferenças nas inúmeras esferas de relacionamento que estabelecem com essas populações, sejam elas, políticas, sociais, culturais, lingüísticas, de gênero e/ou de saúde.

Dessa forma, são persistentes e comuns ainda hoje, as tensões nos relacionamentos que envolvem os povos indígenas e demais segmentos da sociedade nacional em diferentes campos dos seus relacionamentos, contribuindo para o agravamento dos impactos no processo saúde-doença, segundo aspectos essenciais da cosmovisão e da cultura de cada grupo.

A construção de políticas públicas em saúde tem se voltado, atualmente, para estratégias de atuação que englobam serviços, não somente para as populações indígenas,

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mas também com as mesmas, destacando-se pelo fortalecimento da autonomia dos sujeitos no controle e na participação social. Dessa forma, a efetivação de ações integrais em saúde pressupõe um conhecimento detalhado do relacionamento sócio-cultural que os povos indígenas estabelecem com a sociedade envolvente e do entendimento dos pontos de tensão que se evidenciam nestas interações.

Consideramos oportuno sinalar a vinculação desta dissertação de mestrado à linha de pesquisa Enfermagem e População: conhecimentos, atitudes e práticas em saúde, que se encontra inserida dentro do grupo de pesquisa Enfermagem e a Saúde da População instituído na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/ UNIRIO.

Fontes

Na busca por materiais que auxiliassem na elaboração do estudo, procedemos ao levantamento bibliográfico em banco de dados virtuais, realizado por meio da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Observamos pouquíssimas produções de conhecimentos por parte da enfermagem no campo da saúde indígena no Brasil, mesmo exercendo sua presença nos programas desenvolvidos em todo o território nacional. A Biblioteca Virtual em Saúde proporciona o acesso a diferentes bases de dados bibliográficos com grande abrangência de estudos e:

Constitui-se um dos modelos mais avançados de gestão de informação e conhecimento, orientado pela missão da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), que tem como tradição a democratização da informação necessária para alcançar a meta de “saúde para todos”, a busca pela equidade em saúde e a melhoria das condições de vida dos povos das Américas. (BVS, 2006).

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Levando-se em conta a diversidade de bases de dados disponíveis neste site, foram identificados resumos de trabalhos, somente, na BDENF (Base de Dados em Enfermagem); e na LILACS (Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde).

Utilizamos para a pesquisa, primeiramente, os seguintes descritores: “Enfermagem, interculturalidade e Indígenas” e depois “Índios sul-americanos e Enfermagem”, visando encontrar dados que pudessem contribuir para a elaboração deste estudo, o que não se efetivou. No entanto, aprimorando a busca, encontramos alguns resultados com os descritores “Indígenas e Enfermagem”.

No banco de dados da LILACS foram encontrados cinco trabalhos com esses descritores, três do Brasil e dois de outros países da América Latina (Chile e Colômbia), sendo que um dos trabalhos do Brasil não foi desenvolvido por profissionais de Enfermagem, e sim, faz referência ao trabalho de auxiliares de Enfermagem, entre outros. Dos trabalhos desenvolvidos no Brasil, um enfoca a atuação de estagiários de Enfermagem da Universidade Federal do Amazonas em aldeias indígenas da região. Trata-se de um relato de experiência, onde os alunos descrevem que “a atuação do enfermeiro em comunidades indígenas requer conhecimento antropológico, ecológico e social para a compreensão do processo saúde-doença” (SILVA; FERREIRA; LOPES, 2003) e outro versa sobre “Os entendimentos, práticas e contextos sóciopolíticos do uso de medicamentos entre os índios Kaingang”. (DIEHL, 2001).

Um dos demais trabalhos da América Latina trata da implementação de uma política indigenista de saúde intercultural pelo governo Chileno e a necessidade de se incorporar os terapeutas tradicionais nas práticas de saúde. (SANTIBANEÑEZ; LABRA, 2001). O outro versa sobre o papel da Enfermagem como canal de diálogos e impulsionador de soluções conjuntas e não violentas no processo de paz em um grupo indígena que se encontrava em meio à luta armada com grupos guerrilheiros colombianos, no período que se estende entre

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1980 e 1983. (PERDOMO, 2001). O resumo encontrado no banco de dados da BDENF trata-se do mesmo encontrado na LILACS que trata-se refere à atuação dos estagiários de Enfermagem em área indígena no Amazonas.

Devido à escassez de produções da Enfermagem sobre a saúde indígena no Brasil, disponibilizados nesses bancos de dados, decidimos estender a busca ao banco de teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), delimitando a busca ao período compreendido entre os anos 2000 a 2004. Dois trabalhos foram encontrados ao todo entre teses e dissertações. Os descritores utilizados para proceder à busca foram os mesmos já utilizados nos outros bancos de dados. Através desse critério, só foram encontradas uma tese de doutorado e uma dissertação de mestrado, sendo que a primeira já constava nos itens previamente levantados. A outra versava também sobre a necessidade de se compreender aspectos culturais, como a pintura corporal de um grupo indígena para entender o processo de cuidado nessa comunidade. (SANTOS, 2002).

Assim, percebemos que apesar da procura criteriosa por estudos desenvolvidos pela Enfermagem em saúde indígena, notamos a precariedade de dados que versam sobre o assunto no Brasil, evidenciando somente três resumos nas bases de dados utilizadas para a pesquisa. Apesar de não ter sido identificado nenhum estudo específico sobre os Guarani de Aracruz no Espírito Santo, os poucos trabalhos encontrados sobre a Enfermagem e a saúde indígena foram unânimes em tratar a pesquisa e a prática profissional como indissociáveis de um conhecimento antropológico, ecológico e social do grupo em foco, conforme se propõe este estudo.

Na busca por pesquisas realizadas no campo das ciências sociais também constatamos que são poucas as produções que reportam a situação atual em que se encontra o grupo Guarani Mbyá do Espírito Santo. Tomamos como referência a tese de Ciccarone denominada “Drama e Sensibilidade: migração, xamanismo e mulheres Mbyá Guarani” realizada no ano

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de 2001 no Programa de Estudos de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A autora em seu trabalho etnográfico aborda o xamanismo Mbyá como a instituição reguladora da ordem terrena e o eixo da articulação das dimensões entre a existência da sociedade e o sujeito, sendo determinante para a condução dos processos migratórios quanto para a orientação da vida social.

Em um segundo momento recente foi realizado um levantamento antropológico a pedido da Petrobrás por exigência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para viabilizar a passagem de um gasoduto nas aldeias indígenas. O documento denominado “Levantamento Antropológico sobre as Terras Indígenas de Aracruz” (VEIGA et al., 2004), entre outros temas abordados, realizou uma investigação sobre o estado de saúde das populações indígenas Guarani Mbyá e Tupiniquim relacionando-o aos impactos ambientais e ao contexto das tensões gerais na região. Ao destacar o reflexo destas tensões nos relacionamentos entre profissionais de saúde e população indígena Veiga et al (Ibid, p.138) descreveu:

A falta de preparo dos profissionais reforça a manutenção de atitudes discriminatórias a respeito do modo de vida indígena, como atesta uma enfermeira de uma equipe que detecta, dentre as causas de doenças mais comuns- verminose, doenças das vias respiratórias, doenças da pele (urticária, escabiose, alergias)-, a “falta de higiene” e os “maus hábitos alimentares” encontrados nas aldeias, naturalizando essas situações cuja responsabilidade é atribuída exclusivamente à população indígena.

Por fim, após um criterioso levantamento na área das ciências sociais, foi identificada uma monografia de conclusão de curso de graduação da Universidade Federal do Espírito Santo denominada “Ambiente, Saúde e Desenvolvimento entre os Guarani do Espírito Santo” (BERTOLANI, 2005) de orientação da professora Doutora Celeste Ciccarone. O trabalho buscou contrapor os projetos assistencialistas desenvolvidos pela empresa Aracruz Celulose com as necessidades reais de sustentabilidade dentro dos moldes de reprodução e preservação dos aspectos simbólicos e estruturais dos Guarani da região.

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A população indígena do Espírito Santo lutou aproximadamente 40 anos pela restituição de uma área reconhecida pela Fundação Nacional do Índio como parte da Terra Indígena Tupiniquim/Guarani, que se encontrava em poder da empresa transnacional Aracruz Celulose. As tensões se estenderam às mais diferentes áreas de convívio entre indígenas e sociedade envolvente. O conhecimento sobre a forma como essas tensões exercem influências no processo saúde-doença são de extrema relevância aos profissionais de saúde integrantes das equipes multidisciplinares que atuam nestas aldeias, especialmente os enfermeiros, para a efetivação de práticas compromissadas com a redução das mesmas. Dessa forma, Coimbra e Santos (2001, p-28) afirmam que, “Informações confiáveis são também imprescindíveis para viabilizar análises sobre múltiplas relações entre desigualdades sociais, processo saúde-doença e etnicidade.”

A inexistência de estudos específicos na área da Enfermagem com os Guarani do Espírito Santo, confere a essa dissertação um caráter pioneiro na produção de conhecimentos, que podem ser utilizados como base para a discussão de estratégias de minimização dos impactos identificados e de uma Enfermagem compromissada com este processo no âmbito da promoção, proteção e recuperação da saúde indígena na região.

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METODOLOGIA

A metodologia utilizada na pesquisa pode ser classificada como de abordagem qualitativa do tipo descritivo-exploratório que se deu por meio de um estudo de caso. O Estudo de Caso consiste no aprofundamento em um determinado assunto já previamente pesquisado. Segundo Gil (1999, p- 72-73) trata-se do “[..]estudo profundo e exaustivo de um ou de poucos objetos, de maneira a permitir o seu conhecimento amplo e detalhado, tarefa praticamente impossível mediante os outros tipos de delineamentos considerados.” Quando se trata de estudo de caso do processo saúde-doença em aldeias Guarani se faz necessário um enfoque antropológico capaz de dar conta das particularidades culturais desse povo.

Costa (2003, p.42) assinala que, “A saúde e a doença são formas pelas quais a vida se manifesta. Correspondem a experiências singulares e subjetivas, impossíveis de serem reconhecidas e significadas integralmente pela palavra.” Contudo, é por intermédio da palavra que o sujeito expressa o seu mal-estar esperando que o profissional de saúde ou outro terapeuta compreenda o seu sofrimento que se apresenta influenciado culturalmente na forma de sentir e de se mobilizar para solucionar o problema. (Ibid) .

Neste sentido, os Guarani Mbyá têm na palavra um elemento constitutivo da essência do ser humano. Acreditam que a palavra é parte integrante da alma Guarani e a oralidade, portanto, destaca-se pela sua importância no contexto sócio-cultural, conforme destaca Barros e Castro (2005, p.96):

Pensar a palavra guarani é considerar sua oralidade como discurso e percurso. A presença da lasca de taquara sob o lábio do jovem ou o uso do cachimbo remetem à importância da palavra “aquecida” pelos raios do sol- símbolo da presença do Deus maior, Nhaude Ru. (grifos do autor).

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Acreditamos que através da palavra Guarani evidenciada nos enunciados dos sujeitos da pesquisa, podemos tomar contato com a expressão mais aproximada da realidade vivida, pois a fala revela emoções, sentimentos e demais fatores da vida social e cultural.

Segundo a Resolução CNS n°304 (BRASIL, 2000): “Qualquer pesquisa envolvendo a pessoa do índio ou a sua comunidade deve respeitar a visão de mundo, os costumes, atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social, filosofias peculiares, diferenças lingüísticas e estrutura política”.Com base nessa informação, procuramos adequar a coleta de dados ao contexto cultural. Dessa forma, ela se deu na forma de entrevista semi-estruturada gravada, atendendo à necessidade de se conferir importância à oralidade Mbyá, sem interrupção da fala, o que para essa cultura representa um sinal de respeito ao ato sagrado da expressão verbal.

A opção pela entrevista semi-estruturada se deu pelo fato de ela possibilitar ao pesquisador a liberdade para aprofundar-se em determinados assuntos, que, porventura, pudessem se destacar na coleta de dados.

De acordo com Tobar e Yalour (2001, p.101), “O guia de entrevistas ajuda a mostrar que o pesquisador tem clareza sobre seus objetivos, mas também é suficientemente flexível para permitir a liberdade ao pesquisador e ao informante para seguir e/ou encontrar novas pistas”. Neste sentido, o guia de entrevista contemplou as seguintes questões:

• O que é saúde para você? • O que é doença para você?

• O que você acha da proximidade da aldeia com a cidade e com a empresa Aracruz Celulose?

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Durante o trabalho em campo outras questões surgiram em decorrência dos direcionamentos dados pelos sujeitos da pesquisa em suas respostas, permitindo que novos assuntos fossem explorados.

O estudo foi realizado nas respectivas aldeias indígenas Guarani Mbyá, Três Palmeiras, Piraquê-Açu Mirim e Boa Esperança que comportam uma média de 250 habitantes. Este contingente populacional costuma sofrer pequenas variações em função do Mbyá ser um dos subgrupos Guarani que preserva ainda a importante característica de mobilidade entre seus membros, com vistas a estabelecer intercâmbios sociais próprios de sua cultura.

Os sujeitos da pesquisa compõem-se de lideranças nativas (caciques, ex-caciques, pajés e anciãos), agentes indígenas de saúde, conselheiros indígenas de saúde e educadores indígenas, todos membros do grupo Guarani das aldeias localizadas no município de Aracruz, no estado do Espírito Santo.

O trabalho em campo possibilitou que fossem entrevistadas 12 pessoas no total, que foram divididas nas seguintes categorias e designadas no corpo da entrevista pelas respectivas siglas que se encontram entre parênteses:

• Lideranças indígenas- pajés (Liderança A), caciques (Liderança E), ex-caciques (Liderança B; Liderança C) e vice –cacique (Liderança D);

• Lideranças femininas- esposas de caciques (Liderança M 1) e anciã (liderança M 2); • Educadores indígenas (Educador A; Educador B e Educador C);

• Agentes indígenas de saúde (AIS1; AIS2).

Utilizamos após a transcrição dos dados o método de análise de conteúdo descrito por Turato (2003). O autor recomenda avançar além do estado meramente descritivo, pois, segundo ele (Ibid, p.442), “permitir que possamos discutir, inferir a partir dos dados trabalhados é realmente a razão de recorrermos a tal procedimento de tratamento/ análise dos

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dados”. Após a leitura sistemática dos relatos colhidos em campo os mesmos foram agrupados em duas categorias, atendendo aos critérios de repetição e relevância recomendados pelo autor e a leitura dos dados foi guiada pelo suporte teórico de Bakhtin que, segundo Souza (2001, p.93), trata a “linguagem como espaço de recuperação do sujeito como ser histórico e social”. Lançamos mão também do referencial teórico de outros autores que auxiliaram na compreensão dos demais aspectos relacionados ao objeto do estudo, a saber: Onocko Campos e Campos (2006); Bertolani (2005); Diehl e Rech (2004); Silveira (2004); Veiga et al (2004); Follér (2004); Oliveira (2004); Coimbra e Santos (2000) e Langdon (1999).

Os dados foram analisados segundo as propostas normativas vigentes, tendo em vista a relevância atribuída pelas legislações nacionais e internacionais ao assunto em pauta. Dessa forma, buscou-se discutir as contradições que surgem entre a realidade cotidiana do grupo pesquisado e essas propostas, destacando aquelas que poderiam minimizar os impactos encontrados.

O Trabalho em campo

Turato (2003, p.316) aponta para o fato de que ao se proceder uma pesquisa qualitativa o pesquisador deve passar pela etapa de “entrevista de aculturação”, definida por ele como:

[...] atividades de estabelecimento de relação direta e coloquial com pessoas representantes da comunidade de sujeitos a serem estudados [...] cuja finalidade é permitir ao pesquisador vivenciar seu processo de assimilação do modo de pensar ( a cosmovisão) daquela população-alvo em cujo ambiente ficará imerso temporariamente.

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Atendendo a este pressuposto, o trabalho em campo foi guiado por quatro visitas consecutivas. Uma primeira realizada do dia 17 ao dia 21 de agosto de 2006, visando uma retomada do contato com as lideranças locais e a obtenção da sua autorização para a realização do projeto. Tendo em vista que o último contato estabelecido tinha se dado no mês de Janeiro de 2006, quando o pesquisador foi discutir os resultados de seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de graduação junto às mesmas lideranças, este contato foi revestido de uma boa receptividade. Ao permanecer o período de cinco dias hospedado na casa do cacique da aldeia Três Palmeiras, o pesquisador pôde participar de situações comuns do cotidiano, como almoçar na casa de outras pessoas, ir a um jogo de futebol com os índios em uma comunidade vizinha e participar de uma reunião interna.

Uma segunda visita foi realizada do dia 10 ao dia 15 de Janeiro de 2007 com a finalidade de manter o contato sistemático, mostrar-se presente e observar as diferentes situações do cotidiano do grupo. Neste momento, o grupo se encontrava sob fortes tensões, decorrentes da negociação fundiária com a empresa Aracruz Celulose, que implicou entre outras coisas, em prisões, confrontos diretos com a polícia, emboscadas e o temor de mais confrontos, que refletia, necessariamente, no humor e na auto-estima dos membros dos povos Guarani e Tupiniquim. O anfitrião do pesquisador fazia parte da comissão de caciques que empreendeu a retomada pela demarcação da terra, o que o possibilitou participar de algumas reuniões entre Guarani e Tupiniquim durante o período da pesquisa.

A terceira visita ocorreu do dia 15 ao 19 de Março de 2007, já para a realização de entrevistas com alguns membros das diferentes aldeias. Neste momento, o pesquisador permaneceu hospedado na casa do cacique da aldeia Três Palmeiras novamente e pode freqüentar uma reunião da comunidade sobre educação, o que criou um ambiente ideal para realizar as entrevistas com os educadores indígenas.

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A quarta etapa aconteceu entre os dias 11 e 20 de julho, quando ao contrário dos outros momentos, o pesquisador decidiu se hospedar alguns dias em uma pensão no bairro de Santa Cruz, para observar e dialogar com a população local, perceber como era vista a presença dos índios na região e como as pessoas se posicionavam quanto aos problemas fundiários. Neste momento, pôde ser percebido que a não permanência na aldeia Três Palmeiras como de costume, parecia desencadear certo “desconforto” com a situação no então ex-cacique dessa aldeia, acostumado a receber o pesquisador em sua casa quando ocupava o cargo de cacique. Dessa forma, foi revista a decisão de permanecer em Santa Cruz e o pesquisador se hospedou os últimos três dias consecutivos de sua visita na aldeia Três Palmeiras.

Uma das tarefas mais importantes para o pesquisador em um ambiente que difere culturalmente do seu é estabelecer relações de confiança. Neste sentido, a ambientação passa também pelo fato de conhecer o tempo próprio do grupo, seus costumes, a forma de abordar os sujeitos da pesquisa e os assuntos de maior interesse, sem fazer da sua presença uma ameaça à privacidade das pessoas. Da mesma maneira, a ambientação deve possibilitar ao pesquisador conhecer as estratégias de dissimulação contidas no discurso e nos comportamentos e perceber quais os melhores momentos para a realização da entrevista, sem que isso implique em desviar o sujeito de suas atividades cotidianas.

Tendo em vista que o gravador proporcionava certo desconforto nos sujeitos da pesquisa, as entrevistas foram realizadas previamente em um tom de conversa informal, antes mesmo que se anunciasse a pretensão de utilizar este recurso tecnológico para o registro das falas. Quando se tinha criado um ambiente de troca e confiança mútuas, o pesquisador questionava sobre a possibilidade de realizar uma gravação sobre aqueles assuntos que haviam sido abordados informalmente. Todas as respostas foram positivas, o que possibilitou retomar os assuntos quando os sujeitos da pesquisa se sentiam desinibidos frente ao gravador.

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Dessa forma, assim foi conduzido o trabalho em campo, observando, respeitando o tempo de cada um, procurando adequar os encontros aos horários próprios de cada família e se auto-observando, se “auto-doutrinando” com relação aos pensamentos, atitudes e práticas que criam barreiras à compreensão do diálogo intercultural como uma experiência única de aprendizado e troca de conhecimento.

A elaboração do projeto de pesquisa se deu em conformidade com os princípios éticos contidos na Resolução CNS n°196/96 priorizando sua descrição em um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice B) que foi apresentado aos depoentes na ocasião da coleta de dados.

Seguindo as exigências éticas para pesquisa em populações indígenas descritas na Resolução CNS n°304/2000, o projeto foi encaminhado à apreciação de um Comitê Regional de Ética em Pesquisa (CEP) que, posteriormente, o encaminhou à apreciação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Da mesma forma, o projeto passou pela avaliação metodológica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). A anuência das respectivas lideranças locais foi parte importante no processo de autorização e foi realizada por intermédio da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) após as devidas avaliações dos órgãos parceiros na avaliação do projeto.

O primeiro capítulo da dissertação vai abordar o contexto histórico das tensões interculturais entre povos indígenas e demais segmentos da sociedade nacional desde os primeiros contatos entre ambos, enfatizando as políticas públicas que regulamentavam a forma como deveriam se dar esses relacionamentos.

No segundo capítulo discutiremos a interculturalidade entre os Guarani no contexto da globalização, seus subgrupos, estimativas demográficas atuais e dispersão territorial.

A migração dos Guarani Mbyá até o município de Aracruz e as relações conflituosas decorrentes da implantação do sistema de monocultura de eucalipto na região, serão

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apresentadas no terceiro capítulo, onde, também serão descritos aspectos gerais da vida social nessas aldeias.

No quarto capítulo será feita uma abordagem sobre a relação entre os mitos, a alimentação, as práticas terapêuticas e o uso das plantas medicinais entre os Guarani Mbyá. Os indicadores epidemiológicos serão objeto, também, de discussão nesse capítulo, que situará a fragilidade dos dados oficiais para a análise dos impactos no processo saúde-doença e para o delineamento de práticas interculturais de promoção, proteção e recuperação da saúde indígena na região.

A análise e discussão dos dados colhidos em campo serão objeto de abordagem no quinto capítulo que se encontra divido em duas categorias e oito subcategorias. A primeira dá ênfase às concepções sobre o processo saúde-doença descritas pelos sujeitos da pesquisa e a segunda tratará da forma como os Mbyá percebem os impactos provocados pelas tensões interculturais no processo saúde-doença e a interlocução conflituosa existente entre o sistema autóctone de atenção à saúde e o sistema biomédico.

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1- OS POVOS INDÍGENAS E A SOCIEDADE NACIONAL

1.1 Brasil Colonial

Estima-se que a população indígena do Brasil pré-colonial poderia se encontrar pouco acima de 6 milhões de pessoas, que dominavam cerca de 1.3 a 1.5 mil línguas no período em que as primeiras naus portuguesas aportaram no país. Denevan (1976)1 calculou o contingente populacional indígena restrito à região da região da Grande Amazônia2 em torno de 6,8 milhões de pessoas para este mesmo século. Os números atuais apontam para um histórico de massacres e epidemias, ocorridos, principalmente, nos primeiros anos que marcaram o contato entre indígenas e colonizadores. Segundo Freire e Malheiros (1997, p.02):

Os demógrafos da Escola de Berkeley, nos Estados unidos, confirmaram essas conclusões estarrecedoras. Woodrow Bora, em 1964, calculou que no primeiro século de colonização, houve 90% de despovoamento (ou a razão de 10 para 1). Dois anos depois, em 1966, os estudos de Henry Dobbyns apontaram um índice de declínio populacional de 20 para 1, enquanto William Denevan em 1976, estimou em 35 para 1.

As incursões coloniais que visavam o povoamento do território brasileiro atendiam aos objetivos portugueses de expansão do cristianismo e das fronteiras capitalistas concomitantemente. A relação sinérgica entre capitalismo e religião no período colonial serviu como mola propulsora para a promulgação de propostas normativas que

1 Discordando dos inúmeros estudos que se baseavam em relatos dos colonizadores da época e que, portanto, não

conferiam a fidedignidade de um levantamento científico, o autor baseou-se em evidências pré-históricas, históricas e contemporâneas que confirmavam a presença de um determinado grupo indígena em um determinado local, associadas ao fato de que o contingente populacional estava estreitamente relacionado aos recursos existentes no habitat natural e aos padrões de subsistência dominantes na população estudada.

2 Região que compreende a área leste da América do Sul, sul dos Andes e norte do Trópico de Capricórnio,

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fundamentavam as deliberações da Coroa portuguesa com relação aos povos indígenas no período pós-conquista. (HOORNAERT, 1994).

Como estratégia de ocupação territorial, a Coroa Portuguesa costumava conceder o privilégio da exploração da madeira a alguns comerciantes, que passavam a se fixar em pequenos acampamentos e feitorias provisórias. 3Contudo, as primeiras medidas voltadas ao povoamento efetivo da nova colônia portuguesa deu-se pela adoção de capitanias hereditárias. (FREIRE, MALHEIROS, 1997).

O regime de capitanias hereditárias consolidou-se como a principal estratégia da Coroa Portuguesa para garantir a ocupação das terras brasileiras e a sua propriedade. Com os recursos do Tesouro Real voltados para investimentos no Oriente, a implantação do regime de donatarias transferiu para a iniciativa particular a responsabilidade pela exploração econômica da América portuguesa. Através de doações, a Coroa Portuguesa dividiu 5 mil quilômetros da costa em 15 lotes, perfazendo 12 capitanias. (BUENO, 2006). Assim surgiu a figura do donatário. Segundo Gagliardi (1989, p.26-27), “Os poderes desses régulos eram amplos. Além da posse de um vasto território, inalienável e transmitido hereditariamente, podiam ainda fundar vilas, nomear tabeliões, ouvidores, punir crimes, escravizar índios, conceder sesmaria, etc.”4

Em paralelo à atuação dos donatários, as missões religiosas agiam na catequese indígena adentrando em território nacional, corroborando com a ampliação das fronteiras coloniais. Dentro deste contexto, destacou-se a atuação dos missionários jesuítas na formação dos chamados aldeamentos, reduções ou descimentos, que se referiam às aldeias criadas por estes religiosos com a intenção de reduzir os indígenas da sua vida tradicional à fé cristã e ao trabalho compulsório. O acordo firmado no dia 30 de julho de 1556 entre o então governador

3 “ A documentação histórica identifica duas feitorias criadas logo nos primeiros momentos, em 1503: um em

Cabo Frio, criada por Américo Vespúcio e outra onde, provavelmente, fica a Praia do Flamengo,criada por Gonçalo Coelho. (FREIRE e MALHEIROS, 1997, p.37)

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geral Mem de Sá e os jesuítas afirmava a liberdade e a inviolabilidade dos aldeamentos. No entanto, a base jurídica que assegurava a sua criação sofria de fundamental fraqueza, pois não era aplicada aos escravos. Os descimentos quase sempre resultavam em fracasso em termos demográficos, pois os índios morriam em quantidade, contaminados pelas doenças transmissíveis oriundas de além-mar. (HOORNAERT, 1994).

Os missionários tinham o compromisso de catequizar os indígenas e transformá-los em força de trabalho através da utilização de métodos que vislumbravam a perda das suas referências cosmológicas, espirituais, territoriais e familiares. “Esta doutrinação teve como resultado desfazer os laços existentes entre os indígenas, destribalizar e descaracterizar os indígenas e produzir o índio genérico, pretérito, massificado, descaracterizado”.(Ibid, p.20).

Dessa forma, os métodos tradicionais de prevenção e tratamento de doenças, milenarmente utilizados pelos povos indígenas, como fumigações com tabaco, utilização de ervas em banhos, chás ou ungüentos, fomentações com saliva, escarificações, jejum, repouso e rezas foram duramente combatidos pelos agentes do cristianismo que lhes atribuíam o mérito de feitiçaria. Essas práticas terapêuticas, contudo, foram também se tornando ineficazes na medida em que se intensificavam os contatos entre povos indígenas e as doenças trazidas pelos colonizadores e missionários como a sífilis, o sarampo, a tuberculose e outras que erradicaram grupos inteiros em períodos mínimos de tempo. Como decorrência desses fatores, as atividades terapêuticas para as doenças não reconhecidas pelas medicinas tradicionais passaram a ser realizadas pelos missionários religiosos que se destacavam pelos conhecimentos médicos e se valiam, inclusive, desses conhecimentos para promover a aproximação com os povos indígenas, por não haver nenhuma ação oficial neste sentido.

A administração das reduções foram alvo de diferentes legislações, oscilando entre religiosos e colonos em momentos distintos da história. Todos os índios aldeados em idade

4 Segundo o autor, nas primeiras Cartas de Doação, já se encontra, entre outros direitos do donatário, o de

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produtiva eram obrigados a trabalhar em jornadas excessivas que iam de 14 a 16 horas diárias recebendo alimentação inadequada, castigos e maus tratos. Como remuneração recebiam, alguns metros de pano de algodão tecidos pelas próprias índias. (FREIRE; MALHEIROS, 1997).

Os indígenas constituíam a única força de trabalho capaz de identificar caminhos, abrir picadas, conduzir canoas, construir feitorias, engenhos e fortalezas, realizar roças e prover as demais necessidades para a continuidade da ocupação territorial. Sem eles os colonizadores não teriam conseguido se fixar no país, tampouco, teriam o que comer. Com o ciclo econômico litorâneo da cana-de-açucar, durante o reinado de D. João III (1521-1557), as populações indígenas que não se rendiam aos aldeamentos religiosos eram vítimas das chamadas guerras justas conduzidas pelos colonizadores no intuito de exterminá-las ou aprisioná-las para o trabalho escravo, abrindo suas terras, conseqüentemente, à ocupação. A Coroa Portuguesa legalizou a escravização dos índios que deveriam ser caçados e castigados com veemência desde o Regimento a Tomé de Souza, datado de 17 de dezembro de 1548. Entretanto, uma lei de 20 de março de 1570 determinou que os índios só podiam ser aprisionados nas “guerras justas” quando se obtivesse a autorização do rei ou do governador, não obstante, fosse permitido matar ou aprisionar aqueles que investissem contra os portugueses ou os gentios5. (Ibid).

O poder político dos aldeamentos fez com que fossem se tornando uma ameaça à ordem da Coroa Portuguesa. As tensões entre colonos e jesuítas na disputa pelo poder sobre os indígenas fez com que as missões fossem se afastando dos centros comerciais estabelecendo seus aldeamentos em locais isolados, identificados pelos índios, onde poderiam impor maior resistência às invasões dos colonos em busca de mão-de-obra escrava. Os aldeamentos passaram a constituir um Estado Indígena militarizado de resistência dentro do

5 Índios Tupi, aliados da Coroa Portuguesa que tinham sua liberdade garantida pela legislação real em

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próprio Estado, fato este que contribuiu para a expulsão dos jesuítas do país em 1759, logo após a aprovação da Lei Pombalina6. (HOORNAERT, 1994).

Com a queda do Marquês de Pombal em 1777, a sua legislação perdeu a validade oficial, tendo fim um período de relativa calma quando, paulatinamente, foram sendo retomados os métodos violentos de contato com os índios.

Segundo Gagliardi (1989, p.29-30):

A carta régia de 13 de maio de 1808 é um dos exemplos mais chocantes do nível que atingiu a repressão às populações indígenas, em particular os Botocudos de Minas Gerais,[...]Outra evidência é a Carta Régia de 5 de novembro de 1808, de igual conteúdo que a anterior, também propõe o uso da violência como meio de civilizar

povos bárbaros no caso dos Kaingang, através de uma escola severa. Propõe ainda a prática da escravidão para os índios que caíssem prisioneiros nas mãos dos responsáveis pela caçada.

O período colonial foi marcado por sucessivas tentativas de promover o recrutamento de mão-de-obra indígena para o trabalho escravo, o que configurou no extermínio de populações inteiras que se apresentavam incapazes de se ajustar ao projeto capitalista português. É notável, portanto, que as relações interculturais entre povos indígenas, colonizadores e missionários europeus foram construídas, desde os seus momentos iniciais, de forma assimétrica e impositiva, pois, percebemos que as diferenças culturais serviram como determinantes para se legitimar a dominação e o extermínio destes povos e com eles um complexo acervo de conhecimentos sobre as diferentes formas de promoção, proteção e recuperação da saúde, assim como, de manejo e transformação sustentável dos ecossistemas naturais, neste período marcado pelo desrespeito aos direitos fundamentais da vida e da liberdade na base da construção da sociedade nacional.

6 “No dia 14 de abril de 1755, foi decretado o primeiro alvará que, entre outras providências, incentivava o

casamento inter-racial e equiparava os índios aos colonos, em termos de trabalho e direitos. Em 6 de junho de 1755, foi decretada a liberdade irrestrita do índio, e no dia seguinte foi totalmente suprimido por lei- alvará de 7 de junho- o trabalho dos religiosos junto aos índios, o que vigorou inicialmente no Pará e no Maranhão, e após o alvará de 8 de maio de 1758 estendeu-se para todo o Brasil.’(PRADO, 1973, apud GAGLIARDI, 1989, P.28) A legislação posta em prática pelo Marquês de Pombal, proibia, no entanto, a língua geral e tupi em todo território nacional, legitimando o português como língua oficial.

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1.2 Brasil Império

Durante o período imperial pouca coisa mudou no que diz respeito às estratégias de integração dos povos indígenas à sociedade dominante. As forças liberais, cuja forte influência no processo culminou na proclamação da Independência do país, passaram a discutir a necessidade de se implementar uma política indigenista para o Império. Um dos documentos de maior significância que, tampouco chegou a ser legitimado, foi o “Projetos para o Brasil” de José Bonifácio de Andrada e Silva, então ministro do primeiro imperador D. Pedro I. Segundo Ramos (1999, p.8)

José Bonifácio bebeu sua inspiração nos séculos que o precederam e tentou uma nova combinatória do jogo finito que herdou: emulou o teor laico e moderno que fora lançado no Brasil pela política indigenista de Pombal, mas recorreu à figura colonial do missionário como prático ideal para induzir os índios à civilidade.

Bonifácio propôs que o relacionamento entre Estado e populações indígenas fosse permeado por princípios básicos que tinham como premissa a integração pacífica desses povos à sociedade dominante, a sua conversão à fé cristã e a conseqüente desobstrução de suas terras para a expansão dos projetos econômicos. Os princípios básicos a qual se referia o documento apresentado à Assembléia Geral constituinte em 1823 eram respectivamente, segundo Barbosa (1923, p.39) :

1°Justiça, não esbulhando mais os índios, pela força das terras que ainda lhes restam, e de que são legítimos senhores; 2º Brandura, Constancia e soffrimento de

nossa parte que nos cumpre como usurpadores e christãos; 3° Abrir commercio com

os barbaros, ainda que seja com perda da nossa parte; 4º Procurar com dadivas e

admoestações fazer pazes com os Índios inimigos; 5º Favorecer por todos os meios

possíveis os matrimônios entre Índios e brancos e mulatos. (grifos do autor)

O documento também fazia referência à catequese conferindo ao pároco o poder político administrativo nas aldeias, garantindo-lhe a força policial à sua disposição, além do poder de administrar os produtos agrícolas e um sistema de atenção à saúde com ênfase na

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prevenção de doenças. Por fim, designava a um Tribunal Superior a supervisão das ações eclesiásticas e civis das aldeias e das províncias. (Ibid).

Bonifácio resgatava a idéia do missionário como agente civilizador, pelo êxito observado nas missões jesuíticas, que chegaram a ameaçar o poder estatal pelo seu domínio organizacional e civilizador. As idéias liberais de José Bonifácio inspiravam-se em parte nas ações jesuíticas, no entanto, contestava os projetos isolacionistas dos mesmos, referindo-se à necessidade de se aperfeiçoar seus métodos de atração de índios bravios e a sua conseqüente civilização dos mesmos. Segundo Ramos (1999, p.08), “Longe de ser irrelevante, o projeto de José Bonifácio, perfeitamente à vontade das linhas sucessórias de experimentações indigenistas, ajuda-nos a entender melhor a política e a prática atuais no lidar com a etnicidade no país”.

Neste período, a forma como se davam os relacionamentos entre o Estado e as populações indígenas eram embasadas, necessariamente, na taxonomia que se empregava na época, opondo-se os índios ditos mansos aos bravos, bravios ou hostis. Aos primeiros, aliados do conquistador (em termos ideais e normativos), não se poderia escravizar ou subtrair-lhes as terras em compensação. Os segundos, considerados insubmissos, eram passíveis de escravidão e de expropriação legalizada de seus territórios. Lima (1995, p.122) assinala que, “A retórica parece incluir os nativos, aliados ou não, dentre os animais, a domesticação sendo homóloga à civilização. Do ângulo do Direito aproximava-se os índios do domínio das coisas e não da esfera das gentes”. Mesmo após o decreto de 27 de outubro de 1831 que revogava as cartas régias que legitimavam a escravidão e a guerra declarada pela sociedade dominante à população indígena, já era notável a inversão no panorama demográfico nacional, onde, haviam se transformado em minoria os habitantes indígenas que já representaram a maioria populacional no país. (Ibid).

Referências

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