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A Aracruz Celulose, a Eucaliptocultura e os Guarani Mbyá

2- POVOS INDÍGENAS, GLOBALIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E SAÚDE-

3.2 A Aracruz Celulose, a Eucaliptocultura e os Guarani Mbyá

A partir da década de 1960, a lógica econômica dos governos militares, voltou-se para o desenvolvimento tecno-industrial, favorecendo a instalação de grandes empresas estrangeiras em território nacional. O Brasil destacava-se no panorama internacional por oferecer as condições ideais para a produção em curto espaço de tempo da espécie de eucalipto de fibra curta, utilizado para a elaboração da pasta de celulose. Esta espécie proporcionava vantagens em termos de produtividade, o que, colocou o país em destaque com relação aos principais países produtores que utilizavam a espécie de fibra longa, de maior período de maturação. Os governos militares elegeram a eucaliptocultura como o projeto que daria destaque ao país no mercado internacional, tendo em vista, as progressivas inovações tecnológicas e industriais voltadas para a produção de pasta de celulose branqueada desenvolvidas por grandes empresas internamente. Vale lembrar, que esta espécie exótica, oriunda da África do Sul e da Austrália, foi introduzida no país no início do século XX, antes mesmo, que se conhecesse suas especificidades botânicas e os impactos provocados em condições ecológicas diferentes das do seu lugar de origem. (GONÇALVES, 1992).

Estas condições, aliadas à decadência do café que se esboçava como produto central na economia capixaba, proporcionaram a implementação do Complexo Aracruz Celulose em 1967 no estado do Espírito Santo. O projeto recebeu fortes incentivos fiscais e foi amplamente subsidiado pelo capital estrangeiro e nacional, sob a divulgação de que constituiria a solução para o desemprego e para o progresso do estado.

Segundo Gonçalvez (Ibid, p.77):

A história da entrada do reflorestamento com eucaliptos nas regiões nordeste e norte de Minas, no extremo sul da Bahia e no norte do Espírito Santo (que ocorreu ao longo do período iniciado nos últimos anos da década de 60) é marcada exatamente por retirada do produtor da terra, sua transformação e dos membros de sua família em trabalhador para a empresa, destruição do seu habitat natural e, finalmente, sua expulsão da própria região.

A inserção das elites políticas em postos avançados na administração da empresa garantiu, certamente, que os interesses econômicos internacionais se sobrepujassem à qualidade de vida e saúde da população local que dependia do meio ambiente para sua subsistência familiar. Valle (1981, p.01) confirma este fato sinalando que “[...]o governador do Espírito Santo, Arthur Gerhard dos Santos, se deixou nomear como primeiro diretor presidente do novo empreendimento de celulose.”

Em um processo avassalador a empresa ocupou uma área onde existiam 40 aldeias Tupiniquim em um ato de desrespeito a esses grupos e à biodiversidade local sem precedentes na história do país, conforme o relato de um professor indígena (BRASIL, 2000, p-13):

Ao longo dos séculos houve várias transformações em nossa cultura, provocadas em grande parte pelo contato com os não-índios. Nesse processo de transformação sofremos uma perda gradativa de nossas terras: de mais de 200 hectares demarcados no século XVIII (1760) passamos a ter 60 mil hectares na década de 40 do século XX e nos anos 70 deste mesmo século ficamos confinados em apenas 40 hectares. Em 1940, contrariando a Constituição, o governo brasileiro autorizou a Companhia de Ferro e Aço de Vitória (COFAVI) a explorar 10 mil hectares de nossas terras para a produção de carvão vegetal. Já em 1967 a Aracruz Celulose (ARCEL) comprou da COFAVI os 10 mil hectares e ocupou o restante das nossas terras.

Em suas negociações os representantes da empresa utilizavam, na maioria das vezes, a opressão e a ameaça como forma de apoderar-se das áreas, como também fez com as populações quilombolas da região. Segundo Coimbra (2006, p.02),“dos índios, a Aracruz Celulose tomou cerca de 40 mil hectares de terras, no Espírito Santo”.

Tupã Kwaraí, pajé da aldeia Guarani Boa Esperança no Espírito Santo, em entrevista à Silva e Samaniego (2005, p-03) relatou que “antigamente os índios viviam bem, viviam plantando, caçavam nas matas e faziam mundéu e outras armadilhas; traziam anta, quati, tatu, veado e todo tipo de caça da mata. No passado as águas eram limpas [...] e tudo era mais alegre.”

Em uma carta redigida de próprio punho, o professor Huschi (1981 apud VALLE, p.01-05) deixou claro que a ARCEL mexeu de forma significativa na vida dos habitantes da região. O professor iniciou seu texto advertindo que “imensas florestas de eucaliptos acabam com a floresta tropical e com as plantações de café dos pequenos fazendeiros” e informou que o governo capixaba destinou incalculável quantitativo financeiro para a construção de um imenso porto marítimo para a empresa, em contrapartida, negou-se a realizar a construção de um pequeno molhe (quebra-mar) solicitado pelos pescadores de Barra do Riacho para facilitar o seu trabalho. Quanto aos indígenas, Huschi demonstra com fatos, a intima relação entre o domínio empresarial e os poderes administrativos da região, confirmando o abuso das autoridades locais na determinação de conflitos com os povos indígenas Guarani e Tupiniquim:

A Aracruz Celulose e a sua administração local tentam com proibições e ameaças de um lado, e com atraentes propostas de compra de outro lado, ficarem donos da terra. Quando a um ano atrás o prefeito de Aracruz bateu num índio com um chicote e pisou no seu rádio transistorizado, a prensa e a televisão interferiram. Desde então a Aracruz Celulose está sendo mais observada. (Ibid).

Nos últimos anos, empresa Aracruz Celulose vem despontando nos noticiários internacionais pelas tensões com as populações indígenas e quilombolas no estado do Espírito Santo, fazendo, inclusive, com que a família real sueca anunciasse em público a venda das suas ações em um ato de não conivência com a postura da transnacional.

O surgimento de cidades próximas às aldeias, decorrentes do processo de implantação do sistema industrial na região, ocasionou mudanças radicais na dinâmica social e cultural dos Guarani intensificando os relacionamentos com a sociedade envolvente nos espaços e serviços públicos. Os impactos exercidos sobre o ecossistema nativo e a, conseqüente, escassez de recursos naturais fez com que os indígenas passassem a procurar recursos para a sua sobrevivência nas cidades circunvizinhas. Keretxu Miri, filha de Tatãtî Ywarete, fundadora da aldeia de Boa Esperança, afirma que “no passado os índios não se juntavam com

os brancos, depois que o branco chegou nesta terra os índios deixaram de viver em harmonia, de algum tempo pra cá é que alguns brancos começaram a nos ajudar”. (SILVA et al, 2004, s/p).

Na medida em que os relacionamentos com a sociedade envolvente foram se estreitando, foram, também, diminuindo as fronteiras culturais que asseguravam a coesão do grupo. Ladeira (1992, p.178) registrou em 1988 a fala de Tatati, dentro da casa de reza (opy) da aldeia Boa Esperança, quando a líder religiosa mostrou sua insatisfação com a atração que os bens de consumo dos brancos vinham despertando, sobretudo, nos jovens da aldeia. Segundo a pesquisadora do Centro de Trabalho Indigenista, a xamã de grande ascendência entre os Mbyá do litoral, “encontrava-se triste e preocupada com vários acontecimentos que ocorriam em sua aldeia: separações de casais, pouca participação nas rezas noturnas, duas mortes súbitas inexplicáveis.” As transgressões impossibilitavam os indivíduos de acessarem seu lugar sagrado dentro dos rituais noturnos, esvaziando a casa de reza. Ciccarone (2001, p.82) sinala que elas “representam para os Mbya, as manifestações de pochy, a cólera, a raiz de todo mal, e a única defesa contra essa desordem vinha da medicina mística gerida pelo saber-poder da ação xamânica [...]”

Este quadro dramático passou a ser acentuado na medida em que se intensificaram as disputas fundiárias incrementadas pelo forte poderio político, econômico e midiático da empresa transnacional Aracruz Celulose. Desde o início das primeiras negociações entre os indígenas e a ARCEL a mais variada ordem de conflitos tem permeado as relações na região, culminando em confrontos diretos entre índios e trabalhadores da empresa em dezembro de 2006. As tensões vem sendo objeto de inúmeras divulgações na mídia desde a época da chegada dos Guarani na região. O vínculo sócio-econômico estabelecido entre a transnacional e a população do Espírito Santo fortalece a idéia de desenvolvimento regional sem sustentação ambiental, com a substituição das florestas nativas pela monocultura de eucalipto,

indo de encontro aos interesses dos povos indígenas e demais comunidades tradicionais10 que necessitam da terra e dos recursos naturais nela existentes para sua sobrevivência física e cultural.

Alguns títulos de reportagens retratam uma pequena parcela das tensões que se deram ao longo do ano de 2006, onde as influências da empresa estenderam-se às mais diversas camadas do contexto social capixaba:

“Aracruz apela: cartilhas e palestras em escolas para desqualificar índios” “Polícia Militar confirma emboscada para prender índios em área autodemarcada”; “Tentativa da Aracruz em estender seus domínios à Universidade Federal do Espírito Santo é abortada e denunciada pelos professores”; “Ação violenta em Aracruz, polícia federal prende, algema e espanca índios desarmados”; “Índios capixabas depõem contra a Aracruz Celulose em Viena”; “Campanha na Internet condena outdoors contra índios no norte”.(BERNADES, 2006).

A transnacional procurou estender seus domínios às diferentes esferas da vida social na região que vão desde a educação infantil, passando pela segurança, a saúde, até a Universidade Federal, na tentativa de manipular as pesquisas desenvolvidas nas áreas humanas, sociais e ambientais no estado. Buscando denegrir a imagem dos grupos indígenas publicamente, desqualificando sua cultura mediante a sociedade capixaba, a empresa ampliou o horizonte dos conflitos visando aumentar seu prestígio junto à opinião pública no intuito de assegurar a teoria da inexistência remota de povos indígenas na região.

Em setembro de 2006, foram expostos outdoors nas margens da estrada que atravessa as aldeias indígenas com frases que evidenciavam o preconceito explícito da empresa e de 58 sindicatos associados a ela em uma campanha marcada pela discriminação étnica e cultural.

Como parte das estratégias midiáticas largamente utilizadas pela empresa foi divulgada, também, uma imagem de um cacique Tupiniquim no seu site, sem que fosse concedida autorização formal para tal ato. A empresa procurou denegrir a imagem dos Tupiniquim publicamente referindo-se ao líder indígena como “mosaico étnico” por utilizar cocar e pinturas que, segundo os representantes da transnacional, não pertenciam aos Tupiniquim pré- coloniais. Este fato, além de demonstrar completo desconhecimento acerca da historicidade e dinamicidade dos povos indígenas que tiveram que reelaborar seu modo de vida em função dos séculos de opressão física e cultural a que foram submetidos, somou-se aos demais acontecimentos que tornaram-se agravantes no campo das tensões interculturais, pois ampliou os conflitos do âmbito da disputa fundiária ao dos direitos humanos fundamentais.

Não obstante este quadro pareça refletir uma tensão centrada em algumas formas de violência, sua dimensão alcança amplos horizontes, repercutindo no processo saúde-doença de forma direta e indireta. Muito embora os dados disponíveis apontem para elevados coeficientes de morbidade e mortalidade por problemas oriundos do processo de industrialização da região, outros aspectos devem ser observados na complexa dinâmica dos relacionamentos interculturais.

Se por um lado a saúde é condicionada por uma gama de fatores que proporcionam o desenvolvimento da vida em sociedade, a doença revela as dificuldades para a reprodução da mesma e seus aspectos destrutivos e desfavoráveis sob o ponto de vista social. Isto implica em entender a multiplicidade de fatores que determinam os processos mórbidos, entre os quais, aqueles que se encontram imiscuídos nas relações assimétricas de poder e nos interesses políticos e econômicos nacionais e internacionais.