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As Políticas Indigenistas de Saúde no Brasil República

Não se têm registros sobre ações de saúde desenvolvidas pelo SPI até a década de 1950 quando foi implementado o primeiro sistema de atenção à saúde indígena oficial, denominado de Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA), proposto pelo médico sanitarista Noel Nutels. Seu trabalho teve início a partir de sua participação como médico da Expedição Roncador-Xingu, juntamente com os irmãos Vilas Boas. O SUSA foi criado com o objetivo de prestar assistência aos povos indígenas e às populações rurais de difícil acesso. O trabalho de Nutels propunha a criação de um anteparo de proteção contra as doenças trazidas através do contato, para as quais os índios não tinham adquirido resistência. O órgão, ligado administrativamente ao Serviço Nacional de Tuberculose, contava também com o apoio da Força Aérea Brasileira (FAB) até 1964. (COSTA, 1987).

Baseado na idéia de delimitar um espaço de proteção para as populações indígenas que se encontravam no caminho dos projetos expansionistas brasileiros, foi criado o Parque Nacional do Xingu em 1961. As ações de saúde no Parque eram desenvolvidas pelo médico pioneiro Dr. Nutels e pela esposa de Orlando Vilas Boas, a enfermeira Marina. (BOAS, 2005). “Após a criação do SUSA, o trabalho se ampliou para os grupos indígenas do sul de Mato Grosso e da área do Rio Negro (na Amazônia). As ações desenvolvidas foram vacinações, extrações dentárias e cadastro torácico”.(COSTA, 1987, p.05). As intervenções do SUSA, entretanto, costumavam restringir-se às ocasiões de surtos que se desencadeavam

quando grupos indígenas entravam em contato com a sociedade circundante sem que se configurassem em ações permanentes, como no caso da epidemia de sarampo nas tribos do alto Xingu em 1954. (CONFALONIERI, 1993). Eram escassos, portanto, os recursos para a efetivação de um projeto de dimensões nacionais que atendesse à amplitude das necessidades do complexo panorama étnico e cultural indígena do país com ações preventivas e de promoção de saúde.

Em 1967, com a extinção do então SPI, após inúmeras denúncias de violências cometidas contra os povos indígenas do Brasil, foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Segundo Davis e Menget (apud COSTA,1987, p.06):

Uma série de livros e declarações públicas falavam de cobertores sendo dados aos índios contaminados por varíola e outras doenças; de incidentes onde napalm era atirado sobre as aldeias indígenas; eram exibidas fotografias de aldeias que haviam sido dizimadas, onde apareciam restos de mulheres e crianças sobre o solo árido e carbonizado. A sentença unânime da Europa era que o Brasil estava pondo em prática uma política de genocídio étnico.

Essas denúncias, segundo Costa (1987), vieram a ser confirmadas e comprovadas através do Relatório Figueiredo em 1967 que foi conduzido por uma comissão nomeada pelo então Ministro do Interior, General Albuquerque de Lima.

A Fundação Nacional do Índio, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, passou a assumir as atividades de tutela das populações indígenas, sob a égide da ditadura militar, que implementou na década de 70 o “Plano de Integração Nacional”(PIN). Este plano vislumbrava a integração das diferentes regiões do país através da abertura de rodovias que entrecortavam a nação de Leste a Oeste e a conseqüente continuidade da ocupação e exploração das áreas isoladas do país. Ainda segundo Costa (Ibid, p.7), “A construção da Transamazônica seria expressão maior da nova política de extermínio dos povos indígenas. Grupos que viviam praticamente isolados seriam contatados de maneira extremamente violenta”.

Com o processo de apropriação das suas terras através dos projetos que davam sustentação ao “milagre econômico”, também proposto pelos governos militares, várias etnias perderam seus referenciais de vida, construídos milenarmente nas áreas em que habitavam. Restaram a muitos desses povos, que atualmente vivem em intenso contato com a sociedade envolvente, o legado dos problemas sociais que afligem as camadas mais empobrecidas da população nacional, como o alcoolismo, a prostituição, a drogadição, a desnutrição, a tuberculose, o suicídio, os problemas de saúde bucal e os altos índices de mortalidade infantil. Em 1973 foi promulgado o Estatuto do Índio (Lei nº 6001/1973) que reafirmou oficialmente a função política do Estado de integração dos povos indígenas à sociedade nacional absorvendo os ditames segregacionistas implícitos no antigo Código Civil de 1916. O Estatuto reforçou a necessidade de tutela para esses povos reconhecendo a capacidade civil plena somente àqueles que fossem incorporados à comunhão nacional, ainda que conservassem usos, costumes e tradições característicos de sua cultura. A promulgação do Estatuto do Índio refletia a relação estipulada entre os militares e os povos indígenas. Segundo Garnelo, Macedo e Brandão (2003, p.38), durante os governos militares, “os índios eram considerados como inimigos do Estado brasileiro e o principal obstáculo ao desenvolvimento da Amazônia e outras regiões de fronteira”.

A Fundação Nacional do Índio passou a desenvolver inúmeros papéis na atenção à população indígena (proteção à terra, assistência à saúde, educação e resolução de conflitos), durante o período da ditadura militar. Baseado na experiência do SUSA foi criado um serviço específico de atenção à saúde indígena denominado Equipe Volante de Saúde (EVS), liderada por Noel Nutels e José Antônio de Miranda. Esse modelo atuava nas áreas indígenas onde funcionavam Postos Indígenas com um auxiliar de enfermagem que desenvolvia as ações curativas emergenciais e garantia a continuidade de tratamentos prolongados. Seu funcionamento deu-se plenamente durante a década de 70 em parcerias com o Ministério da

Saúde, hospitais universitários e de pesquisa e Casas de Saúde do Índio (CASAI), localizadas nos centros urbanos ao qual eram encaminhados pacientes que necessitavam de maiores cuidados. (VERANI, 1999).

Nos anos 80, o órgão indigenista brasileiro sofreu com as ingerências políticas e administrativas externas e com um processo de redução orçamentária progressiva que resultou no desmonte de suas atividades. A falta de uma política de recursos humanos resultou na ineficácia das ações nos Postos Indígenas culminando na substituição cada vez mais freqüente dos auxiliares de enfermagem por atendentes, criando acúmulo de pessoal no nível regional (fora das áreas). Com o progressivo estrangulamento financeiro, o órgão abandonou a formação específica voltada para o preparo antropológico desses profissionais e cada vez mais a porta de entrada no sistema foi inviabilizada. (Ibid).

As inúmeras tentativas de integração dos povos indígenas à sociedade nacional permitiram ao longo do tempo que, através do convívio sistemático com a lógica que alimentava a sociedade dominante, as lideranças indígenas se apoderassem de novos conhecimentos e mecanismos de luta pela defesa de seus direitos.

O final da década de 80 foi um período que marcou profundas mudanças no panorama político nacional, destacando-se pelo processo de redemocratização do país que culminou na queda do regime militar e na promulgação da Carta Constituinte brasileira em 1988, com ampla participação dos povos indígenas.

No campo da saúde destacou-se o movimento da Reforma Sanitária que abriu espaços para a discussão de um novo projeto político e normativo que deveria contemplar os princípios da universalidade do atendimento, unificação, hierarquização e descentralização das ações de gerência, planejamento e gestão, amplamente discutidos na Conferência Internacional de Cuidados Primários de Saúde de Alma-Ata, celebrada em Setembro de 1978.

Existe amplo consenso de que a Conferência de Alma-Ata realizada na capital do Cazaquistão, na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URRS) em 1978, constituiu um marco na Política Internacional de Saúde pelo alcance que teve em quase todos os sistemas de saúde do mundo. Nela foi discutido um novo enfoque para o alcance do mais alto nível possível de saúde, que preconizava a articulação dos diferentes setores sociais e econômicos envolvidos neste processo.

A ampliação do horizonte axiológico acerca do conceito de saúde que se deu após a Segunda Guerra Mundial passou a transfigurar-se, mesmo que de forma discreta e dispersa, em programas de atenção básica em diferentes partes do mundo. Neste sentido, na Conferência de Alma-Ata foram discutidas experiências que levavam a noção de saúde descrita pela OMS como “bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças” ao alcance das pessoas em seus locais de moradia, trabalho e lazer, incluindo a participação das comunidades nos programas de cuidados simples, de baixo custo e de fácil acesso.7

Acompanhando a tendência internacional de reconceitualização dos modelos de atenção à saúde, aconteceu no Brasil em 1986 a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que se destacou por ampla participação de representantes da sociedade civil e delineou a formatação do projeto da Reforma Sanitária para o país, norteado por três eixos principais: a ampliação do conceito de saúde considerando seus condicionantes econômicos e sociais; a determinação da saúde como direito social universal e dever do Estado, não mais como um direito previdenciário; e a instituição de um Sistema Único de Saúde, descentralizado com comando único em cada esfera de governo, atendimento integral e participação da comunidade.

7 Na conferência foram discutidas experiências como a dos “médicos de pés descalços”, trabalhadores rurais da

China com formação em saúde pública e curativa; os Family Wellfare Workers (Trabalhadores do Bem- Estar Familiar) de Bangladesh que, inspirados no modelo chinês, realizavam atendimentos nas aldeias próximas à sua residência ; e demais “experiências inovadoras” no campo da atenção primária à saúde. (VERANI, 1999).

No seu conceito ampliado, a saúde foi definida como resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. A 8ª CNS possibilitou a ampliação conceitual do termo saúde para fins de aplicabilidade política e normativa, não obstante, tenha considerado que este conceito fosse definido dentro do contexto histórico e cultural de cada sociedade de acordo com os valores sociais atribuídos aos bens e serviços condicionantes de qualidade de vida e saúde.

Muito embora o paradigma conceitual de saúde considerado pela conferência tenha representado grande avanço tanto no campo teórico como no prático, Buss (2003, p.44) adverte para o fato de que, “ Ao se elaborar um sistema lógico e coerente de explicação, mutilam-se as possibilidades de sua apreensão sensível, por se encerrar a realidade em uma redução”.