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A Doença do Preconceito

2- POVOS INDÍGENAS, GLOBALIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E SAÚDE-

5.1 Processo Saúde-Doença, uma Dimensão Espaço Temporal

5.1.1 A Doença do Preconceito

O discurso dos jovens Mbyá se refere aos mesmos valores atribuídos pelos anciãos ao processo saúde-doença, quando consideram a floresta, a água boa, a caça e a terra agricultável como os condicionantes principais para a manutenção da vida em sua amplitude biológica, social, econômica e espiritual, reproduzindo a idéia de que o processo de urbanização de seu território é o principal fomentador das doenças que lhes acometem atualmente. Contudo, esses elementos ainda são dotados na cultura Mbyá, de um simbolismo mítico-religioso que permite que os índios pensem a si mesmos como os seus verdadeiros guardiões por se considerarem os primeiros habitantes deste mundo e, no entanto, conhecedores dos mistérios mais profundos da sua criação e preservação.

Frente à desestruturação maciça dos elementos que possibilitam viver a vida de acordo com os preceitos divinos, os relatos apontam para a idéia de um tipo de vida enferma atualmente, vulnerável aos infortúnios de diferentes naturezas, conforme relata um depoente da aldeia Três Palmeiras:

“Você sabe que aonde o Guarani vivia, aonde Deus do povo Guarani que o índio acredita, ele mostra aonde está saúde. Então por isso que muitos Guarani andam muito em encontro dessa saúde, onde chamavam Terra sem Males né, aonde a mata está, aonde a água não está poluída, aonde a mata não está poluída aonde tem caça, aonde ele convive e se alimenta da própria natureza, aonde a natureza oferece né. Então se a gente não estiver

nesse tal lugar aonde Deus mostrou, a gente não pode dizer que nós estamos de saúde feliz, contente. Isso a gente vê em cada Guarani que vive aqui, então é por isso que se a gente vive nesse local isolado, isto não é saúde. A água encanada que vem, diz que é limpo, diz que é saúde, a água encanada diz que ela é trabalhada né, pra não ver coisas. Então isso pra mim não é saúde, aonde as crianças freqüentemente fica doente é porque acabou com a saúde do Guarani.” (liderança C)

A má qualidade da água encanada e o ar poluído transpareceram nos enunciados como os principais propagadores das doenças que acometem, principalmente, as crianças e os idosos. Ao associar a Terra Sem Males à presença de água, não qualquer água, mas água boa, caça e terra boa, a fala do depoente Mbyá revela que o sustentáculo da sua crença consiste no fato de que cada elemento descrito por ele tem uma importância singular na estruturação do seu universo simbólico e por isso deve ser preservado da sua destruição. O discurso vivo da Terra Sem Males emerge em uma analogia à saúde, pois se renova cotidianamente na vida individual, social e familiar dos Mbyá anunciando um tempo em que a terra imperfeita será destruída e só se salvarão aqueles que se dedicarem a viver segundo os preceitos divinos que ordenam a vida em relação aos seus semelhantes e aos demais seres de origem natural e sobrenatural.

Muito embora, o entendimento sobre saúde e doença apareça atrelado em todos os relatos à condição de existência ou não dos elementos que estruturam o universo simbólico originário no tekoa (aldeia) atualmente, é notável que não constituam fatores restritivos para que os Mbyá mobilizem novos recursos materiais e simbólicos para lidar com o processo. Os séculos de contato têm demonstrado que a resistência cultural Guarani está centrada na sua capacidade de dialogar em diferentes formas e graus com outros valores e práticas e

reinterpretá-los em prol da melhoria de sua qualidade de vida e saúde, mesmo entendendo que não lhes suprem as suas necessidades mais profundas.

Cada dia que se inicia nas casas Guarani consiste em uma reconfiguração de todas as expectativas criadas para ele. Portanto, não existe ao certo uma prática cotidiana onde os Guarani conseguem se programar e repetir igualmente todos os dias, mas um fluxo nas atividades diárias decorrentes das necessidades econômicas imediatas e dos acontecimentos sociais mais amplos que costumam exigir mobilizações de representantes das famílias para negociar interesses comuns a todos.

A dependência financeira do trabalho remunerado por um ou mais membros de cada família faz com que os Guarani, principalmente, os que se encontram em idade produtiva, reconheçam a disposição diária para o mesmo, como uma decorrência da qualidade das relações entre os homens e o mundo natural e sobrenatural atualmente. Assim, os Mbyá identificam a qualidade do seu sono como uma importante fonte de renovação diária, pois, o ato de dormir e sonhar pode encerrar em si uma experiência mística quando os sujeitos afastam-se da sua condição imperfeita de viver (teko achy kue) e repousam na dimensão espiritual da palavra-alma (ne’eng), que renova as forças necessárias para se retomar mais uma jornada diária no mundo das imperfeições terrenas (yvy mba’megua).

Ao mesmo tempo, é através do sono que a alma desprotegida espiritualmente devido às transgressões morais, sociais e religiosas pode ser atacada por seres sobrenaturais, condicionando a horizontalidade do corpo, ou seja, as enfermidades que impossibilitam a realização de tais atividades. Estar de pé e disposto para o trabalho pode ser entendido, em analogia às descrições feitas por Cadogan no Ayvu Rapta (1959), como uma condição de saúde mais ampla que integra o corpo verticalizado à fluidez da palavra-alma pelos ossos. Assim, um depoente afirmou:

“Se não tiver saúde aí já fala logo, que não acordou bem e dormiu mal, o corpo dele não estava bem no momento que ele tava dormindo e que não podia acordar . Então já fala logo, quando tá com saúde , ele já fala logo que tá acordado, tá bem, tá participando, tem o momento do trabalho.” (Educador A)

Se por um lado os Mbyá vêm assumindo, cada vez mais, novas posturas interculturais para a sua sobrevivência, estas estão sujeitas à qualidade das interações com a sociedade envolvente e os seus valores. Assim, não são raras as relações conflituosas que se consubstanciam na forma de preconceito e discriminação etnico-cultural explícita, constituindo fatores determinantes para o acesso aos bens e serviços condicionantes de qualidade de vida e saúde atualmente. Segundo uma liderança da aldeia Três Palmeiras:

“Antes a gente sentia no olho das pessoas que as pessoas discriminavam o índio, mas não falava que odiava o índio, que não gosta de índio, que o índio é preguiçoso, essas coisas, não chegava a falar. Mas depois que a Aracruz Celulose divulgou essas mentiras só pra querer ficar com as questões da terra, todo mundo resolveu abrir a boca e dizer, fazendo protesto contra os índio, botando pra fora o que eles sempre sentiram que é a discriminação dos índios”.(Liderança B)

Referências às situações de preconceito explícito transpareceram na maioria dos enunciados de forma espontânea, como parte do contexto das tensões vividas pelos Guarani historicamente na região. Com vistas a ilustrar o sentimento e a apreensão vivenciada por esses índios frente à situação de preconceito, uma depoente relata:

“Uma vez no ônibus, eu estava vindo de ônibus, aí o motorista era índio de Caieiras, né. Aí tinha um grupo de meninos, aí veio provocando, falando mal dos índios né, então eu era índia que eu tava no meio e o outro menino também. “O motorista aqui é índio!” E ele veio provocando, provocando até a gente descer. Falando mal do índio, é isso, é aquilo né”.(Educadora A)

Vale lembrar, que as manifestações discriminatórias e anti-sociais são reconhecidas como patológicas na cultura Guarani, pois, não raramente os indígenas as consideram como agentes causais das doenças físicas e /ou espirituais. Dessa forma, empreender esforços no combate sistemático a esses fatores de risco à saúde implica necessariamente em entender a importância que exercem nos processos mórbidos e como a sua minimização pode ajudar na promoção da saúde através da construção de relações igualitárias e respeitosas entre os povos e as culturas. Neste sentido, o artigo número 31 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho recomenda a adoção de medidas “[...] de caráter educativo em todos os setores da comunidade nacional, e especialmente naqueles que estejam em contato mais direto com os povos interessados, com o objetivo de se eliminar os preconceitos que poderiam ter com relação a esses povos.” (OIT, 1989, p.13).