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Estima-se que a população indígena do Brasil pré-colonial poderia se encontrar pouco acima de 6 milhões de pessoas, que dominavam cerca de 1.3 a 1.5 mil línguas no período em que as primeiras naus portuguesas aportaram no país. Denevan (1976)1 calculou o contingente populacional indígena restrito à região da região da Grande Amazônia2 em torno de 6,8 milhões de pessoas para este mesmo século. Os números atuais apontam para um histórico de massacres e epidemias, ocorridos, principalmente, nos primeiros anos que marcaram o contato entre indígenas e colonizadores. Segundo Freire e Malheiros (1997, p.02):

Os demógrafos da Escola de Berkeley, nos Estados unidos, confirmaram essas conclusões estarrecedoras. Woodrow Bora, em 1964, calculou que no primeiro século de colonização, houve 90% de despovoamento (ou a razão de 10 para 1). Dois anos depois, em 1966, os estudos de Henry Dobbyns apontaram um índice de declínio populacional de 20 para 1, enquanto William Denevan em 1976, estimou em 35 para 1.

As incursões coloniais que visavam o povoamento do território brasileiro atendiam aos objetivos portugueses de expansão do cristianismo e das fronteiras capitalistas concomitantemente. A relação sinérgica entre capitalismo e religião no período colonial serviu como mola propulsora para a promulgação de propostas normativas que

1 Discordando dos inúmeros estudos que se baseavam em relatos dos colonizadores da época e que, portanto, não

conferiam a fidedignidade de um levantamento científico, o autor baseou-se em evidências pré-históricas, históricas e contemporâneas que confirmavam a presença de um determinado grupo indígena em um determinado local, associadas ao fato de que o contingente populacional estava estreitamente relacionado aos recursos existentes no habitat natural e aos padrões de subsistência dominantes na população estudada.

2 Região que compreende a área leste da América do Sul, sul dos Andes e norte do Trópico de Capricórnio,

fundamentavam as deliberações da Coroa portuguesa com relação aos povos indígenas no período pós-conquista. (HOORNAERT, 1994).

Como estratégia de ocupação territorial, a Coroa Portuguesa costumava conceder o privilégio da exploração da madeira a alguns comerciantes, que passavam a se fixar em pequenos acampamentos e feitorias provisórias. 3Contudo, as primeiras medidas voltadas ao povoamento efetivo da nova colônia portuguesa deu-se pela adoção de capitanias hereditárias. (FREIRE, MALHEIROS, 1997).

O regime de capitanias hereditárias consolidou-se como a principal estratégia da Coroa Portuguesa para garantir a ocupação das terras brasileiras e a sua propriedade. Com os recursos do Tesouro Real voltados para investimentos no Oriente, a implantação do regime de donatarias transferiu para a iniciativa particular a responsabilidade pela exploração econômica da América portuguesa. Através de doações, a Coroa Portuguesa dividiu 5 mil quilômetros da costa em 15 lotes, perfazendo 12 capitanias. (BUENO, 2006). Assim surgiu a figura do donatário. Segundo Gagliardi (1989, p.26-27), “Os poderes desses régulos eram amplos. Além da posse de um vasto território, inalienável e transmitido hereditariamente, podiam ainda fundar vilas, nomear tabeliões, ouvidores, punir crimes, escravizar índios, conceder sesmaria, etc.”4

Em paralelo à atuação dos donatários, as missões religiosas agiam na catequese indígena adentrando em território nacional, corroborando com a ampliação das fronteiras coloniais. Dentro deste contexto, destacou-se a atuação dos missionários jesuítas na formação dos chamados aldeamentos, reduções ou descimentos, que se referiam às aldeias criadas por estes religiosos com a intenção de reduzir os indígenas da sua vida tradicional à fé cristã e ao trabalho compulsório. O acordo firmado no dia 30 de julho de 1556 entre o então governador

3 “ A documentação histórica identifica duas feitorias criadas logo nos primeiros momentos, em 1503: um em

Cabo Frio, criada por Américo Vespúcio e outra onde, provavelmente, fica a Praia do Flamengo,criada por Gonçalo Coelho. (FREIRE e MALHEIROS, 1997, p.37)

geral Mem de Sá e os jesuítas afirmava a liberdade e a inviolabilidade dos aldeamentos. No entanto, a base jurídica que assegurava a sua criação sofria de fundamental fraqueza, pois não era aplicada aos escravos. Os descimentos quase sempre resultavam em fracasso em termos demográficos, pois os índios morriam em quantidade, contaminados pelas doenças transmissíveis oriundas de além-mar. (HOORNAERT, 1994).

Os missionários tinham o compromisso de catequizar os indígenas e transformá-los em força de trabalho através da utilização de métodos que vislumbravam a perda das suas referências cosmológicas, espirituais, territoriais e familiares. “Esta doutrinação teve como resultado desfazer os laços existentes entre os indígenas, destribalizar e descaracterizar os indígenas e produzir o índio genérico, pretérito, massificado, descaracterizado”.(Ibid, p.20).

Dessa forma, os métodos tradicionais de prevenção e tratamento de doenças, milenarmente utilizados pelos povos indígenas, como fumigações com tabaco, utilização de ervas em banhos, chás ou ungüentos, fomentações com saliva, escarificações, jejum, repouso e rezas foram duramente combatidos pelos agentes do cristianismo que lhes atribuíam o mérito de feitiçaria. Essas práticas terapêuticas, contudo, foram também se tornando ineficazes na medida em que se intensificavam os contatos entre povos indígenas e as doenças trazidas pelos colonizadores e missionários como a sífilis, o sarampo, a tuberculose e outras que erradicaram grupos inteiros em períodos mínimos de tempo. Como decorrência desses fatores, as atividades terapêuticas para as doenças não reconhecidas pelas medicinas tradicionais passaram a ser realizadas pelos missionários religiosos que se destacavam pelos conhecimentos médicos e se valiam, inclusive, desses conhecimentos para promover a aproximação com os povos indígenas, por não haver nenhuma ação oficial neste sentido.

A administração das reduções foram alvo de diferentes legislações, oscilando entre religiosos e colonos em momentos distintos da história. Todos os índios aldeados em idade

4 Segundo o autor, nas primeiras Cartas de Doação, já se encontra, entre outros direitos do donatário, o de

produtiva eram obrigados a trabalhar em jornadas excessivas que iam de 14 a 16 horas diárias recebendo alimentação inadequada, castigos e maus tratos. Como remuneração recebiam, alguns metros de pano de algodão tecidos pelas próprias índias. (FREIRE; MALHEIROS, 1997).

Os indígenas constituíam a única força de trabalho capaz de identificar caminhos, abrir picadas, conduzir canoas, construir feitorias, engenhos e fortalezas, realizar roças e prover as demais necessidades para a continuidade da ocupação territorial. Sem eles os colonizadores não teriam conseguido se fixar no país, tampouco, teriam o que comer. Com o ciclo econômico litorâneo da cana-de-açucar, durante o reinado de D. João III (1521-1557), as populações indígenas que não se rendiam aos aldeamentos religiosos eram vítimas das chamadas guerras justas conduzidas pelos colonizadores no intuito de exterminá-las ou aprisioná-las para o trabalho escravo, abrindo suas terras, conseqüentemente, à ocupação. A Coroa Portuguesa legalizou a escravização dos índios que deveriam ser caçados e castigados com veemência desde o Regimento a Tomé de Souza, datado de 17 de dezembro de 1548. Entretanto, uma lei de 20 de março de 1570 determinou que os índios só podiam ser aprisionados nas “guerras justas” quando se obtivesse a autorização do rei ou do governador, não obstante, fosse permitido matar ou aprisionar aqueles que investissem contra os portugueses ou os gentios5. (Ibid).

O poder político dos aldeamentos fez com que fossem se tornando uma ameaça à ordem da Coroa Portuguesa. As tensões entre colonos e jesuítas na disputa pelo poder sobre os indígenas fez com que as missões fossem se afastando dos centros comerciais estabelecendo seus aldeamentos em locais isolados, identificados pelos índios, onde poderiam impor maior resistência às invasões dos colonos em busca de mão-de-obra escrava. Os aldeamentos passaram a constituir um Estado Indígena militarizado de resistência dentro do

5 Índios Tupi, aliados da Coroa Portuguesa que tinham sua liberdade garantida pela legislação real em

próprio Estado, fato este que contribuiu para a expulsão dos jesuítas do país em 1759, logo após a aprovação da Lei Pombalina6. (HOORNAERT, 1994).

Com a queda do Marquês de Pombal em 1777, a sua legislação perdeu a validade oficial, tendo fim um período de relativa calma quando, paulatinamente, foram sendo retomados os métodos violentos de contato com os índios.

Segundo Gagliardi (1989, p.29-30):

A carta régia de 13 de maio de 1808 é um dos exemplos mais chocantes do nível que atingiu a repressão às populações indígenas, em particular os Botocudos de Minas Gerais,[...]Outra evidência é a Carta Régia de 5 de novembro de 1808, de igual conteúdo que a anterior, também propõe o uso da violência como meio de civilizar

povos bárbaros no caso dos Kaingang, através de uma escola severa. Propõe ainda a prática da escravidão para os índios que caíssem prisioneiros nas mãos dos responsáveis pela caçada.

O período colonial foi marcado por sucessivas tentativas de promover o recrutamento de mão-de-obra indígena para o trabalho escravo, o que configurou no extermínio de populações inteiras que se apresentavam incapazes de se ajustar ao projeto capitalista português. É notável, portanto, que as relações interculturais entre povos indígenas, colonizadores e missionários europeus foram construídas, desde os seus momentos iniciais, de forma assimétrica e impositiva, pois, percebemos que as diferenças culturais serviram como determinantes para se legitimar a dominação e o extermínio destes povos e com eles um complexo acervo de conhecimentos sobre as diferentes formas de promoção, proteção e recuperação da saúde, assim como, de manejo e transformação sustentável dos ecossistemas naturais, neste período marcado pelo desrespeito aos direitos fundamentais da vida e da liberdade na base da construção da sociedade nacional.

6 “No dia 14 de abril de 1755, foi decretado o primeiro alvará que, entre outras providências, incentivava o

casamento inter-racial e equiparava os índios aos colonos, em termos de trabalho e direitos. Em 6 de junho de 1755, foi decretada a liberdade irrestrita do índio, e no dia seguinte foi totalmente suprimido por lei- alvará de 7 de junho- o trabalho dos religiosos junto aos índios, o que vigorou inicialmente no Pará e no Maranhão, e após o alvará de 8 de maio de 1758 estendeu-se para todo o Brasil.’(PRADO, 1973, apud GAGLIARDI, 1989, P.28) A legislação posta em prática pelo Marquês de Pombal, proibia, no entanto, a língua geral e tupi em todo território nacional, legitimando o português como língua oficial.