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O crack no campo - considerações sobre o uso

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Academic year: 2021

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Curso de Graduação em Antropologia

LUCAS JUSTINIANO ROBERTO

CRACK NO CAMPO

CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO

Niterói 2018

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Curso de Graduação em Antropologia

LUCAS JUSTINIANO ROBERTO

CRACK NO CAMPO

CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel Licenciado em Especialidade.

Orientador: Prof. Dr. Antônio Carlos Rafael Barbosa

Co-orientador: Prof. Dr. João Resende Santos

Niterói 2018

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Curso de Graduação em Antropologia

LUCAS JUSTINIANO ROBERTO

CRACK NO CAMPO

CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO

BANCA EXAMINADORA

... Prof. Dr. Antônio Carlos Rafael Barbosa

Universidade Federal Fluminense ...

Prof.ª Dr.ª Ana Cláudia da Silva Universidade Federal Fluminense ...

Prof. Dr. Valdeci Ribeiro dos Santos Universidade Federal Fluminense

Niterói 2018

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Dedico esta monografia as pessoas que sempre estiveram comigo nesse período de estudos e as pessoas que contribuíram de forma direta pra que isso pudesse acontecer.

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AGRADECIMENTO

Eu gostaria de agradecer a M E A L Z O A I R Z E A L L E, minha mãe. Uma com devir mãe, supermãe e outra que me deu tudo até a dor de cabeça, através delas eu aprendi e aprendo todos os dias. Não poderia deixar de colocá-las na mesma linha na mesma palavra. Agradeço a Meu pai ele é foda. Minha tia Hilda que sempre está a meu lado. Ao Jhonny se não fosse sua boa vontade nem a matrícula teria feito. Obrigado.

Eu quero agradecer meu Filho Raziel por ser um cara que mudou minha vida, lindo, intenso, dizer que te amo é minimizar muito meus sentimentos por você filho; a mãe dele também de alguma forma me ensinou bastante coisa.

A senhora Maria do Céu, Xandi e João Henrique essas pessoas estão sempre comigo

Meu irmão. Ele é astrofísico. (GB) Antro.

Em especial agradeço ao Prof. (amigo) Antônio Carlos Rafael Barbosa quaisquer elogios que faça pra ele reduziria a um ser humano e esse cara transcende a nós meros mortais, palavras como essa estendo a Ana Cláudia, Daniel Bitter, Ana Lúcia, Débora Broaz, João Resende. Valdeci Ribeiro do Santos quero ser como você.

Aos amigos Estevão, Kepli (Luiz), Luan Pacheco, Ícaro Marinho e Torres, Ricardo Gaúcho, Rodrigo esse mano é parceiro, Augusto Fontes, Tarço, aos apóstolos: João, Thiago a Ruana* (linda), Para os manos Alexandres sabedoria até o último fio de cabelo. Certificada.

Agradeço ao povo brasileiro norte,centro, sul inteiro onde nasceu o baião… Ao amigo Rosinha que esteve presente falando as coisas erradas nas horas certas, obrigado por você ter passado por minha vida.

Agradecer ao Thiago na moral, vulgo Thiago de Castro esse mano me salvou sem querer quando eu mais precisei. Obrigado. Ao Saara. Mano Pedro SP

Agradeço o Zezinho evitou muitas caminhadas.

Av. Brasil, B2, Morro do Palácio, Cavalão, Grota, Estado, a Penha e sua gaiola. Dentre outros lugares.

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Princesa Fátima. Roberta ascoltami Ritorna ancor ti prego Con te ogni istante era felicità. Ao mano Vinícius esse cara me persegue, antes mesmo da UFF ele esteve próximo.

Aos amigos de MG: Tatu Cú de Frango, Godô, Iris. Betão. D. Divina. Idari pela breve visita. “Robihud,” netinho e Brexó pela moral.

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EPÍGRAFE

...Larguei minha família, a escola, você sabe Parei com a maconha, tô usando crack Tô usando crack No copo de guaravita eu fico suave Tô usando crack A maconha te engorda use crack que é mais light Tô usando crack Vou perder os meus amigo, se prostituir faz parte Tô usando crack MC Carol

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Este trabalho visa demostrar um renovado e intensificado interesse no consumo do crack em centros urbanos e nas lavouras de café, essa contribuição reside certamente em arejar o debate, abrindo-o para pontos de vista mais complexos e matizados, capazes de desafiar e complementar criticamente os discursos médicos, farmacológicos, policiais e religiosos que se apropriaram da legitimidade de discorrer sobre o tema.

Longe de promover uma nova doutrina ou panacéia teórica, produtora de novos reducionismos e simplificações, seu espírito é o de incorporar perspectivas que confrontem o conhecimento convencional e questionar verdades impostas por um senso comum midiático explorado por diversos setores da sociedade.

. Esse é um passo indispensável para a elaboração mais refinada dos próprios problemas teóricos e práticos que estão em jogo em terreno tão polêmico. O uso de “drogas” e mais especificamente o crack, como meio laboral.

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ABSTRACT

This paper aims to demonstrate a renewed and intensified interest in the use of crack in urban centers and coffee plantations. This contribution certainly lies in opening up the debate, opening it up to more complex and nuanced points of view, capable of critically challenging and complementing medical, pharmacological, police and religious discourses that have appropriated the legitimacy of discourse on the subject. This is an indispensable step towards the more refined elaboration of the very theoretical and practical problems at stake in such controversial terrain. The use of "drugs" and more specifically crack, as a working environment

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...13

2 ESTUDOS EMPÍRICOS...16 3 CORPO ABJETO...19

4 CRACK NO CAMPO...26

5 A SALIVA NÃO GRUDA, REDUZIR USO OU DANOS?...35

6 CONSIDERAÇÕES...38

7 ENTREVISTAS...39

8 CONCLUSÃO...42

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1. INTRODUÇÃO

Pensando em um trabalho de conclusão de curso, optei por pesquisar o uso de crack no meio social, público e privado, urbano e rural, em um primeiro momento nas ruas do grande Rio de Janeiro, e depois - buscando um contraste com esse local por não estar à vontade com a situação a que usuários eram tratados pelo Estado e o “Estado paralelo” estabelecido pela criminalidade fluminense - descrevo o uso nas propriedades produtoras de café na região de Carangola, Caparaó e Manhuaçu em Minas Gerais. Gostaria de contar o que apreendi durante o período da pesquisa. O consumo sistemático de um grande conjunto de substâncias capazes de alterar o comportamento, a consciência e o humor dos seres humanos é comprovadamente milenar, as ditas “drogas”

Em grego, tókson quer dizer: arco e flecha, e a forma adjetiva toksikons, assim toksikon pharmacon é veneno pra flecha. Curiosamente, o significado de pharmacon estendeu-se a toksikon; com o passar do tempo o termo envenenamento quer dizer intoxicação.

Depois ainda o que é tóxico passou a ser sinônimo de droga. De alguma forma transformamos em droga tudo aquilo de que fazemos mal uso, seja pela falta ou excesso. Nosso corpo quando estimulado de forma equivocada pode nos afetar, como se por uma substância psicoativa ausente em nosso organismo.

A droga está relacionada a sujeira. Na minha pesquisa no meio urbano as relações são difíceis pois pude perceber que a droga por si não exclui tanto quanto a sujeira corporal, expondo uma parte de nós, humanos, a outra condição. A fuga pela não humanidade é um processo doloroso, só com altas doses de dopamina1 para substituir as mazelas sociais que conduz a tal exposição.

1A dopamina é um neurotransmissor importante que participa de funções especificas. Oferece a sensação de bem estar, de prazer e felicidade .

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14 Outra forma de sujeira ou estar sujo é estar envolvido diretamente com uso ou comércio de drogas ilícitas. E da mesma forma quando se está no meio de usuários e se aproxima quem não é, ele é o “sujeira”, nesse caso a polícia é “sujo demais”.

Quando decidi escrever o trabalho de conclusão de curso já havia passado por um processo de desconstrução, havia uma visão errada que a droga só poderia existir para meios recreativos e em tratamentos médicos e da proibição e regulamentação.

Mas desde já tento demostrar que um padrão de vida social pode ser considerado droga, atualmente se fizer uma breve analogia com as fake news2, estas podem ser consideradas drogas virtuais, que de alguma forma pode perturbar o que pensamos e desejamos, confundindo nossos sentidos.

Atualmente, nas praças de cidades de médio e grande porte, e nas metrópoles podemos ver pessoas concentradas com luz direta nos olhos, sem perceber nada ao redor, cultivando a si mesmo e vivendo por muito tempo fora da razão.

2Usado para se referir a notícias fabricadas. O termo fake news originou-se nos meios tradicionais de comunicação, mas já se espalhou para mídia online. Este tipo de notícia, encontrada em meios tradicionais, mídias sociais ou sites de notícias falsas, não tem nenhuma base na realidade, mas é apresentado como sendo factualmente correta.

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Sobre os usuários do crack, fui percebendo através da pesquisa, que quando entrei em campo logo aparece uma espécie de “neoevolucionismo”, impondo como premissas nossas próprias noções de como cuidar do corpo e a própria noção corporal, construídas ao longo de um processo histórico e civilizador (Elias, 1994) no qual a própria modernidade foi caracterizada pela entrada do corpo na vida política e social (Foucault, 1988), e pela ideia de que o corpo pode ser construído, fabricado e de que as identidades podem ser alteradas e permutadas (Haraway, 2000; Butller, 2003). Ou seja, pelo avesso, tais noções eram constantemente reforçadas.

Nesse plano, estamos falando de substâncias tão diferentes como a cerveja, o crack, a cocaína, a jurema e o diazepam. “Psicoativo” é um dos termos cunhados para referir às substâncias que modificam o estado de consciência, humor ou sentimento de quem as usa – modificações essas que podem variar de um estímulo leve, como o provocado por uma xícara de café, até alterações mais intensas na percepção do tempo, do espaço ou do próprio corpo, como as que podem ser desencadeadas por alucinógenos vegetais, como a ayahuasca, ou “anfetaminas psicodélicas” sintéticas, como o MDMA, popularmente conhecido como ecstasy. Ao lado das significações atuais mais costumeiras de “medicamento” e de “psicoativo”, encontra-se nas línguas européias uma utilização mais antiga do termo para designar ingredientes empregados não só na medicina, mas também na tinturaria e na culinária, provenientes de terras estrangeiras distantes, como as especiarias do Oriente e, posteriormente, o açúcar, o chá, o café e o chocolate (Goody, 2001).

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2. ESTUDOS EMPÍRICOS

O texto de Marcel Mauss (2003a[1934]) sobre “as técnicas corporais” é considerado um marco nas reflexões teóricas sobre o corpo nas ciências sociais. Tal estudo abriu caminhos para autores como Mary Douglas (1978[1970]) e Pierre Clastres (2003[1973]) chamarem atenção para o problema da corporalidade equacionado às representações coletivas que envolvem o corpo e que fazem dele o resultado de uma “construção social”.

No entanto, esses textos têm sido revisados por autores contemporâneos (Csordas, 2001; Vargas, 2001; Frangella, 2004; Pontes, 2004; Silva, 2004) que os criticam por mostrar o corpo como superfície onde o mundo social se inscreve. Segundo eles, esta perspectiva resulta na renúncia de se levar em conta muitos processos que se desenvolvem com a materialidade dos corpos, mas que nem por isso são menos simbólicos.

Este é o caso do consumo de “drogas”. E é neste sentido também que Vargas (2001) considera que o consumo de “drogas” ilícitas a partir do ponto de vista dos usuários, põe em jogo processos de alteração material e simbólica da percepção e que envolve o agenciamento de modos singulares de encorporação e de subjetivação. Em outras palavras, isto equivale a dizer que o consumo de “drogas” oferece um campo privilegiado para problematizar a partilha entre a materialidade dos corpos e imaterialidade dos espíritos tão dominante na teoria social. Empiricamente, optei por realizar o estudo tendo como principal marcador o recorte de “classe social, estrato ou grupo de status”. Tal opção se deu especialmente após a leitura de “Nobres e Anjos”, livro de Gilberto Velho.

Já entre os autores que optaram pelo estudo empírico do tráfico de drogas, também há variações de abordagem. Alba Zaluar (2000), com seu pioneiro “A máquina e a revolta”, apreende o tema em meio a um quadro mais amplo de aumento da violência urbana e, por conseguinte, de exposição midiática que visa criminalizar a pobreza. Em meio a essa proliferação de discursos, a antropóloga mostra que, quando vistas de bem perto, as categorias bandido, trabalhador, malandro e mesmo policiais, longe de se mostrarem estanques ou indicarem tipos sociais e morais específicos – como querem os noticiários –, são, na verdade,

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cotidianamente formuladas a partir de oposições e misturas de representações, valores e condições objetivas que constituem toda uma vida social local. Também o trabalho de Daniel Hirata (2010) inova ao abordar o tráfico de drogas à luz de sua correlação com outros tantos ilegalismos populares que, desde há muito, compõem o rol de ação das populações mais pobres para encontrar meios de “sobreviver na adversidade”.

O estudo de Antônio Rafael Barbosa (1998), por sua vez, considera que as temáticas da violência e das criminalidades urbanas não recobrem de todo o fenômeno do tráfico de drogas. Com isso, o autor propõe que uma etnografia do tráfico de drogas precisa, antes de tudo, relativizar o que é o crime e a violência (em vez de tomá-los como dados) e concentrar-se na busca de perspectivas metodológicas e descritivas que se orientem fundamentalmente pela escuta do que os atores sociais têm a dizer. Também com relação ao estudo do tráfico não se pode naturalizar importantes diferenças e desigualdades sociais, mesmo que se admita sua difusão na cidade. (Carolina Grillo 2008a, 2008b), pesquisando jovens cariocas de classe média que fazem parte das redes de tráfico de drogas “da pista” (em contraposição aos “do morro”), revela que “o repúdio ao emprego da violência” é, nas falas de seus entrevistados, um dos principais elementos diacríticos do tipo de atividade no qual se engajam – o que, segundo ela, só é possível mediante a condução de negociações marcadas sob a égide da “amizade”, pela existência de redes relacionais “pulverizadas”, possibilitadas porque ocorrem sem uma demarcação territorial. As formas de autorreconhecimento também são significativas e revelam distinções hierárquicas muito relevantes.

Desse modo, diante de um mesmo marco legal, a desigualdade presente na sociedade brasileira é fator constitutivo e de suma relevância para apreender distintas possibilidades de concepção das substâncias, do seu consumo, do seu tráfico, bem como do rótulo impetrado a seus participantes (inclusive antes e após qualquer tipificação penal). Mais que isso, ela implica e resulta em modos variados de aproximação com os diversos níveis de violência aí envolvidos. Diante dessa brevíssima revisão bibliográfica (parcial, como todas as revisões), expresso o desafio que me proponho enfrentar: falar do consumo abusivo de crack a partir do já aprendido, isto é, sem, de um lado, recair em diagnósticos depreciativos ou

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18 generalizantes, considerando a pluralidade de experiências; e de outro lado, tendo em conta os efeitos reais dos privilégios sociais. Em outras palavras: uma vez inserido em tal campo de discussão e visando contribuir com ele. Ainda assim, reconheço a especificidade da minha investigação.

Entre muitas possibilidades de uso e de experiências com drogas, certamente eu estou olhando para a mais extrema delas, no duplo sentido de uso intenso da substância e de um tipo de experiência realizada apenas por uma pequena parcela dentre todos os usuários de drogas, o que me impede de generalizar o que se passa aí e certamente me deixa ciente de que é a partir deste lugar que falarei do assunto. Com todos os riscos políticos e analíticos envolvidos nesta opção, acredito que ao menos ela tem a vantagem de trazer tais temáticas para o debate antropológico.

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3. CORPO ABJETO

Seguindo a perspectiva do corpo abjeto (Taniele Rui 2012) fui direto a avenida Brasil na altura da passarela número dez, no Parque União, onde os usuários de crack ficam expostos entre os carros e as obras do BRT Brasil. Fui recebido pelos usuários de crack que ali se encontravam estabelecidos com pedidos de cigarros e algo pra se alimentarem . Durante a pesquisa de campo isso era de praxe. Ressalto que a minha introdução no campo foi direta, sem a participação de nenhum grupo de redução de danos (Taniele Rui 2012), igreja ou instituição que participam de elaboração de políticas que atendem essa população de rua.

Através da inserção direta no campo, no Rio de Janeiro, pude receber e perceber como o espaço geográfico vai se adaptando aos usuários e as políticas são criadas entre os usuários pertencentes àquele lugar.

Além da Avenida Brasil, fui às obras do programa de aceleração do crescimento PAC em Manguinhos e Jacarezinho e por último, na região do Grande Rio, às proximidades da favela Gogo da Ema em Belford Roxo, onde os usuários estavam se aglomerando num fluxo maior que nos locais anteriores.

Na região metropolitana do Grande Rio, os usuários de crack se aglomeram perto de favelas que estão sob a tutela moral do Comando Vermelho CV e Amigos dos Amigos ADA. Apesar de serem distribuidoras de crack em tal região, essas facções possuem políticas de vendas distintas, elaborada por ordens transmitidas através de redes estabelecidas rizomaticamente em presídios cariocas (Barbosa, 2012).

Nessa pesquisa quero demostrar a importância do meio social mais próximo, familiar ou não, para fazer a pessoa se transformar em um usuário de crack, ou em um “cracudo”, “nóia” ou quaisquer modos pejorativos que a população fluminense, ou não, trata os usuários de crack que fazem um uso mais radical ou que estão em situação de morarem em locais insalubres nas ruas de metrópoles.

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20 Se da perspectiva das interações concretas trata-se de uma categoria bastante plástica; é instigante o fato de que tal plasticidade some quando se fala publicamente do uso de crack: imediatamente é essa figura que emerge e justifica todo o aparato repressivo, assistencial, religioso, midiático, sanitário e moral. Portanto, é o corpo do nóia que radicaliza a alteridade, na medida em que materializa um tipo social fundado a partir da exclusão (Taniele Rui 2012).

Diferente dos locais ocupados por pessoas em situação de abjeção social, como a cracolândia em São Paulo, nas visitas que fiz aos locais de concentração de usuários no Grande Rio, percebi que são exclusivamente usuários de crack.

Em São Paulo basicamente existe uma só facção que distribui a pedra de crack, o Primeiro Comando da Capital, PCC, facção que iniciou a venda de crack em grande escala no Brasil. Os funcionários dessa facção se misturam entre os usuários de crack, tratados pela categoria “noia”, e pessoas em situação de estabelecidos nas ruas, fazendo desses corpos escudos contra a ação direta das policias.

A defesa do território não é feita por armas bélicas, mas por corpos que são usados como armas contra a ação do Estado que atua em desfavor da mercância de drogas naquele local. Apesar de que são as micropolíticas oriunda dos presídios que prevalecem nesse contexto social (Foucault 1988).

O PCC se estende através dos “noias”, mesmo que essa categoria seja desumanizada socialmente, mas membros dessa facção não podem pertencer a essa categoria. Nesse ambiente de pesquisa urbana percebi que o uso da pedra de crack é mais coletivo que individual, apesar das pessoas não se reunirem e marcarem na cracolândia para fumar uma pedra de crack, normalmente..

Nessas observações interagi com usuários em diferentes fases de contato com o crack, e com outros usuários. As categorias Noia, Cracudos são destinadas sempre ao outro como forma de adjetivar pejorativamente a pessoa que se encontra

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nas mesmas condições sociais daquele espaço geográfico que relato, porém cracolândia não é um substantivo concreto.

Em meio urbano seja Rio de Janeiro ou São Paulo os usuários de crack com um contato mais radical com a pedra, estão expostos a generalizações sociais, que acabam influenciando o modo de vida desse indivíduo. Na ótica do Estado, eles se transformam em um grupo de corpos em coma social, improdutivos e incapazes de associar o crack a sua vida cotidiana, imposta por uma sociedade hierarquizada e excludente (Louis Dumont, 1996).

Nas favelas da região metropolitana do Rio de Janeiro, a defesa do espaço geográfico é feita por soldados armados das facções, que determinam onde os usuários podem consumir o crack e até mesmo circular sem a posse do mesmo.

Socialmente o cracudo só incomoda quando circula por ambientes onde ele não faz parte do contexto. Ou que essa categoria não exista. Em todas as favelas do Comando Vermelho na grande Rio de Janeiro há a mercância de crack, mas a categoria cracudo só é enunciada nas comunidades periféricas longe da zona sul do Rio de Janeiro. Nessa parte da cidade há sim usuários de crack, que por mais que tenham contato radical com a droga assumem outra postura social na busca por adquiri-la.

Com postura parecida, os Amigos dos Amigos, ADA, também impõe limites morais aos cracudos e usuários que residem e circulam por espaços sob sua jurisdição.

Quando esses corpos se opõem às normas morais, eles podem sofrer consequências capitais, perda da casa, com expulsão do convivo familiar, e de tudo aquilo o que constitui socialmente, a perda de suas características e de seu habitus (Bourdieu 1979).

Dentro da estigmatização do corpo abjeto e pensando as políticas que esses corpos produzem entre si, cheguei à Avenida Brasil, na altura do Parque União,

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22 conhecido popularmente como P.U. Era terça-feira por volta de dez da manhã, então me dirigi até o canteiro central, onde estavam um grupo de usuários. Sentei e abri um maço de cigarros, e antes mesmo de acender um, um usuário me pediu um cigarro, então se aproximou e começamos a dialogar, isso por alguns minutos. Então, outro que estava perto, também pediu cigarro.

Os cigarros são usados para a combustão da pedra de crack, ou melhor as cinzas dele. Que são colocadas sobre um copo de suco, coberto por uma camada de alumínio. Então com um palito de fósforo ou algo similar fazem micro furos, depositam as cinzas e pedra sobre elas, e a queima com isqueiro, a pedra vira um liquido que gruda nas cinzas e em pouco tempo transforma as reações das pessoas.

Como já ressaltei, a minha entrada no campo foi de modo direto sem intervenção de grupo de auto ajuda, igreja ou instituição filantrópica ou estatal. Isso me possibilitou ter contato direto e acesso irrestrito às informações dos atores da cena crack de rua, os usuários de contato radical com a pedra conhecidos como cracudos. Esta palavra guarda o sentido da junção das palavras crack e imundo. Designam um grupo de pessoas que fazem trabalhos informais como catar papelão, latinhas de alumínio dentre outros, e também pequenos delitos patrimoniais. Para poderem comprar a pedra, percebo que podem fazer quase tudo.

Cracudo é só mais uma categoria, como a destinada a usuários de maconha a tempos atrás, vista como droga de pobre. O maconheiro por algum tempo foi o cracudo da sociedade.

No Rio de Janeiro o comando vermelho é o maior distribuidor de crack, e com toda certeza se só os cracudos fossem o mercado final da pedra a mercância não existiria, estar em situação de rua não leva o uso da pedra, mas a pedra leva a constância nas ruas. Se estabelecer próximo de onde há mercância de pedra com mais facilidade e tentar sobreviver por ali fazem dessa população alvo de abordagens de todos os tipos.

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Tentarei descrever algumas interações que pude presenciar no trabalho de campo, dos usuários com as agências estatais (polícia e assistência social) ,as igrejas e os agentes que fazem a mercância da pedra. A venda de crack é feita junto com qualquer outra substância como maconha, cocaína dentre outras. Mas o tratamento destinado aos usuários de maconha e cocaína é distinto, na compra de maconha os usuários podem tocar, sentir o cheiro escolher o tamanho. São tratados como clientes.

Já quando o usuário é de crack, ele tem que manter uma certa distância da mesa onde são comercializadas as drogas. Dar o dinheiro e o responsável pela distribuição entrega a pedra. Ou muitas vezes jogam no chão quando a pessoa se encontra mais suja ou desagradem simplesmente por estarem ali.

As pessoas que consumem crack naquela comunidade não o podem fazer nas ruas, como já pude presenciar as pessoas fumando maconha. Vale ressaltar que alguns deles geralmente não compram a pedra na “loja” mais próxima, por temerem serem expostos em seu meio social como usuários de crack.

Já para os cracudos, a circulação é totalmente controlada dentro da comunidade. Somente podem ir até a “loja” mais próxima, ir e voltar rapidamente; dentro das ruas internas da comunidade a circulação é proibida com pena de serem espancados e até mesmo mortos com tal descumprimento.

O crack não é a principal causa de morte entre usuários, a violência imposta a eles, sim, faz vítimas como em toda sociedade, mas muito mais essa população. E a exposição social deixa características impostas por julgamentos de todos que passam pela avenida Brasil.

Em paralelo a uma das ruas de acesso á favela da Nova Holanda, no Complexo da Maré, todos os sábados existe a oferta de serviço por parte de uma instituição religiosa que atendem a essa população: distribuindo sopa, cortes de cabelo e convidando algumas pessoas a ingressarem na igreja, oferecendo abrigo e tratamento contra a dependência do crack. Isso com a supervisão das pessoas que

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24 controlam a área. Não direi o nome dessa Igreja mas afirmo que ela está em todos os lugares possíveis, como se fosse “universal”.

Muitos que ali estavam oferecendo uma força aos ditos cracudos relatam que eram como eles, que foi a força de Deus e da igreja que os permitiu se livrarem do espírito do mal do vício da pedra. A princípio, quando o usuário aceita, ele é encaminho para uma instituição, nos moldes de uma clínica e passam por um processo de higienização. Mais tarde, se ele resiste ao desejo de consumir a pedra, ele é encaminhado para casa, convertido. E o pastor da igreja mais próxima faz a integração dessa pessoa às atividades da igreja, ocupando o seu tempo quase que integralmente.

A pedra física deixa de existir e agir, então entra em cena a pedra psicossocial; o uso agora fica através das palavras como se elas os mantivessem afastados do uso. A vigilância social é a maior arma contra as recaídas, a exposição direta na igreja faz com que seguidores possam vigiar seus atos e condutas morais e éticas.

Os que recaem ao uso e são descobertos passam por uma análise de conduta e acabam perdendo suas funções dentro da igreja. Um dos fatores que podem influenciar a aglomeração de usuários nas ruas é a fuga dessa vigilância social.

Devido as minhas características corporais, pude estar entre os usuários como se fosse um deles, em um dos dias da pesquisa foi abordado pelo serviço social e quase fui internado compulsoriamente... Quero deixar claro que ainda não fiz uso de crack, o que se tivesse feito não me desabonaria em nada em minha vida. Então, percebi que além do cinza que é o presente daquela paisagem o preto é o que prevalece, o racismo está instituído em todas as camadas da sociedade.

Depois de explicar que cursava antropologia na Universidade Federal Fluminense, ainda não acreditaram segurando no meu braço, só depois de me

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exaltar, tirar minha carteira do bolso, e mostrar a carteira da universidade fui liberado.

Isso acontece com base na lei 2967/2017 que institui a internação compulsória de dependentes químicos no Estado do Rio de Janeiro. Como justificativa, o consumo de crack. São levados às instituições e albergues em cidades da região metropolitana. Essas políticas têm como objetivo principal a limpeza social, não o tratamento contra a dependência das pessoas que se encontram em situação de rua. Conforme se deixa ver em seu artigo terceiro:

Art. 3º- A Política instituída por esta Lei tem os seguintes objetivos:

I- Receber a demanda acerca do dependente químico que, por conta do vício, aparenta perda da capacidade do juízo de realidade e autonomia da vontade;

II- Realizar de forma ágil estudo técnico do caso concreto e emitir laudo

conclusivo, fundamentado de forma transversal e interdisciplinar, com o objetivo de auxiliar a fundamentação judicial de internação compulsória; III- Promover a qualificação, a capacitação e o acompanhamento de equipe técnica interdisciplinar, responsável pelo atendimento ao dependente químico;

IV- Articular os entes públicos para viabilizar a internação involuntária e a compulsória de dependentes químicos que deixaram de dispor de autonomia da vontade.

Uma outra intervenção do Estado que é constante é a da polícia militar causadora de atos de humilhação contra os usuários de crack. Xingamentos e abordagens ríspidas e truculentas marcam sua ação. Sem nenhum preparo. Isso acontece porque na maioria das vezes quando essa abordagem acontece é porque estão à procura de pessoas que cometeram algum delito como se os usuários fossem os culpados por estarem ali. Uma violação de direitos partindo dos que deveriam preservá-los em todos os aspectos.

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4. CRACK NO CAMPO

Na busca por um comportamento distinto ao encontrado no meio urbano, que pude visitar durante a pesquisa, onde os corpos não são parcimoniosos e estão postos na categoria de “abjeto”, encontrei pessoas que encontram outras formas de usar a pedra de crack no interior de Minas Gerais, na mesorregião de Carangola, lugar onde o comércio de crack se estabeleceu a pouco tempo.

Assim, pude ter acesso a informações que contribuíram de forma importante, porque possibilitou um contraste entre aspectos de todos os atores e das relações sociais dos envolvidos radicalmente com o crack, seja no consumo ou na mercancia. Assim como sobre o Estado, na figura da polícia militar e também o posicionamento da sociedade elaborando micropolíticas individuais para lidar com os usuários de crack, especialmente depois que se torna público o seu contato com a pedra - dos bastidores ao público (Goffman 2012).

Em uma cidade economicamente agrária basicamente usufruindo se da monocultura do café, as relações sociais são mais coesas e as pessoas assumem papéis marcados dentro da estrutura social. Dentro desse contexto das lavouras de café, dessa região, que demonstrarei como a pedra se integra a economia de algumas propriedades produtoras de café.

Não existe ninguém no mundo melhor que os selvagens, os camponeses e os provincianos para estudar profundamente e em todos os sentidos os seus próprios afazeres; assim, quando passam do Pensamento ao Fato, podeis encontrar as coisas completas.

Honoré de Balzac Le Cabinet des antiques Bibl. de la Plêiade vol.

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Deste modo, através dessa pesquisa pude encontrar pessoas que não pertencem a nenhuma categoria imposta socialmente, ou que pertence a várias categorias. Como algo que vai além do indivíduo, e sua subjetividade.

Nesse contexto não posso falar de crack sem mencionar o desejo que ele provoca nos usuários e a transformação que esse indivíduo provoca em seu meio social, assim como sobre nossos processos de subjetivação através da noção de linhas na esquizoanálise.

Segundo as concepções de Deleuze e Guattari, somos formados por três tipos de linhas segmentares, duras, maleáveis e de fuga. As linhas duras nos compõem através de dualidades sociais, que nos fatiam, no sentido forte do termo. São as grandes divisões na sociedade: rico ou pobre, trabalhador ou vagabundo, normal ou patológico, homem ou mulher, culto ou inculto, branco ou negro, etc. As linhas maleáveis possibilitam variações, ocasionando desestratificações e desterritorializações relativas, e não marcadas divisões

E as linhas de fuga representam desterritorializações absolutas, no sentido em que rompem totalmente com os limites das estratificações estabelecidas. Para o entendimento desse processo é importante perceber o corpo e o desejo.

Nesse caso, exponho a abstinência, a fissura como desejo. Apesar do substantivo ser “crack” (som de quebra), as reações dessa falta ou excesso são demostradas de formas distintas dea acordo com o meio de uso e perfil dos usuários. A “fissura” é frequentemente referida como uma necessidade imprescindível para o corpo, indispensável à vida e descrita como uma vontade “pior que a fome”.

A abstinência causa grande sofrimento físico e psíquico; o indivíduo é tomado por grande ansiedade e pensamentos obsessivo sobre as maneiras de obter a droga, e de alguma forma obter mais produtividade no caso das lavouras.

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28 Para demostrar como isso acontece vou expor como o crack é usado como meio de aumentar a produção e contrastar a automação agrária em paralelo à substituição de analgésicos e anti-inflamatórios, por ultrapassarem os limites do corpo.

Nos territórios em que pesquisei, de fazendeiros e trabalhadores rurais, o consumo de crack só perde para o do álcool.

A pedra entra na equação como um fenômeno para fazer com que eles pertençam a um grupo, mesmo que seja o pior diante de um cenário estranho, o agronegócio. Ela tem forte influência nesse movimento em que as pessoas se deslocam em busca de trabalho e renda por um período temporário, restritos aos polos de produção agrária, mas depois retornam à localidade de origem e não fazem mais o uso do crack. Todavia, há os que não conseguem abandonar o hábito adquirido no lavor. Esse tipo de migração do vício acaba, portanto, sendo uma especificidade do setor.

Assim, existe o corpo viciado que já não serve mais para o negócio, já que alguns hábitos adquiridos por esses corpos não condizem mais com o meio rural, que prima por algumas regras sociais que excluem corpos em estado de abjeção. Neste caso, tais sujeitos se deslocam para centros públicos de uso de pedra de crack, ou, por vezes, passam a frequentar casas de consumo. Casas e lares onde o dono é usuário e alugam espaços para usuários consumirem a pedra.

Considere-se ainda que a automação agrária, imposta pela industrialização do campo com objetivo de implementar novas tecnologias aos meios de produção, expõe o ser humano a níveis de exaustão e trabalho analogicamente aos de máquinas.

Vejamos o quadro de forma detalhada. O dia de trabalho no campo começa às seis horas da manhã e termina com o pôr do sol, com poucos momentos de pausa, até mesmo para se alimentar. O dia começa com a reunião dos trabalhadores na fazenda. Alguns trabalhadores ficam alojados na propriedade, são

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oriundos de cidades do interior do país e também imigrantes, e outros são transportados por ônibus e caminhões, esses são moradores de cidades próximas às lavouras. Alguns desses trabalhadores também fazem o uso de motocicletas para chegarem, e é o modo como a pedra de crack chega até os meios de colheita. No período da “derriça” há uma grande migração de pessoas que comercializam “drogas” em busca de usuários nas lavouras, a venda fica condicionada ao trabalho do “traficante”, por que se ele não contribui com a “derriça” de alguma forma ele não fará a venda nessa lavoura.

Para demostrar como o comércio de crack se aderiu ao meio de produção nas lavouras fui observar de forma direta um grupo de trabalhadores que consome crack e uma pessoa que comercializa a pedra de crack no meio da lavoura, exclusivamente nesse local. Não posso afirmar se isso é de conhecimento dos administradores da propriedade, o fato é que o consumo nas lavouras aderiu econômica e socialmente à produtividade e ao meio rural.

A colheita de café acontece no período entre o outono e inverno, é feita com as mãos e com máquinas. Os trabalhadores estendem um pano sob a árvore de café e retiram os grãos de café (Derriça) com auxílio de meias e luvas nas mãos, então retiram o café do pano estendido derramando os grãos num balaio (60 litros) geralmente feio de taquara, um tipo de bambu verde. O balaio é a medida que se aplica ao preço da colheita. Ao iniciar-se a colheita do café, todos os cuidados devem ser tomados, a fim de preservar a qualidade dos frutos. Uma forma de colheita largamente utilizada no Brasil é a derriça total no pano.

Devem-se evitar danos excessivos aos ramos e às folhas, não só para preservar a produção seguinte, como também para evitar ferimentos que constituirão uma porta de entrada para agentes patogênicos (fungos e bactérias).

Outra forma de se colher o café manualmente é a colheita seletiva que é feita no pano somente dos frutos cereja. Os frutos verdes serão colhidos mais adiante quando estiverem maduros. Nesse caso, poderão ser necessárias duas a três colheitas por planta ou talhão devido à não uniformidade do processo de maturação do café. Esta é influenciada por diversos fatores como clima, altitude, número de

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30 floradas, adensamento da lavoura, entre outros. Por ser uma operação que necessita de maior mão de obra, é mais empregada por alguns cafeicultores com o objetivo de se obter um café superior, uma vez que cereja é a matéria prima adequada.

A colheita acontece de forma gradual, a cada balaio colhido se paga em média cinquenta Reais, a contabilidade é feita por um trabalhador incumbido de anotar e contabilizar quantos balaios de café foram colhidos durante o dia.

A comercialização da pedra de crack nas lavouras acontece da seguinte forma: o comerciante da pedra chega na lavoura um tempo antes do início da derriça e esconde as pedras de crack e aguarda os fregueses. As lavouras na zona da mata mineira se localizam em montanhas, e a distância entre o vendedor e quem quer comprar é longa, e a comunicação é feita através de palavras ou sons, que fazem as partes se encontrarem na lavoura.

Tal assunto nos remete ao texto de Franz Boas, “Sobre sons alternantes”, onde o autor parte de uma patologia auditiva para provar que a percepção também é determinada pela cultura. Aprendemos a produzir e captar sons a partir de um longo uso da língua.

A percepção é gerada a partir da semelhança com sons que já se ouviu anteriormente. O autor define então seu conceito de limiar diferencial, que é o limite que distingue uma percepção de outra, o que não é um limite preciso. Por isso, duas sensações sonoras se assemelham mais quando há um grande intervalo de tempo entre elas, e se a atenção for pouca. Sensação “corresponde a uma certa série de estímulos ligeiramente diferentes”. Por isso a prática tem uma influência tão grande, para definir os limites entre tais estímulos. E as novas sensações são sentidas a partir das já existentes – são classificadas conforme esta semelhança, ainda que sejam diferentes.

Em acordo no ponto de encontro traçado pelo som, as pedras são comercializadas pelo preço do balaio colhido ou a metade dele se for pagar em dinheiro. O balaio de café colhido custa cinquenta reais, e a pedra pode ser paga pelo balaio de café.

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Dessa forma uma pedra de crack pode ser trocada por um balaio de café colhido, o dinheiro fica em segundo plano, já que os usuários tendem a preferir uma pedra maior e só precisar usar sua mão de obra para consegui-la. O trabalhador usuário ao terminar de colher e encher o balaio chama o responsável e mostra o que colheu e pede para anotar aquele balaio colhido na conta da pessoa que o havia vendido a pedra de crack. Esse pagamento é feito por dia trabalhado, no fim de semana, ou se o trabalhador preferir no fim do dia trabalhado. A pedra de crack diminui o valor da mão de obra do trabalhador pela metade, haja vista que o valor real financeiro dela é a metade do balaio de café derriçado. Dessa forma, de um ponto de vista cruel, todos ganham e só um perde, o trabalhador usuário.

Em um caso isolado dos que eu tive conhecimento na pesquisa, numa propriedade de porte menor, depois que o dono descobriu que a comercialização da pedra de crack era feita em sua lavoura, ele identificou a pessoa que estava fazendo a comercialização, e não o proibiu, pedindo que não fizesse a comercialização ou ameaçando de chamar a polícia. Apenas disse que: “na hora do pagamento subtrairia dez reais de cada pedra comercializada em sua propriedade” - no momento da contabilidade em que são apresentados dados sobre a derriça e da qualidade dos grãos. Sendo que para o comerciante de pedras existem duas anotações, as que ele fez o escambo de trabalho por pedra, e outra do trabalho de derriça do mesmo.

O trabalhador que serve como contador de café tem uma atuação discreta no controle da venda de crack, apesar de não coibir, também não aceita abusos. O consumo é permitido perante a prática do lavor. Quem não trabalha não pode consumir a pedra dentro da lavoura. E até mesmo vendê-la, como disse acima

O consumo da pedra de crack nas lavouras está diretamente ligado a automação industrial agrária. Transformar a agricultura em agroindústria penaliza diretamente o trabalhador rural, já que sua subsistência está diretamente ligada ao trabalho no campo. E com o passar do tempo vê suas forças se esvaindo diante de políticas que penalizam a classe, com a introdução das máquinas que pressionam os trabalhadores a manterem altas taxas de produtividade. E além disso, manter-se de alguma forma produzindo, evita que outros rótulos se instalem. Num lugar onde grande parte das pessoas se conhecem, ser tratado como nóia, cracudo ou algo que

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32 pejora o usuário de crack pode influenciar diretamente o convívio social, dificultando a forma como vai se socializar. Tal comportamento implica até mesmo na compra do crack ou qualquer tipo de “droga”.

Volto a insistir nesse ponto. Por se tratar de um espaço geográfico reduzido, a comercialização fora das lavouras de café é feita de forma discreta, e na maioria das vezes só no período noturno e, às vezes, dependendo do comerciante, até as vinte e duas horas.

A lavoura tem esse aspecto social peculiar, o aumento da produção é a prioridade entre os fazendeiros e trabalhadores, para atingirem metas e garantir qualidade ao café, não existem limites morais e éticos. Mas mesmo com essa peculiaridade, não posso afirmar que o comércio de “drogas” na propriedade é feito de forma delibera pelo proprietário, como também não posso afirmar que o comércio acontece sem a anuência do mesmo. Em média, numa propriedade de porte médio, pode haver quatrocentos mil pés de café, com trezentas pessoas trabalhando na derriça. Em um mesmo lugar pode haver milhares de pés de café e trabalhadores convivendo e estabelecendo regras de convívio entre eles. Há uma divisão entre os que usam o alojamento da propriedade e os que vão dormir em casa. Entre os moradores da região e os que vêm de fora do município e do estado e às vezes até de fora do Brasil, no caso, imigrantes de países como Haiti e Venezuela, que se estabeleceram em grandes metrópoles e acabaram migrando para regiões produtoras de café e açúcar no interior de Minas Gerais e São Paulo.

Pessoas sempre utilizaram “drogas” pelos motivos mais diversos, nas circunstâncias mais variadas, e não há razões para pensarmos que de repente viveremos em um mundo sem drogas, principalmente em tempos de abusos e cortes dos direitos socais dos cidadãos, expondo-os às mazelas impostas por um Estado que ignora fatores humanísticos inerentes às políticas de ações afirmativas no campo e nos perímetros urbanos de pequenas e grandes cidades. Cada vez mais o “negócio” é supervalorizado, seja ele lícito ou não, enquanto a situação de trabalho e do trabalhador ficam em segundo plano de desenvolvimento, sendo agregada de forma direta a outros meios de produção, que de alguma forma intervêm na sociedade, seja no campo ou no meio urbano.

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É importante, compreender a interpretação que os corpos dão à experiência com as “drogas”, e suas ressignificações de seu estado, da motivação que os impele a um consumo repetido de determinada substância, dos sentidos e razões pelas quais a consideram importante ou indispensável para satisfação de determinadas metas e necessidades.

Cito um exemplo que virou notícia na mídia nacional. No final do ano de 2009, o jogador Jobson estava jogando o fino da bola. Seu time, o Botafogo Futebol e Regatas da cidade do Rio de Janeiro, estava passando por um momento delicado no campeonato brasileiro daquele ano e precisava de um jogador que se destacasse e retirasse o time da situação que se encontrava. Fazendo gols e chamando o jogo pra si. E Jobson assumiu esse papel.

Ao fim do campeonato, Jobson havia obtido êxito na missão de retirar o Botafogo da situação em que se encontrava, preste a ser realocado na segunda divisão do futebol, mas foi pego em dois jogos no exame antidoping. A vinculação do uso de substâncias para melhorar a performance é uma prática constante no esporte. No caso do futebol, quando falamos de doping relembramos a copa do mundo de futebol em que o Brasil foi campeão nos Estados Unidos e nessa mesma competição o craque argentino Maradona foi pego no exame por uso de cocaína e foi expulso daquela copa. Uma das imagens marcantes daquela copa foi o agora “crack” comemorando um gol no jogo em que foi pego no exame antidoping, com olhos e boca grande como o lobo mal. Aquele que foi um gênio da bola, um craque.

No início do ano seguinte Jobson foi julgado pelo Tribunal de Justiça Desportiva e surpreendeu a todos quando assumiu que não havia usado cocaína e sim crack. Jobson foi flagrado duas vezes no exame antidoping, após as partidas do Botafogo contra o Coritiba e Palmeiras, pelo Campeonato Brasileiro de 2009. Foi punido preventivamente após a competição nacional. A defesa de Jobson foi calcada no aspecto social do atleta, que poderia até ser banido do esporte por ter sido flagrado em dois testes, e os auditores levaram isso em consideração.

O atacante deu apenas um curto depoimento, em que confessou ser usuário de crack desde 2008. “Usei crack, mas não cocaína. Uso desde 2008, fiz até um exame antidoping em 2008 pelo Brasiliense e ele não apontou nada. Por isso, nem

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34 sabia que era doping”, afirmou Jobson3, que disse não saber se era ou não viciado e que nunca comunicou à diretoria do clube de que era usuário.

O crack é capaz de aderir socialmente e correr lado a lado com a vida e se torna um problema direto quando o uso é revelado por alguma circunstância e não é aceito. E a pessoa fica no meio da disputa entre o crack e os valores imposto pelo meio social direto.

3 https://www.terra.com.br/esportes/futebol/estaduais/jobson-admite-uso-de-crack-e-e-suspenso-por-dois-anos,e4385f5cf874d310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html

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5. A SALIVA NÃO GRUDA, REDUZIR O USO OU DANOS?

Reduzir danos é controlar efeitos de um problema sem eliminar sua causa. Aplica-se a diversos eventos, de um desastre natural a crises empresariais, passando por questões de saúde pública. Foi neste último aspecto que o termo começou a ser usado. Pensando numa qualidade de vida melhor para as pessoas com HIV positivo.

Em outra perspectiva na área da saúde são as estratégias para reduzir malefícios relacionados ao uso de “drogas” lícitas ou ilícitas que provocam dependência. Nesse, caso as primeiras experiências foram feitas na Inglaterra no início do século passado, em um período próximo a Grande Guerra.

Soldados tratados com morfina ficaram dependentes de opioides. O programa começou com a alegação que os soldados desenvolveram o vício na luta pelo seu país, o argumento foi de que o “Estado tinha obrigação de fornecer a substância para minimizar os ricos da retirada brusca. Apesar de apelar para o patriotismo, heróis de guerra, a estratégia não foi aceita por questões culturais. Sem respaldo esse programa ficou por um período de 50 anos em um plano paralelo”. (Unifesp Dartiu Xavier)

O conceito começou a ter respaldo quando a “Junkiebond”, uma associação holandesa chamou atenção na década de oitenta para o alto número de contaminação de hepatite pelo compartilhamento de seringas contaminadas. Os danos não ficariam restritos aos usuários de drogas injetáveis, afetariam também a sociedade como um todo.

Na mesma década houve um seminário em São Paulo, na cidade de Santos, e um dos desdobramentos desse seminário foi justamente a troca de seringas para conter a disseminação do HIV. Foi lamentável que apenas na década seguinte, já nos anos noventa, esse tipo de programa realmente começasse a ser tratado com o devido respeito aqui no Brasil.

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36 Em se tratando de redução de danos tive contato com um trabalhador rural, usuário que tentou abandonar o crack sem auxílio de clínicas, terceiros, instituições estatais ou igrejas.

No primeiro dia, ele saiu e foi trabalhar, e pegou tão pesado que ao chegar em casa acabou tomando banho, jantando e dormindo.

Ao acordar ele diz que teve uma vontade muito grande de fumar a pedra, porém o ônibus que o levava junto com outros trabalhadores havia chegado no ponto marcado de embarque. Ao chegar do trabalho não se conteve e saiu em busca da pedra, mas não encontrou e acabou comprando maconha. Ao chegar em casa fissurado foi fazer o cigarro com a erva e começou a fumar quando o cigarro se abriu e caiu toda a maconha do cigarro. Mas como não consumia “droga alguma há mais de vinte quatro horas, logo o efeito bateu e ele nem precisou fumar outro.

No outro dia ele fez o mesmo processo, e a maconha caiu toda novamente, então ele enrolou outro cigarro, foi então que ele começou a perceber que sua saliva estava muito mais fina ou mais líquida, inconsistente, pelo excesso de uso da pedra de crack. E por mais que ele mudasse a face do papel ele continuava a não fechar o cigarro.

Desejando continuar sem fumar o crack, sempre que ele ia fumar maconha pedia alguém que enrolasse o cigarro pra ele, e isso foi gerando um determinado estresse. Durante o período de recuperação de sua saliva.

Ele ficou sem usar crack durante um período em que ele tinha maconha, entre 20 e 25 dias. Quando a maconha acabou, ele teve que comprar mais e acabou não resistindo e comprou crack com o dinheiro da maconha e mais duzentos reais que havia economizado durante os dias que ele estava longe do consumo de crack. Não foi trabalhar, ficando fumando a pedra durante dois dias seguidos. Voltando a uma rotina de consumo intenso novamente. Fumando todos os dias, “fumo todos os dias, só o dia que o Jhony (traficante) não tem”.

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Do ponto de vista individual, a perspectiva da redução de danos aumenta as possibilidades de autocuidado. Como uma estratégia pensada para ir além do discurso “pare com tudo”, ou continue com tudo. As estratégias que são adaptáveis ao indivíduo e que não envolvem abstinência, usam recursos que vão de comunidades terapêuticas à substituição de uma “droga” psicoativa por outra que cause menos danos. Lembrando que as iniciativas nessa área, vão do tratamento individual as políticas públicas. Por exemplo: “Se beber não dirija”,

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6. CONSIDERAÇÕES

Quero expor mais dois aspectos que moldam a sociedade e o indivíduo, com exemplos distintos do uso de crack. O primeiro é quando o uso e usuário de crack se tornam públicos e por causa dessa exposição o seu meio social se reduz fazendo com que o indivíduo adquira posturas que vão se afastando das suportadas pela sociedade de uma cidade pequena.

Além do afastamento, as pessoas passam a esconder seu próprio dinheiro em suas carteiras ou em bolsos diferentes. Porque o usuário pede dinheiro emprestado e as pessoas se sentem acuadas e de alguma forma acabavam “emprestando”. A forma com que se pede o dinheiro às vezes caí no tom de ameaças, e às vezes são mesmo.

O crack nas pequenas cidades expõe um problema ainda maior que o uso, a falta de informações ou uso de informações midiáticas falsas colocando os usuários em uma categoria de “pré-bandido”.

Outro tipo de usuário que identifiquei foi o que teve contato com a cocaína nos anos 80 e 90 quando o processo de fabricação ainda era artesanal. Quando ainda estava industrializando o processo de fabricação de cocaína. Os efeitos eram mais intensos, o processo pra se consumir era distinto dos atuais. Com o passar do tempo e do uso, ele não encontra mais os efeitos que encontravam com a cocaína, e no primeiro contato com a pedra de crack, adere, gosta. Os efeitos dele são “maravilhosos” capaz de substituir coisas insubstituíveis, que se colocam no lugar de outros tempos. Uma pessoa vende maconha para poder ter a sua maconha sem custos para usar, acontece também com a cocaína. Mas com o crack essa regra é quebrada como o som da pedra queimando, que origina o nome da droga.

O crack não é a causa da exclusão, é um elemento a mais, que reforça a exclusão social, processo que é anterior à droga, no entanto, é reversível.

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7. ENTREVISTAS

Eu fiz três perguntas a quatro diferentes pessoas as quais, de forma direta e indireta, são envolvidas com a pedra de crack e o consumo dela.

Tais pessoas são um trabalhador usuário, que consome crack há cinco anos; um ex usuário; um policial militar e uma pessoa que conhece usuários e de forma indireta está presente no meio social da pedra de crack, a quem chamarei de cidadão.

1 – Qual impacto direto do crack na sua vida?

Usuário:

“Comecei a fumar crack do nada. Um dia o fulano apareceu com a pedra em casa, eu estava muito cansado e com muita dor no corpo. Eu trabalho com lenha. Pego toras de madeira com mais de 50 Kg. O óleo4 me ajuda a me recuperar pra outro dia. Minha mulher não gosta, mas não deixo faltar nada em casa. Aqui quem não fuma, chera, quem não chera, bebe cachaça. E quem não faz nada disso é fofoqueiro.

Polícia:

“Na minha direta só que tenho que apreendê-la e tirar de circulação os traficantes. A pedra de crack não faz mal se ninguém vender. O crack é a pior droga que eu tenho conhecimento. A pessoa perde tudo que tem. Vira zumbi. Escravo da droga.”

Ex usuário:

“Agora nenhum. Nem gosto muito de falar sobre isso.” Já fumei demais, você sabe.

Cidadão:

4 Óleo é como o crack é conhecido entre usuários e traficantes que acham que crack é pejorativo. E também um método de disfarçar o uso.

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40 “As vezes aparece uns ai me pedindo dinheiro, você sabe quem, os mesmos de sempre, eu vejo gente que vai no mercado compra as coisa na conta e troca pela maldita pedra. Fulano, nem quer vender mais pra ele mais. Tem um amigo que chega da lavoura e a primeira coisa é dá uma pedra no trem.

2- Usar crack atrapalha seu trabalho? Por que?

Usuário:

Não. Até hoje não. Porque só me ajuda. È foda ficar pegando peso o dia todo dói tudo. Mas já faltei uns dia por causa de fuma pedra, mas eu trabalho, não deixo de trabalhar, não, tenho que pagar as coisa em casa e pensão do meu filho.”

Polícia:

“Não. Eu não uso drogas. Mas os usuários, sim. E principalmente quem vende. O traficante afeta a sua vida, a vida de todo mundo que mora aqui na cidade, uma parte das ocorrências acontece por causa da droga. Mais de cinquenta por cento.”

Ex usuário:

“Sim. Eu achava que não até perder algumas oportunidades de trabalho. Aqui as pessoas dão moral pra ladrão, mas pra usuário de crack, eles querem que morra, pras pessoas usuário de crack não come, não bebe, fui tratado igual lixo por muita gente.”

Cidadão:

“Sim. Tem amigo que fuma essa merda e tão acabado”

3 -Por que você acha que o crack não é aceito na sociedade como as outras drogas?

Usuário:

“Não sei, o trem é bão demais. Ruim que é caro. Os outros falam mais eu não devo nada pra ninguém eu compro com meu dinheiro, não roubo pra comprar. O

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crack é mal falado por causa dos vagabundo que rouba pra comprar, pra manter seu vício.”

Polícia:

“O crack é a pior droga pra nós aqui. Como já te disse as ocorrências de roubo daqui são todas pra comprar droga, e noventa por cento é de crack. Não tem como aceitar essa desgraça na vida das pessoas. A maconha e o pó ainda dá pra levar uma vida mais ou menos, a pedra destrói tudo”

Ex usuário:

“Porque as pessoas roubam pra comprar” Se não fosse por conta dessas coisas seria igual maconha, pinga. Rapaz sujeito tá usando a pedra junto com você, daí você percebe que sumiu um dinheiro aqui, um rádio ali, ai você vai ver o mesmo cara que tá fumando com você tá te roubando, e acaba que fumei as minhas coisa que estavam me roubando. E traficante nem quer saber pega tudo, só não pega a alma do sujeito. Porque se pegasse já tinha vendido por uma pedra de dez. E quando fosse pagar pra devolver seria vinte. (Risos)

Cidadão:

Nem pode, né? Você já pensou se do jeito que tá parece que já é liberado. Alá tá vendo já tão indo fumar a desgraça. Olha a hora meio dia.(Risos) (nesse momento avistamos pessoas fazendo consumo de pedra embaixo de uma árvore as margens da BR 116)

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8. CONCLUSÃO

O realce no estudo do consumo, a partir de grupos que fazem uso laboral, recreativo, controlado ou não abusivo de substâncias, visa questionar as ideias simplistas de que todo usuário de drogas é (ou pode se tornar) um dependente químico e de que o uso de drogas pode vir a se constituir um problema para qualquer pessoa que experimente alguma substância, independente da sua trajetória de uso. Tais estudos mostram a heterogeneidade de modos de se relacionar com as substâncias, de classificá-las e dialogam fundamentalmente com modelos médicos de pesquisa, questionam o diagnóstico generalizante acerca desse uso, assim como a autoridade do campo da medicina em falar sobre o assunto. Expressam claramente o debate no qual a questão está situada. Para eles. Assim, os estudos voltados às muitas formas de usos controlados e laborais ou recreativos enfocam sua discussão na crítica às generalizações de um modelo médico de pesquisa apressado em conferir diagnósticos e “destinos”. Ou seja, tais estudos se edificaram na oposição a outra área do conhecimento: as chamadas ciências da saúde, principalmente a medicina e, mais que tudo, opondo-se ao seu foco na dependência química (talvez por isso mesmo haja, nessa literatura, lacunas no que diz respeito ao consumo abusivo de substâncias). Para tanto, orientam suas investigações focando os modos como os indivíduos usam as substâncias à luz dos aspectos sócioculturais presentes na experiência.

Apenas pondero que levar a sério o que se chama de contexto sociocultural supõe considerar relações desiguais e mais ou menos hierárquicas presentes na sociedade brasileira, do mesmo modo que implica ter em conta a proximidade (ou não) com as muitas formas de violência aí envolvidas. Pois não se pode esquecer que tanto o tráfico quanto o consumo de drogas estão encapsulados por uma política proibicionista atravessada por desigualdades sociais – o que impõe fronteiras significativas entre os grupos e implica distintos tratamentos jurídicos, díspares negociações com policiais, e, ainda, diferentes aproximações com o chamado “mundo do crime” No que diz respeito ao modo como essa desigualdade se apresenta em relação ao consumo.

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Assim, por outros caminhos, cheguei a aspectos que eram relevantes inclusive aos próprios usuários. E então fiz as pazes com esses escritos e com minha escolha metodológica. Foi quando eu constatei que, para falar daquilo que move e toca as pessoas, nem sempre é preciso ficar escarafunchando suas histórias de vida. Às vezes, é só olhar, com bastante seriedade e respeito, para as relações que elas estabelecem com outras pessoas, com substâncias, com corpos, com sensações, com objetos, com instituições, com ideias e com espaços.

Acredito que precisamos encontrar uma via analítica que possa fazer com que usos tão diferentes sejam igualmente inteligíveis; e não abordar a questão de uma forma que às vezes parece cair em visões etnocêntricas que julgam alguns usos como melhores, mais racionais e, portanto, mais justificados que outros.

Chegamos então ao principal problema do desvio: que é o problema de quem pode ou não, quem tem legitimidade ou não, quem tem segurança ou não de exercer determinadas formas de interação social. No caso específico das “drogas”, isto se traduz em quem consome, em qual contexto e de que modo. Nessas “disputas” classificatórias entre grupos consumidores de “drogas”, o que está em jogo é também quem detém a possibilidade de vida na “fantasia” ou retirar os resquícios da dor e a existência da experiência diversificadora, em que o corpo aparece como a grande porta de entrada.

Há uma tensão constitutiva, principalmente no âmbito das ciências sociais, na distinção entre problema social e problema teórico, já que o primeiro não necessariamente se constitui no segundo. Embora não esperemos resolvê-la, tal tensão pode ser, se tomada de modo absoluto, imobilizadora e pouco produtiva.

Não se pode negar que problemas sociais têm movido a humanidade, notadamente as ciências sociais, em sua curta história de vinculação às disciplinas científicas.

Através de diversos referenciais teóricos capazes de distanciar observador e objeto, os problemas sociais são historicamente contextualizados e desnaturalizados, o que não deve implicar, em hipótese alguma, a negação de sua importância enquanto tal.

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44 Não fosse assim, como explicar a importância política e teórica da contribuição das ciências humanas ao estudo das classes sociais, da identidade racial ou cultural e das separações de gênero, citando apenas três exemplos entre dezenas de outros possíveis? A questão das “drogas”, portanto, se estabelece enquanto um campo de pesquisa não apenas porque se configura num problema social relevante, mas também porque o fenômeno do consumo sistemático de substâncias psicoativas vai muito além do contato físico entre indivíduos e determinadas substâncias.

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9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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