UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR ´
A
INSTITUTO DE CULTURA E ARTE
PROGRAMA DE P ´
OS-GRADUAC ˜
AO EM FILOSOFIA
PAULO ALBERTO VIANA DA COSTA
POPPER, O HISTORICISMO E O M ´
ETODO DAS CI ˆ
ENCIAS SOCIAIS
POPPER, O HISTORICISMO E O M ´ETODO DAS CI ˆENCIAS SOCIAIS
Dissertac¸ ˜ao submetida `a Coordenac¸ ˜ao do Curso de P ´os-Graduac¸ ˜ao em Filosofia, da Uni-versidade Federal do Cear ´a, como requisito parcial para obtenc¸ ˜ao do grau de Mestre em Filosofia.
´
Area de concentrac¸ ˜ao: Filosofia
Orientador: Prof. Dr. Guido Imaguire
FORTALEZA
POPPER, O HISTORICISMO E O M ´ETODO DAS CI ˆENCIAS SOCIAIS
Dissertac¸ ˜ao submetida `a Coordenac¸ ˜ao do Curso de P ´os-Graduac¸ ˜ao em Filosofia, da
Universi-dade Federal do Cear ´a, como requisito parcial para obtenc¸ ˜ao do grau de Mestre em Filosofia, ´
Area de Concentrac¸ ˜ao Filosofia. teste
Aprovada em / /
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Guido Imaguire (Orientador) Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Prof. Dr. Andr ´e Leclerc
Universidade Federal do Cear ´a - UFC
Prof. Dr. Od´ılio Alves Aguiar Universidade Federal do Cear ´a - UFC
AGRADECIMENTOS
`
A FUNCAP, pela concess ˜ao e manutenc¸ ˜ao da bolsa de aux´ılio.
Ao prof. Dr. Guido Imaguire, por me acompanhar neste dois longos anos de ´ardua
pesquisa.
Aos profs. Dr. Andr ´e Leclerc, Dr. Od´ılio Aguiar, e Dr. C´ıcero Barroso, por
disporem-se a tarefa de debater e comentar este trabalho.
E por fim, `a todos os professores e funcion ´arios do curso de P ´os-Graduac¸ ˜ao em
Filosofia da UFC, que estiveram sempre de prontid ˜ao para sanar quaisquer problemas
A partir da cr´ıtica do historicismo e do holismo, busca apresentar o m ´etodo das ci ˆencias so-ciais como proposto por Karl Popper. Ap ´os uma breve exposic¸ ˜ao do m ´etodo das ci ˆencias naturais e discuss ˜ao sobre alguns de seus componentes, a saber os conceitos de m ´etodo dedutivo, falseabilidade, e corroborac¸ ˜ao, o historicismo ´e definido e criticado. Por meio do uso de certos exemplos baseados na f´ısica do s ´eculo XX, mostra como ´e poss´ıvel refutar o histo-ricismo por provar que uma teoriaprima faciedeterminista n ˜ao pode assegurar o determinsmo do mundo nem de suas previs ˜oes. Define a chamada an ´alise situacional, que afirma ser a tarefa das ci ˆencias sociais a explicac¸ ˜ao de situac¸ ˜oes t´ıpicas. Mostra a origem desse m ´etodos e suas principais influ ˆencias, bem como seus limites. Exibe porque a an ´alise situacional n ˜ao pode ser o ´unico m ´etodo das ci ˆencias sociais e porque a psicologia n ˜ao pode ser eliminada do estudo de certas situac¸ ˜oes sociais.
ABSTRACT
From the critic of the historicism and holism it searches to present the method of the social sci-ences as it is proposed by Karl Popper. After a short exposition about the method of the natural sciences and some of its components, namely the concepts of deductive method, falseability, and corroboration, historicism is defined and criticized. Through the use of some examples based in XX century physics it shows how is possible to disprove historicism, showing that a prima faciedeterministic theory can not ensure the determism of the world, nor of its forecasts. It defines the so called situational analysis, which maintains social that the social sciences task is the explanation of typical situations. Indicates the origin of this concept e its major influences as well as its limits. Exhibits why situational analysis can not be the sole method of the social sciences, and why psychology can not be eliminated from the study of some social situations.
CR . . . Conjectures and Refutations
ISBW . . . In Search for a Better World
LScD . . . The Logic of Scientific Discovery
MF . . . The Myth of Framework
OK . . . Objective Knowledge: an Evolutionary Approach
OSE . . . Open Society and Its Enemies
OU . . . The Open Universe: an Argument for Indeterminism
PH . . . The Poverty of Historicism
RAS . . . Realism and the Aim of Science
QT . . . Quantum Theory and the Schism in Physics
LISTA DE FIGURAS
2.1. Comparac¸ ˜ao entre graus de falseabilidade . . . 25
4.1. Representac¸ ˜ao da assimetria temporal. . . 67
4.2. Impossibilidade da previs ˜ao precisa. . . 67
1 Introduc¸ ˜ao 9
2 A Metodologia Popperiana 12
2.1 O Problema da Induc¸ ˜ao e o M ´etodo Dedutivo de Teste . . . 12
2.2 A Falseabilidade como Crit ´erio Demarcat ´orio . . . 18
2.3 A Corroborac¸ ˜ao de Teorias . . . 26
2.4 Os 3 Mundos Ontol ´ogicos . . . 31
2.5 O Aspecto Social da Ci ˆencia . . . 33
3 Uma Definic¸ ˜ao do Historicismo 36 3.1 Historicismo Antinatural´ıstico . . . 36
3.1.1 Generalizac¸ ˜ao . . . 37
3.1.2 Experimento . . . 37
3.1.3 Novidade . . . 38
3.1.4 Complexidade . . . 39
3.1.5 Inexatid ˜ao da Previs ˜ao . . . 39
3.1.6 Objetividade e Valorac¸ ˜ao . . . 40
3.1.7 Holismo . . . 40
3.1.8 Compreens ˜ao Intuitiva . . . 41
3.1.9 M ´etodos Quantitativos . . . 42
3.1.10 Essencialismo e Nominalismo . . . 43
3.2 Historicismo Pr ´o-natural´ıstico . . . 45
3.2.1 Comparac¸ ˜oes com a Astronomia . . . 45
3.2.3 Din ˆamica Social . . . 46
3.2.4 Leis Hist ´oricas . . . 47
3.2.5 Profecia Hist ´orica x Engenharia Social . . . 47
3.2.6 Teoria do Desenvolvimento Hist ´orico . . . 48
3.2.7 Interpretar e Planejar a Transformac¸ ˜ao Social . . . 49
4 Historicismo: um m ´etodo pobre? 50 4.1 Historicismo e Utopianismo . . . 50
4.2 Experimentos e Generalizac¸ ˜oes . . . 55
4.3 Leis ou Tend ˆencias? . . . 58
4.4 Explanac¸ ˜ao Causal . . . 60
4.5 Ci ˆencias Hist ´oricas . . . 62
4.6 Existe uma Refutac¸ ˜ao do Historicismo? . . . 63
4.7 Engenharia Social . . . 72
5 An ´alise Situacional 75 5.1 A Unidade do M ´etodo . . . 75
5.2 An ´alise Situacional I: definic¸ ˜ao . . . 78
5.3 O Princ´ıpio de Racionalidade . . . 79
5.3.1 Teoria Econ ˆomica e Racionalidade . . . 80
5.3.2 An ´alise Situacional e Racionalidade . . . 81
5.4 An ´alise Situacional II: aplicac¸ ˜ao . . . 83
5.5 O Alcance da An ´alise Situacional . . . 86
5.6 Irracionalidade . . . 88
6 Conclus ˜ao 91
1
Introduc¸ ˜ao
Vienna, primeiras d ´ecadas do s ´eculo XX. O ent ˜ao Imp ´erio Austro-H ´ungaro ru´ıra
ap ´os a Primeira Grande Guerra, esfacelando-se em numerosos pequenos estados.
Feliz-mente, esse cen ´ario pol´ıtico ca ´otico tem consequ ˆencias benignas no campo intelectual. Tal
per´ıodo ´e, talvez, a ´epoca em que avanc¸os, filos ´oficos e cient´ıficos, s ˜ao vistos mais
rapi-damente. Nesse contexto surge o C´ırculo de Viena, um grupo de pensadores reunidos na Universidade de Viena, ent ˜ao um centro do pensamento cujo valor foi reconhecido
mundial-mente.
Os membros do C´ırculo, apesar de suas opini ˜oes d´ıspares, compartilhavam de
uma atitude comum para com a filosofia. Todos acreditavam na aplicac¸ ˜ao do positivismo
l ´ogico `a filosofia, influenciados por Wittgenstein e seuTractatus Logico-Philosophicus.
Utiliza-vam um m ´etodo comum, e acreditaUtiliza-vam ser poss´ıvel aplicar essa an ´alise `a todos os problemas filos ´oficos. Nesse contexto surge Karl Raimund Popper, um jovem pensador fortemente
influ-enciado por tais autores. Mas, ao contr ´ario destes, Popper n ˜ao era um adepto de tal m ´etodo.
O C´ırculo era visto como seu inimigo; contudo, tamb ´em como um aliado, pois Popper entendia
serem eles os ´unicos que ainda mantinham viva a tradic¸ ˜ao da discuss ˜ao racional, t ˜ao
dene-grida em seu tempo. Para Popper, n ˜ao poder´ıamos reduzir todos os problemas filos ´oficos a
meras disputas lingu´ısticas. Existiria pelo menosumproblema filos ´ofico genu´ıno, o problema
cosmol ´ogico, oucomo entender o mundo. Entender-nos como parte do mundo, e entender
como o nosso conhecimento cresce, seria a tarefa primordial da filosofia. E que jeito melhor
de exercer essa tarefa sen ˜ao pelo estudo do conhecimento cient´ıfico e da ci ˆencia? Contudo, diferentemente do que os positivistas afirmavam, esse problema n ˜ao poderia ser resolvido
pela an ´alise lingu´ıstica: a discuss ˜ao cr´ıtica de problemas do mundo e de suas soluc¸ ˜oes ´e “o”
m ´etodo da filosofia.
Dentre os problemas tratados por Popper, um dos mais importantes (e urgentes) ´e a discuss ˜ao do m ´etodo das ci ˆencias sociais. Sem d ´uvida, existiram per´ıodos em que as
quest ˜oes sociais obtiveram avanc¸os mais c ´eleres que as ditos f´ısicas; contudo, o Renasci-mento e o surgiRenasci-mento da ci ˆencia moderna apresentaram-nos um desenvolviRenasci-mento nunca
an-tes visto das ci ˆencias naturais. Muitos, ent ˜ao, buscaram copiar tais m ´etodos, especialmente
1 Introduc¸ ˜ao 10
Todavia, uma quest ˜ao logo surgiu: podem esses m ´etodos ser similares?
Essa quest ˜ao guia uma das primeiras obras de Popper,The Poverty of Historicism.
Ele nos apresenta um m ´etodo, o historicismo. Segundo o autor um m ´etodo pobre, nocivo,
causador de grandes males `a sociedade. ´E importante sua discuss ˜ao, pois, segundo Popper, os m ´etodos historicistas estariam em voga; cumpre lembrar que a obra fora publicada na
d ´ecada de 40, ´epoca em que dois regimes baseados em doutrinas historicistas, o Reich
alem ˜ao e a Uni ˜ao Sovi ´etica, viam seu auge. Mas o que ´e o historicismo? Um m ´etodo que, no
entendimento de Popper, afirmaria sera previs ˜ao hist ´orica a tarefa das ci ˆencias sociais, tarefa
a ser atingida pelo descobrimento de “ritmos” ou “padr ˜oes” da hist ´oria. O historicismo seria,
ent ˜ao, um dos grandes respons ´aveis pelo estado ainda insatisfat ´orio do desenvolvimento das
ci ˆencias sociais.
O historicismo se divide em dois grandes grupos, de acordo com sua orientac¸ ˜ao.
Osantinaturalistas preconizam que os m ´etodos das ci ˆencias naturais e sociais s ˜ao
diferen-tes; a ci ˆencia social incluiria elementos desconhecidos `a ci ˆencia natural, da´ı ser necess ´aria
a criac¸ ˜ao de uma nova metodologia para estud ´a-la. J ´a os pr ´o-naturalistas afirmam serem
os m ´etodos similares: o m ´etodo da f´ısica j ´a seria aplic ´avel `a sociedade e n ˜ao precisar´ıamos
de modificac¸ ˜oes. Deve-se lembrar que essa divis ˜ao, apesar de real, ´e utilizada para fins
did ´aticos: embora um autor caracterizado como historicista tenha predomin ˆancia de
elemen-tos de um dos grupos, o usual ´e haver uma combinac¸ ˜ao de caracter´ısticas de ambos, tor-nando o historicismo um m ´etodo dific´ılimo de ser enfrentado. Todavia, antinaturalistas e pr
´o-naturalistas padecem do mesmo mal: ambosn ˜ao entendem como a ci ˆencia natural opera.
Para fins de exposic¸ ˜ao, este trabalho se divide em quatro cap´ıtulos. No primeiro
cap´ıtulo (A metodologia popperiana), h ´a uma breve apresentac¸ ˜ao de como a metodologia
de-senvolvida por Popper se organiza. Buscaremos discutir sua cr´ıtica do procedimento indutivo
e sua definic¸ ˜ao de m ´etodo dedutivo, bem como os principais aspectos que o caraterizam, o falseamento e a corroborac¸ ˜ao de teorias. Por fim, buscaremos inserir essa metodologia no
ˆambito social. Ora, a ci ˆencia ´e, antes de tudo, uma atitude praticada por homens inclu´ıdos na
sociedade, e suas conclus ˜oes influenciam a sociedade de modo direto; da´ı ser indispens ´avel
entender como esse processo acontece na pr ´atica. ´E importante frisar que Popper ´e
conhe-cido por ser um autor prol´ıfico, autor de numerosas obras. Procuramos selecionar as
carac-ter´ısticas indispens ´aveis para a apresentac¸ ˜ao de sua metodologia, bem como as que ser ˜ao
mais importantes no desenvolvimento do trabalho. Trata-se aqui apenas de uma exposic¸ ˜ao
inicial que visa orientar e preparar o leitor. Ademais, n ˜ao se pode omitir a presenc¸a de certas
inconsist ˆencias que aparecem no interior da pr ´opria obra de Popper.
J ´a o segundo capitulo (Uma definic¸ ˜ao do historicismo) apresenta uma exposic¸ ˜ao
sobre o m ´etodo historicista enquanto tal. Procuraremos definir as duas variantes do
prin-cipais. Entretanto, n ˜ao pararemos por aqui. A discuss ˜ao sobre o historicismo, apesar de
sua import ˆancia, ´e utilizada por Popper como uma passagem para uma uma outra quest ˜ao,
tamb ´em important´ıssima: como ´e caracterizado o m ´etodo das ci ˆencias naturais? Esse
pro-blema, por ´em, ainda n ˜ao ser ´a tratado no momento.
O terceiro cap´ıtulo (Historicismo: um m ´etodo pobre?) inicia a discuss ˜ao acerca
do tema deste trabalho. Para tal, ir-se- ´a discorrer sobre a cr´ıtica de aspectos selecionados do
historicismo. Sim, selecionados, pois, apesar de ser considerado um m ´etodo nocivo, Popper
n ˜ao ´e cr´ıtico de todas as caracter´ısticas do historicismo tomadas isoladamente; algumas s ˜ao
at ´e mesmo elogiadas. Dentre seu principais alvos, podemos listar o holismo, a confus ˜ao entre
leis e tend ˆencias e o papel da explanac¸ ˜ao na ci ˆencia. Por ´em, Popper admite que n ˜ao refuta o
historicismo emThe Poverty of Historicism. Para tal, apresentaremos um segundo argumento,
baseado num experimento adaptado da f´ısica, capaz de, enfim, refutar o historicismo. Por
´ultimo, expomos a primeira caracterizac¸ ˜ao de m ´etodo da ci ˆencia social dada por Popper, ainda por demais “crua”, a engenharia social.
Por fim, o ´ultimo cap´ıtulo (An ´alise situacional) conclui o trabalho expondo como
Popper compreende o m ´etodo da ci ˆencia social. A primeira quest ˜ao aqui levantada, ent ˜ao,
se faz presente novamente: s ˜ao os m ´etodos das ci ˆencias natural e social similares?
Vere-mos que no desenvolvimento do pensamento popperiano sua opini ˜ao ´e modificada.
Inicial-mente, Popper acredita numa unidade metodol ´ogica completa (a engenharia social, exposta no cap´ıtulo anterior); em seguida, renega sua posic¸ ˜ao, propondo que essa unidade, de fato,
n ˜ao existe, sendo necess ´aria uma nova metodologia capaz de explicar como as ci ˆencias
sociais podem ser estudadas. Sua segunda proposta ´e a conhecida an ´alise situacional,
forte-mente influenciada pela economia, que ter ´a seu desenvolvimento, bem como suas principais
caracter´ısticas, aqui discutidas. Encontra-se ent ˜ao definitivamente o problema central que
guia o trabalho, divido em duas partes: 1) s ˜ao os m ´etodos das ci ˆencias natural e social
simi-lares?; e 2) como Popper define o m ´etodo das ci ˆencias sociais? Veremos que a an ´alise de
Popper n ˜ao consegue responder ambas as perguntas. ´E um m ´etodo ´util; contudo, tem limites,
e limites impostos pela cr´ıtica de elementos do historicismo feita por Popper.
A ordem de exposic¸ ˜ao dos argumentos se d ´a em concord ˆancia com o objetivo
deste trabalho: apresentar o m ´etodo das ci ˆencias sociais como entendidos por Popper e
as incoer ˆencias da sua formulac¸ ˜ao. Tal reflex ˜ao se mostra importante pois, como j ´a dito,
preocupa-se com aspecto predominantemente pr ´atico: o estudo dos m ´etodos da ci ˆencia que
12
2
A Metodologia Popperiana
A construc¸ ˜ao de uma metodologia coerente ´e, talvez, a parte mais importante do
trabalho filos ´ofico. Sem ela, somos fadados ao fracasso antes mesmo do in´ıcio da pesquisa,
pois, sem um um m ´etodo, n ˜ao saberemos apreender e interpretar aquelas informac¸ ˜oes que recebemos do mundo. Na primeira metade do s ´eculo XX, um jovem autor imbu´ıdo desse
pensamento, Karl Raimund Popper, apresenta uma nova vis ˜ao do m ´etodo cient´ıfico,
chaco-alhando o at ´e ent ˜ao dom´ınio do C´ırculo de Viena e das teses lingu´ıstiscas de Wittgenstein
no cen ´ario cient´ıfico europeu. Pretendemos agora discutir os principais pontos dessa
meto-dologia revolucion ´aria, apresentando suas principais teses, listadas a seguir: o problema da
induc¸ ˜ao; o m ´etodo dedutivo de teste; o falseamento e a corroborac¸ ˜ao de teorias; e, por fim,
examinar como esses pontos se articulam na atividade cient´ıfica em seu cont´ınuo
desenvol-vimento.
2.1
O Problema da Induc¸ ˜ao e o M ´etodo Dedutivo de Teste
Muitos acreditaram que a maior caracter´ıstica do assim chamado “m ´etodo
ci-ent´ıfico”, opini ˜ao ainda sustentada em tempos hodiernos, ´e a de ele ´e indutivo. A verdade de que podemos, por meio de um grande n ´umero de proposic¸ ˜oes singulares, inferir a
vali-dade de uma proposic¸ ˜ao universal, ´e tida por n ´os como garantida pela experi ˆencia, embora
n ˜ao o seja. Hume foi o primeiro a apontar que tal problema, constantemente negligenciado,
era insol ´uvel. Por ´em, o desenvolvimento de sua resposta n ˜ao ´e inteiramente satisfat ´orio.
Segundo Hume, o assim denominado problema da induc¸ ˜ao1 pode ser
caracteri-zado pela nossa pr ´e-disposic¸ ˜ao em acreditar que:
(1) A verdade de proposic¸ ˜oes universais poderia ser justificada pela verdade de proposic¸ ˜oes particulares; (2) as futuras ocorr ˆencias de eventos se as-semelham `as ocorr ˆencias passadas dos mesmos (tipos de) eventos; e (3) ´e poss´ıvel estabelecer uma relac¸ ˜ao de causa e efeito entre eventos cujas ocorr ˆencias tenham sido invariavelmente associadas no passado (GARCIA, 2006, p. 10).
1Apesar da palavra “induc¸ ˜ao” ser aqui usada, Hume em nenhum momento a utilizou, preferindo utilizar o
Temos dois modos de conhecer: 1) por meio de relac¸ ˜oes de ideias; e 2) por
meio de quest ˜oes de fato. O primeiro, tal como a matem ´atica, tem sua verdade demonstrada
dedutivamente; o segundo, ao contr ´ario, s ´o pode ser conhecido por meio da experi ˆencia e,
por isso, nunca podemos assegurar a absoluta verdade desse tipo de argumento; portanto,
“mesmo ap ´os a observac¸ ˜ao da conjunc¸ ˜ao frequente ou constante entre objetos, n ˜ao temos
nenhuma raz ˜ao para fazer uma infer ˆencia a respeito de outro objeto al ´em daqueles de que
tivemos experi ˆencia” (HUME, 2009, p. 139, grifo do autor).
O conhecimento do passado pode at ´e nos dar alguma base sobre a qual discutir,
mas, ao tentarmos aplicar esse conhecimento ao futuro, vemos que n ˜ao ´e poss´ıvel inferir com
certeza se os eventos do passado repetir-se- ˜ao do mesmo modo.
Apenas para efeitos explicativos, vamos assumir por um momento que uma
in-fer ˆencia indutiva ´e v ´alida, ou seja, podemos estabelecer com seguranc¸a que A → B2 com
base em repetic¸ ˜oes passadas. Por suas pr ´oprias caracter´ısticas, uma infer ˆencia como essa
n ˜ao poderia ser uma proposic¸ ˜ao anal´ıtica pois, caso o fosse, o problema desapareceria e
ocorreriam apenas transformac¸ ˜oes l ´ogicas3. Logo, ela deve ser uma proposic¸ ˜ao sint ´etica.
Al ´em disso, ela deve ser uma proposic¸ ˜ao universal. Assim, se tent ´assemos justificar sua
va-lidade como conhecida por meio da experi ˆencia, o mesmo problema apareceria novamente,
pois seria necess ´ario buscar uma nova infer ˆencia, tamb ´em indutiva, que pudesse justificar
a anterior. Outrossim a induc¸ ˜ao (e sua justificac¸ ˜ao por meio da experi ˆencia) implica num regressoad infinitum.
Ao ser confrontado com essa conclus ˜ao, Hume prop ˆos uma sa´ıda psicol ´ogica
para seu problema. Nossa mente constantemente emprega argumentos que tomam como
garantida a relac¸ ˜ao entre causa e efeito. Ao assumir tal fato, somos obrigados a buscar algum
princ´ıpio, j ´a que tais infer ˆencias n ˜ao s ˜ao completamente arbitr ´arias (aceitamos
involuntaria-mente que ao fogo se segue o calor, mas n ˜ao aceitamos que se segue a fome, por exemplo, e isso se deve `as nossas experi ˆencias anteriores). Hume, ent ˜ao, as interpreta como sendo
um efeito do que ele chamacostume(ouh ´abito). V ´arias experi ˆencias nos fazem inferir o
apa-recimento de um objeto numa determinada relac¸ ˜ao, o que n ˜ao seria esperado se tiv ´essemos
vivenciado apenas uma vez tal experi ˆencia, “pois onde quer que a repetic¸ ˜ao de qualquer
ato ou operac¸ ˜ao particular produz uma tend ˆencia a reavivar o mesmo ato ou operac¸ ˜ao, n ˜ao
sendo impelido por nenhum racioc´ınio ou processo de entendimento, dizemos sempre que tal
tend ˆencia ´e o efeito doCostume” (HUME, 2007, p. 43, grifo do autor).
Nossa mente utiliza tr ˆes instrumentos para garantir essa relac¸ ˜ao: a semelhanc¸a,
a contiguidade, e a relac¸ ˜ao entre causa e efeito. Os dois primeiros s ˜ao conhecidos
intuitiva-mente, enquanto o terceiro exige que, para instanciar a relac¸ ˜ao de causa e efeito, exista um
2L ˆe-se:AcausaB.
2.1 O Problema da Induc¸ ˜ao e o M ´etodo Dedutivo de Teste 14
par de objetos (x,y) tal que o aparecimento de x sempre ´e seguido pelo aparecimento dey
(ou cujo o pensamento de x estabelece o pensamento de y). Embora tal relac¸ ˜ao seja um
processo psicol ´ogico comum `a v ´arias esp ´ecies, n ˜ao podemos creditar mais que um
conheci-mento probabil´ıstico4acerca de fatos nos quais determinamos uma relac¸ ˜ao de causa e efeito,
cuja verdade absoluta nunca poder ´a ser conhecida completamente.
Popper tornou o problema da induc¸ ˜ao, entendido por ele como “a quest ˜ao da
validade ou verdade de proposic¸ ˜oes universais baseadas na experi ˆencia” (LScD, § 1, p. 4),
seu ponto de partida para a proposta de uma nova metodologia cient´ıfica.
Est ´a longe de ser ´obvio de um ponto de vista l ´ogico que podemos justifi-car a infer ˆencia de sentenc¸as universais a partir daquelas particulares, n ˜ao importa qu ˜ao numerosas sejam, pois qualquer conclus ˜ao extra´ıda dessa ma-neira pode sempre ser falsa. Quantas inst ˆancias de cisnes brancos vemos n ˜ao s ˜ao importantes, isto n ˜ao justifica concluir quetodosos cisnes s ˜ao bran-cos (LScD, § 1, p. 4, grifo do autor).
N ˜ao h ´a como discordar da resposta de Hume ao problema l ´ogico da induc¸ ˜ao, a qual Popper concorda, mas sua abordagem psicol ´ogica n ˜ao ´e satisfat ´oria5. Hume conseguiu
rejeitar a induc¸ ˜ao com argumentos puramente l ´ogicos para em seguida reintroduzi-la como
um princ´ıpio psicol ´ogico. Para a rejeic¸ ˜ao completa da induc¸ ˜ao, portanto, s ˜ao necess ´arias mais
duas etapas: (1) eliminar o psicologismo; e (2) formular um m ´etodo alternativo que dispense
a induc¸ ˜ao.
Reformulando-se a psicologia de Hume de um modo mais apropriado, se percebe
que sua teoria n ˜ao est ´a distante da chamada psicologiamainstreamatual. Hume n ˜ao busca
apenas explicar um comportamento, mas “teorizar acerca da sua origem” (CR, p. 56). Diz
Oliva (2005, pp. 26-7) que “na concepc¸ ˜ao psicol ´ogica da l ´ogica, desaparece [. . . ] a diferenc¸a
entre as raz ˜oes que justificam uma convicc¸ ˜ao e as causas que a produzem [. . . ] como deixa
de ser poss´ıvel a justificac¸ ˜ao ´e natural que aparec¸a em seu lugar o relato referente a como
foi adquirida”. Portanto, n ˜ao apenas nossos diversos h ´abitos cotidianos, mas o nosso pr ´oprio
h ´abito de acreditar em leis, s ˜ao produtos de uma repetic¸ ˜ao constante cuja justificac¸ ˜ao ´e
im-poss´ıvel conhecermos, restando-nos apenas descrever como foram adquiridos.
A psicologia de Hume [. . . ] estava errada, penso que a respeito de pelo menos tr ˆes pontos diferentes: (a) o resultado t´ıpico da repetic¸ ˜ao; (b) a g ˆenese dos h ´abitos; e especialmente (c) o car ´ater daquelas experi ˆencias (ou modos de) comportamento que podem ser descritos como “acreditar numa lei” ou “imaginar uma sucess ˜ao de eventos de acordo com uma lei” (CR, pp. 56-7).
4Tal procedimento ´e adotado com sucesso na f´ısica qu ˆantica. Tenho um ´atomoAque se movimenta do ponto
xao pontoy. N ˜ao sei qual ser ´a a trajet ´oria exata do ´atomo ao partir dexe chegar ay, mas posso determinar algumas trajet ´orias poss´ıveis e estabelecer qual dessas ´e a mais prov ´avel.
5Apesar desse intenso embate contra a induc¸ ˜ao, Popper n ˜ao conseguiria rejeit ´a-la no terreno da psicologia
Popper afirma que quanto a (a), o resultado t´ıpico de uma repetic¸ ˜ao, v ˆe-se o
contr ´ario do que Hume imaginava. O processo t´ıpico de repetic¸ ˜ao na mente comec¸a com
uma expectativa, para s ´o depois dar origem ao movimento repetido. Pode-se com muita
repetic¸ ˜ao tocar uma passagem musical com extrema facilidade, ou, como o senso comum
diria, “inconscientemente”. Mas esse estado s ´o ´e estabelecido ap ´os a aprendizagem da
pas-sagem; ou seja, num primeiro momento h ´a uma expectativa – o aprendizado da m ´usica –,
para s ´o ent ˜ao acontecer a repetic¸ ˜ao. Se tal ideia for desenvolvida vemos que (b), a g ˆenese
dos h ´abitos, tamb ´em tem uma formulac¸ ˜ao errada na concepc¸ ˜ao de Hume. Um h ´abito surge antes da repetic¸ ˜ao, n ˜ao ap ´os o acontecimento dela. Se hoje tenho o h ´abito de almoc¸ar numa
determinada hora, primeiro foi necess ´ario que eu fizesse a escolha de almoc¸ar nesse hor ´ario
para somente em seguida iniciar a repetic¸ ˜ao do ato6. Por ´ultimo, acreditar numa lei e esperar
uma sucess ˜ao de eventos como uma lei (c) n ˜ao s ˜ao exatamente a mesma coisa, mas podem
ser tratados juntos. Provavelmente Hume introduzira esses conceitos para explicar situac¸ ˜oes
desfavor ´aveis para sua teoria, particularmente aquela descoberta pela psicologia emp´ırica de
que mesmo uma ac¸ ˜ao repetida uma ´unica vez pode vir a criar um h ´abito (talvez devido ao fato
dessa experi ˆencia j ´a ter sido vivenciada num est ´agio anterior da vida do indiv´ıduo e, portanto,
n ˜ao ser a primeira repetic¸ ˜ao da ac¸ ˜ao).
Pode-se rejeitar tais argumentos tamb ´em com base l ´ogica. “A ideia central da
psicologia de Hume ´e darepetic¸ ˜ao baseada numa similaridade” (CR, p. 56, grifo do autor).
Contudo, toda repetic¸ ˜ao e, consequentemente, toda similaridade, ´e sempre uma similaridade
para n ´os (e mesmo Hume ´e obrigado a concordar com essa afirmac¸ ˜ao). Tais repetic¸ ˜oes,
ent ˜ao, nunca s ˜ao id ˆenticas; quando muito ser ˜ao similares, e similares para um determinado observador. Mas “duas coisas similares o s ˜ao sempreem certos aspectos” (LScD, Appendix
*x, p. 441, grifo do autor). Se algu ´em v ˆe uma bola de futebol, por exemplo, criar ´a uma
expectativa acerca de certas caracter´ısticas dela para que, caso veja outra, possa identific
´a-la como simi´a-lar `a primeira (nesse caso, pode-se apontar o tamanho, o material com o qual
ela ´e fabricada, ou o objetivo para qual ela foi feita; a cor, por exemplo, seria irrelevante).
“Mas isto significa que, por raz ˜oes l ´ogicas, ´e preciso haver sempre um ponto de vista [. . . ]
antes de poder haver qualquer repetic¸ ˜ao; consequentemente, tal ponto de vista n ˜ao pode
ser o resultado da simples repetic¸ ˜ao” (CR, p. 59, grifo do autor). Desse modo, tamb ´em
uma psicologia baseada na induc¸ ˜ao leva a um regresso ad infinitum: a similaridade para
n ´os ´e um produto da interpretac¸ ˜ao e da expectativa que n ˜ao pode ser explicado como um resultado de diversas repetic¸ ˜oes. Mesmo a primeira ocorr ˆencia da repetic¸ ˜ao deve ser baseada
numa similaridade para n ´os, ou seja, sobre expectativas. A psicologia de Hume, ent ˜ao, ´e
contestada, pois busca explicar justamente a g ˆenese dessas expectativas.
6Popper d ´a essa resposta porque opera uma ligeira modificac¸ ˜ao a respeito do que antecede uma repetic¸ ˜ao.
2.1 O Problema da Induc¸ ˜ao e o M ´etodo Dedutivo de Teste 16
Popper afirma que a explicac¸ ˜ao psicol ´ogica n ˜ao parece ter sido inteiramente aceita
por Hume. Como, mesmo depois de refutar a induc¸ ˜ao, poderia ele reintroduzi-la? Ora,
conhe-cemos, e isso n ˜ao ´e posto em d ´uvida. Mas de qual modo, psicologicamente, obtemos nosso
conhecimento abrindo m ˜ao de procedimentos indutivos? Duas respostas s ˜ao poss´ıveis: a
pri-meira exige a utilizac¸ ˜ao de um procedimento n ˜ao indutivo. J ´a a segunda afirma que, mesmo
que a induc¸ ˜ao seja um procedimento racionalmente injustific ´avel, adquirimos nosso
conheci-mento por meio dela. Ent ˜ao, todo conheciconheci-mento n ˜ao seria mais que uma forma de crenc¸a —
crenc¸a adquirida pela repetic¸ ˜ao de certos h ´abitos. Hume parece n ˜ao ter considerado seria-mente a primeira alternativa, o que o levou a uma forma de ceticismo7.
Ao aceitar a primeira opc¸ ˜ao, Popper ´e capaz de formular uma nova proposta
epis-temol ´ogica. O psicologismo humeano n ˜ao ser ´a mais necess ´ario: a episepis-temologia n ˜ao deve
buscar o processo de “invenc¸ ˜ao” de um teoria, mas os passos que permitem a essa teoria
ser justificada racionalmente (asquid facti equid juris kantianas, respectivamente). “Por se-remexplic ´aveis, os atos de conhecer devem ser estudados pela psicologia e pela sociologia.
Em contrapartida, os conte ´udos proposicionais, por serem ao menos em tese justific ´aveis,
demandam abordagem epistemol ´ogica” (OLIVA, 2005, p. 103, grifo do autor). A ci ˆencia n ˜ao
deve mais partir de observac¸ ˜oes para teorias, como Hume pensara, mas o contr ´ario; toda
observac¸ ˜ao ´esempre seletiva8. “Sem esperar passivamente por repetic¸ ˜oes para gravar ou
impor regularidades sobre n ´os, ativamente tentamos impor regularidades sobre o mundo”
(CR, p. 60). Criamos teorias, testamo-nas empiricamente e, caso sejam refutadas, buscamos
teorias novas (que esperamos sejam melhores), num constante processo da ars probandi.
Assim deve ser o procedimento cient´ıfico, uma superposic¸ ˜ao cont´ınua de tentativas e erros. Mas como se define tal m ´etodo dedutivo9? Popper nos apresenta caminhos distintos, ainda
que complementares. Ele escreve:
Primeiro, h ´a a comparac¸ ˜ao l ´ogica das conclus ˜oes entre si, meio pelo qual tes-tamos a consist ˆencia interna do sistema. Em segundo lugar, h ´a a investigac¸ ˜ao da forma l ´ogica da teoria, tendo como objetivo determinar se ela tem o car ´ater de uma teoria cient´ıfica emp´ırica ou se ´e, por exemplo, tautol ´ogica. Em ter-ceiro lugar, existe a comparac¸ ˜ao com outras teorias, com o intuito principal de determinar se a teoria constitui um avanc¸o cient´ıfico caso sobreviva aos nossos v ´arios testes. E finalmente, o teste da teoria por meio de aplicac¸ ˜oes emp´ıricas das conclus ˜oes que podem ser derivadas dela” (LScD, § 3, p. 9).
7Hume se diferencia das propostas c ´eticas tradicionais (que buscavam, por exemplo, apontar a circularidade
de uma prova ou o aparecimento de paradoxos) e afirma que seu temor ´e fruto do car ´ater probabil´ıstico do conhecimento. Sendo assim, ele se pergunta: n ´os conhecemos de algum modo e isso ´e um fato, mas como algu ´em pode dar certeza absoluta acerca de algo conhecido, mesmo sabendo que ele n ˜ao passa de uma probabilidade? Cf. FOGELIN, 2009, pp. 39-84.
8Embora tal afirmac¸ ˜ao seja constantemente atribu´ıda a Popper, foi Comte, em seu Cours de Philosophie Positive, que primeiramente afirmou serem as observac¸ ˜oes feitas com base em teorias.
Percebe-se por essa exposic¸ ˜ao que o procedimento indutivo ´e completamente
descartado, sendo formada uma nova forma de metodologia, uma que trabalha apenas com
a deduc¸ ˜ao10. Ainda, a exig ˆencia do princ´ıpio do empiricismo, a conex ˜ao entre nossas
teo-rias e o mundo f´ısico, ´e satisfeita, pois o quarto passo nos obriga a confrontar nossas teoteo-rias
empiricamente para refut ´a-las (ou corrobor ´a-las temporariamente). “O uso de m ´etodos
dedu-tivos de teste, em adic¸ ˜ao `a alguns princ´ıpios reguladedu-tivos (falseabilidade e corroborac¸ ˜ao, por
exemplo), ´e suficiente para explicar a din ˆaminca da ci ˆencia emp´ırica” (GARCIA, 2006, p.15).
Hume estava certo ao afirmar que n ˜ao existe uma relac¸ ˜ao segura entre as v ´arias proposic¸ ˜oes singulares formuladas acerca de um fato do mundo e uma proposic¸ ˜ao universal que tem a
pre-tens ˜ao de explic ´a-las, mas ignorou o fato de que essas proposic¸ ˜oes singulares podemrefutar
nossas teorias (que s ˜ao universais). Teorias que at ´e o tempo presente ainda n ˜ao tenham sido
refutadas s ˜ao, portanto, nosso objetivo11.
Ajudados por outras proposic¸ ˜oes previamente aceitas, certas proposic¸ ˜oes singulares – chamadas por n ´os de “previs ˜oes” – s ˜ao deduzidas da teoria, especialmente previs ˜oes que s ˜ao facilmente test ´aveis ou aplic ´aveis. A se-guir, procura-se chegar a uma decis ˜ao quanto a esses (e outros) enunciados deduzidos, confrontando-os com os resultados das aplicac¸ ˜oes pr ´aticas dos experimentos. Se a decis ˜ao for positiva, isto ´e, se as conclus ˜oes singulares se mostrarem aceit ´aveis oucomprovadas, a teoria ter ´a, pelo menos proviso-riamente, passado pelo teste: n ˜ao se descobriu motivo para rejeit ´a-la. Con-tudo, se a decis ˜ao for negativa, ou, em outras palavras, se as conclus ˜oes tiverem sidofalseadas, esse resultado falsear ´a tamb ´em a teoria da qual as conclus ˜oes foram logicamente deduzidas” (LScD, § 3, pp. 9-10, grifo do au-tor).
Desse modo podemos expurgar a induc¸ ˜ao do m ´etodo cient´ıfico de modo
sim-ples12. Usualmente, pensava-se que uma proposic¸ ˜ao cient´ıfica deveria ser completamente
determin ´avel, ou seja, ela poderia ser confirmada e/ou falseada. A proposta metodol ´ogica de
Popper, ent ˜ao, exige que sejam apenas falseadas, parcialmente determin ´aveis, e mostra que
o processo cient´ıfico pode se dar inteiramente por meio de procedimentos dedutivos13. Essa
assimetria entre verificabilidade e falseabilidade ´e o cerne da resposta, al ´em de nos abrir ca-minho para a resoluc¸ ˜ao do pr ´oximo problema, a demarcac¸ ˜ao entre ci ˆencia e a n ˜ao-ci ˆencia.
Claro que, tratando apenas no terreno l ´ogico, sentenc¸as universais e existenciais negativas
(e uma teoria cient´ıfica pode ser escrita de ambas as formas) s ˜ao sim ´etricas, equivalentes.
A assimetria entre verificac¸ ˜ao e falseamento s ´o existe por conta do crit ´erio aqui empregado.
10Salmon (2006) prefere chamar o m ´etodo dedutivo popperiano de “modelo dedutivo-nomol ´ogico”.
11Mais uma vez presenciamos como ´e imposs´ıvel rejeitar completamente a induc¸ ˜ao. Ao aceitar teorias que
at ´e o momento n ˜ao tenham sido refutadas, esperamos queo futuro se comporte como o passado, um posicio-namento tipicamente indutivo.
12Mesmo ap ´os tal cr´ıtica, diversos autores tentaram refutar os argumentos de Popper contra a induc¸ ˜ao. Miller
(1994, cap. 2) aponta (e responde) nove desses argumentos.
13Popper ignora que o processo de formulac¸ ˜ao de hip ´otesesn ˜ao ´e um procedimento inteiramente dedutivo.
2.2 A Falseabilidade como Crit ´erio Demarcat ´orio 18
Sabemos que ´e poss´ıvel falsear as sentenc¸as universais, mas n ˜ao as existenciais positivas,
apenas verific ´aveis; logo, como procuramos sentenc¸as que sejam false ´aveis, exclu´ımos as
sentenc¸as existenciais positivas do estudo cient´ıfico.
2.2
A Falseabilidade como Crit ´erio Demarcat ´orio
Popper buscara eliminar a induc¸ ˜ao do m ´etodo cient´ıfico, mas isso nos deixa um
vazio. Costumava-se aceit ´a-la, mesmo ap ´os Hume apontar suas incoer ˆencias, por ser
con-siderada um crit ´erio de demarcac¸ ˜ao da ci ˆencia. Cientistas seriam aqueles que, por meio da
observac¸ ˜ao de diversas inst ˆancias de um mesmo acontecimento, viessem a formular teorias
que falassem de modo geral sobre o mundo. Agora, sem ela, priva-se desse crit ´erio, e a
me-taf´ısica poderia invadir o terreno da pesquisa cient´ıfica. Reichenbach (1930, p. 186) chega ao ponto de afirmar que, sem o princ´ıpio da induc¸ ˜ao, a “ci ˆencia n ˜ao teria mais o direito de
dife-renciar suas teorias das fant ´asticas e arbitr ´arias criac¸ ˜oes da imaginac¸ ˜ao dos poetas”; pode-se
ver claramente que seu crit ´erio de demarcac¸ ˜ao exige uma l ´ogica indutiva. Popper (LScD, §
4, p. 11, grifo do autor) discorda veementemente de tal afirmac¸ ˜ao e n ˜ao v ˆe motivos para que
a induc¸ ˜ao tenha qualquer papel na ci ˆencia, pois sua “principal raz ˜ao para rejeitar a l ´ogica
indutiva ´e precisamente por ela n ˜ao proporcionar um marco distintivo do emp´ırico [. . . ], ela
n ˜ao prov ˆe um ‘crit ´erio de demarcac¸ ˜ao’ adequado”. Ent ˜ao, qual seria o crit ´erio adequado? A
formulac¸ ˜ao anterior da nova metodologia apontara uma resposta, a falseabilidade, resta-nos
desenvolver tal conceito.
A velha doutrina de que nosso conhecimento cient´ıfico s ´o teria valor se fosse
dire-tamente derivado da experi ˆencia continuava bem viva. O empirismo ingl ˆes aderira ao m ´etodo
indutivo por acreditar que esse m ´etodo j ´a apresentaria um crit ´erio de demarcac¸ ˜ao cient´ıfica
adequado. Tais pensadores “ansiavam admitir como cient´ıficos ou leg´ıtimos apenas aqueles
conceitos(ou noc¸ ˜oes, ou ideias) que eram, como eles definem, ‘derivados da experi ˆencia”’
(LScD, § 4, p. 11, grifo do autor). Ainda no comec¸o do s ´eculo XX, o positivismo austr´ıaco do C´ırculo do Viena, dominante na ´epoca (e sua vertente alem ˜a, o Grupo de Berlim, ao qual
o anteriormente citado Reichenbach pertencera), compartilhava dessa opini ˜ao. Contudo, era
not ´avel um grande avanc¸o na substituic¸ ˜ao de um sistema de conceitos por um sistema de
sentenc¸as.
Segundo Popper, a definic¸ ˜ao mais precisa (e aquela na qual o positivismo
con-tempor ˆaneo se inspira) da substituic¸ ˜ao de conceitos por sentenc¸as ´e a de Wittgenstein. No Tractatus14 (WITTGENSTEIN, 2001), ele afirma que a filosofia e a metaf´ısica consistem de
pseudo-proposic¸ ˜oes, ou seja, n ˜ao tem significado. Toda proposic¸ ˜ao com significado precisa
ser necessariamente redut´ıvel a proposic¸ ˜oes at ˆomicas (ou elementares). Noutras passagens,
como na proposic¸ ˜ao 4.11, ele afirma que “a totalidade das proposic¸ ˜oes verdadeiras ´e o todo
da ci ˆencia natural (ou o corpus integral das ci ˆencias naturais)”. Os crit ´erios de demarcac¸ ˜ao
da ci ˆencia e de significado, ent ˜ao, coincidem. Ou seja, proposic¸ ˜oes cient´ıficas seriam aquelas
redut´ıveis a sentenc¸as at ˆomicas (ou elementares) da experi ˆencia15, e portanto aquelas que
teriam significado16. Nota-se que o positivismo trata o problema da demarcac¸ ˜ao como um
problema da pr ´opria ci ˆencia, n ˜ao externo a ela, uma posic¸ ˜ao denominada natural´ıstica; seria
poss´ıvel determinar algo inerente na pr ´opria natureza das sentenc¸as que as daria ou n ˜ao
sentido.
Mostra-se necess ´aria a adoc¸ ˜ao de uma metodologia indutivista para a adoc¸ ˜ao de
tal crit ´erio baseado no significado das sentenc¸as; caso contr ´ario, n ˜ao seria poss´ıvel
distin-guir o que ´e uma sentenc¸a cient´ıfica de uma metaf´ısica. Mas “[. . . ] cada vez que os
posi-tivistas tentavam exprimir claramente o que ‘significativo’ denotava, a tentativa conduzia ao
mesmo resultado – a definic¸ ˜ao de ‘sentenc¸a significativa’ [. . . ] o que simplesmente reforc¸ava o crit ´erio de demarcac¸ ˜ao da sua l ´ogica indutiva” (LScD, § 4, p. 13, grifo do autor). O
pro-blema da adoc¸ ˜ao desse crit ´erio, por ´em, parece n ˜ao ter sido percebido: ao procurar eliminar a
metaf´ısica, os positivistas eliminaram tamb ´em a ci ˆencia17 — enquanto, por outro lado,
trans-formaram certas pseudoci ˆencias (como a astrologia) com enorme carga de material emp´ırico
em ci ˆencia. As leis que toda disciplina cient´ıfica deve (ou pelo menos deveria) buscar, mesmo
se fosse admitido que elas s ˜ao descobertas por um processo indutivo, ao contr ´ario de uma
simples observac¸ ˜ao, n ˜ao podem ser reduzidas a sentenc¸as emp´ıricas.
Como fora apontado anteriormente, na metodologia popperiana a induc¸ ˜ao ´e
re-jeitada. Por ´em, um ponto ainda n ˜ao est ´a definido completamente: o que ´e falsear uma
sentenc¸a? Ao escolher uma teoria entre as demais concorrentes e ao testar uma teoria tal
procedimento ´e necess ´ario. O falseamento ´e um processo dedutivo feito com a ajuda do
modus tollens18. Por meio da teoria especificada e determinadas condic¸ ˜oes iniciais (dados
acerca do mundo), deduzimos uma previs ˜ao, que pode ser negativa ou positiva. Caso
con-15O nome pelo qual tais sentenc¸as ficaram mais conhecidas ´e o de “sentenc¸as protocolares”,
principal-mente devido a adoc¸ ˜ao de tal express ˜ao por Neurath e Carnap. Tal qual o nome sugere, indica protocolos de observac¸ ˜oes ou percepc¸ ˜oes individuais . Neurath (1933, p. 205) d ´a um exemplo de como ela deve ser: “{Otto’s protocol at 3 hrs. 17 mins. [Ottos’s speech-thought was at 3 hrs. 16 min.: (in the room, at 3 hrs. 15 mins., there was a table which was observed by Otto)]}”.
16Embora o C´ırculo de Viena afirme que seu crit ´erio verificacionista de sentido foi retirado do trabalho de
Wittgenstein, em nenhum momento o autor sustentara essa posic¸ ˜ao. O C´ırculo (especialmente Waismann, que afirmara ter Wittgenstein proposto tal posic¸ ˜ao em conversas entre ambos) lentamente deturpa a id ´eia inicial de Wittgenstein (de que entender uma proposic¸ ˜ao ´e entender sob quais condic¸ ˜oes ela seria verdadeira, ou seja, significaria algo) at ´e sustentar que entender uma proposic¸ ˜ao (e declar ´a-la como portadora de um significado) implica obrigatoriamente em verific ´a-la no mundo. Como apenas proposic¸ ˜oes protocolares (at ˆomicas) podem ser verificadas empiricamente, o C´ırculo assume que apenas estas teriam significado e delimita seu crit ´erio de demarcac¸ ˜ao cient´ıfica (identificando-o com seu crit ´erio de significado). Cf. GLOCK, 1996, pp. 382-5.
17O exemplo de sentenc¸a protocolar dado anteriormente n ˜ao pode gerar uma lei natural que, por sua pr ´opria
construc¸ ˜ao, ´e uma sentenc¸a universal, n ˜ao uma percepc¸ ˜ao individual de algo por algu ´em.
18Omodus tollens´e um procedimento presente no c ´alculo proposicional que funciona por meio de uma prova
2.2 A Falseabilidade como Crit ´erio Demarcat ´orio 20
sigamos a teoria passe nos testes mais severos, dizemos que ela foi corroborada19 — pelo
menos at ´e o momento, o que n ˜ao ´e garantia que v ´a ser no futuro. Se a resposta for positiva
e o falseamento ocorrer, rejeita-mo-na. Tal resposta pode ser dada porque n ˜ao ´e exigido que
a ci ˆencia tenha uma conclus ˜ao definitiva. Algu ´em poderia argumentar: mas, se nada ´e
es-tabelecido definitivamente, n ˜ao se corre o risco de um entrar numa busca sem fim? “N ˜ao”,
responderia Popper. Por n ˜ao procurarmos uma conclus ˜ao final n ˜ao precisamos exigir que
toda e qualquer sentenc¸a, para adquirir o status cient´ıfico, tenha sido efetivamente testada
(independente de qual resultado possa advir desse teste), mas apenas que, em princ´ıpio, ela tenha a possibilidade de ser testada20 (caso os recursos para tal teste estejam dispon´ıveis,
evidentemente). A ´unica exig ˆencia para um sistema emp´ırico ´e que sua forma l ´ogica seja tal
que possa ser testada e falseada empiricamente. Podemos utilizar esse argumento porque,
ao discutir o problema da induc¸ ˜ao, fora apontada a assimetria presente entre sentenc¸as
uni-versais e particulares. As primeiras jamais podem ser derivadas de sentenc¸as particulares,
mas apenas uma sentenc¸a particular pode contradit ´a-las. Enquanto sistemas de sentenc¸as
universais, teorias devem, portanto, serem suscet´ıveis a uma poss´ıvel contradic¸ ˜ao.
Mas existem cr´ıticas que podem ser dirigidas ao falseamento. O convencionalismo
poderia levantar duas delas: a primeira ´e a de que podemos a qualquer momento adicionar
hip ´oteses auxiliares (ad hoc) ou modificar alguma hip ´otese para salvar um sistema do
false-amento; a segunda ´e simplesmente a recusa em aceitar uma experi ˆencia que possa falsear
uma teoria, chamando-o de inv ´alida. Pode-se responder a primeira objec¸ ˜ao facilmente. Esse
tipo de manobra deve ser definitivamente rejeitada, sob pena do sistema perder o seu car ´ater
cient´ıfico. No caso da modificac¸ ˜ao de definic¸ ˜oes o problema ´e ainda mais s ´erio, pois ape-nas hip ´oteses com baixo grau de universalidade podem ser modificadas21 e mesmo assim
devemos tomar o sistema como novo e submet ˆe-lo novamente a rigorosos testes. Apenas
numa ocasi ˜ao pode-se aceitar a introduc¸ ˜ao de novas hip ´oteses: caso elas aumentem o grau
de falseabilidade de um sistema. J ´a para a segunda, Popper, admite, n ˜ao existe. A rejeic¸ ˜ao
de uma experi ˆencia que pode falsear uma teoria acusando-a de inv ´alida, ou apenas n ˜ao
ad-P →Q
¬Q ∴¬P
19O termo “verificac¸ ˜ao” ´e usualmente tomado como sin ˆonimo de “confirmac¸ ˜ao” e, por tal motivo, Popper o
substitui em escritos posteriores por “corroborac¸ ˜ao”, usando “confirmac¸ ˜ao” apenas ao tratar do c ´alculo de pro-babilidades. Cf. CR, p. 76.
20Kotarbinska (1962) afirma que esse requerimento utilizado por Popper o conduz a uma forma de
psicolo-gismo: ele sustenta que uma proposic¸ ˜ao cient´ıfica deve apenas poder ser testada (e, em certos casos, falseada), mas n ˜ao exige que que esse teste tenha sido feito at ´e o momento. Contudo, se n ˜ao existe a exig ˆencia do teste atual, mas apenas da possibilidade desse teste se necess ´ario, a ci ˆencia (como Popper define) “may become completely independent of the results of observations and experiments” (KOTARBINSKA, 1962, p. 267), po-dendo operar apenas com construc¸ ˜oes teor ´eticas sem nenhum tipo de confirmac¸ ˜ao emp´ırica.
21Como exemplo Popper cita o princ´ıpio da exclus ˜ao de Pauli. A f´ısica qu ˆantica, tal como era definida em 1925
mitir sua exist ˆencia, n ˜ao pode ser confrontada. Aqui se trata de uma escolha metodol ´ogica:
escolhemos o convencionalismo e garantimos que nossas teorias “de estimac¸ ˜ao” n ˜ao ser ˜ao
importunadas, ou escolhemos o m ´etodo dedutivo aqui proposto e buscamos sempre refinar
nossas teorias cada vez mais. Uma vez escolhida a segunda opc¸ ˜ao, estar-se- ´a sujeito ao
falseamento a todo momento, mas ´e certo que aquilo que ´e buscado ´e realmente o ideal
cient´ıfico.
Bamford (1996)22 aponta falhas do m ´etodo de falseamento, o que ele chama de
Falseamento Popperiano Forte (Strong Popperian Falsificationism ou SPF). Usando T para
teoria, C para condic¸ ˜oes iniciais23, e P para previs ˜ao, Popper escreveria um caso de
falsea-mento de tal modo:
T ∧C→P
¬P
∴¬T ∧C
“SPF ´e claramente falso, pois o que segue da refutac¸ ˜ao deP ´e a refutac¸ ˜ao deT∧
C, n ˜ao apenas T” (BAMFORD, 1996, p. 210). Contudo, Popper constantemente aponta que
apenas T ´e refutado (e as condic¸ ˜oes inicias s ˜ao sempre dadas como verdadeiras). Logo, o
cen ´ario mais correto no caso de um falseamento seria:
T ∧C→P
¬P
∴¬(T ∧C)
Outra falha pode ser vista no artigoReply to My Critics, onde Popper se contradita
e afirma que “a teoria de Newton pode ser refutadasem o uso de condic¸ ˜oes iniciais”
(SCH-LIPP, 1974, p. 998, grifo meu). Mas se P n ˜ao pode (segundo Popper) ser deduzido de T
isoladamente, como¬Tpode ser deduzido de¬P? Popper provavelmente percebeu o erro da sua argumentac¸ ˜ao, pois em nenhum outro momento escreveu novamente que uma teoria
po-deria ser refutada sem a ajuda de condic¸ ˜oes iniciais. Mas para o primeiro problema ele nos d ´a
uma resposta, e sua sa´ıda ´e realizar uma ligeira modificac¸ ˜ao na definic¸ ˜ao de falseabilidade (vista tamb ´em em Reply to My Critics), o que Bamford chama de Falseamento Popperiano
Fraco(Weak Popperian Falsificationism). Ao encontrar esses resultados n ˜ao dir´ıamos
imedi-atamente que a teoria foi refutada, mas apenas que ela foiprima facie refutada, ou seja, o
resultado ainda est ´a sujeito a sofrer modificac¸ ˜oes. Contudo, a falha ainda permanece.
22O argumento ´e similar do j ´a proposto por Putnam (1991) no artigo “The Corroboration of Theories”, publicado
originalmente em 1974.
2.2 A Falseabilidade como Crit ´erio Demarcat ´orio 22
Ap ´os tais considerac¸ ˜oes iniciais podemos definir o que ´e um sistema false ´avel.
Num primeiro momento, um sistema poderia ser chamado emp´ırico se pudessem ser
dedu-zidas sentenc¸as singulares24 a partir dele. Essa definic¸ ˜ao ´e incompleta, j ´a que precisamos
de outras sentenc¸as singulares — nesse caso as condic¸ ˜oes inicias — para, em conjunc¸ ˜ao
com a teoria, deduzir novas sentenc¸as. Ainda assim essa definic¸ ˜ao n ˜ao nos agrada, j ´a que
mesmo a partir de uma teoria n ˜ao emp´ırica (uma tautol ´ogica, por exemplo) pode-se fazer essa
deduc¸ ˜ao. Ent ˜ao acrescentamos a exig ˆencia de que a deduc¸ ˜ao deve apresentar sentenc¸as
sint ´eticas, ou seja, deve apresentar mais do que a conjunc¸ ˜ao da teoria com as condic¸ ˜oes iniciais apresentaria. Novamente n ˜ao ´e suficiente, j ´a que podemos deduzir sentenc¸as
me-taf´ısicas25, n ˜ao-emp´ıricas, desse modo. Ent ˜ao, para um sistema ser chamado de emp´ırico,
mais uma condic¸ ˜ao deve ser exigida: a conjunc¸ ˜ao da teoria com as condic¸ ˜oes iniciais deve
deduzir mais sentenc¸as emp´ıricas do que a deduc¸ ˜ao das condic¸ ˜oes iniciais isoladamente.
Ap ´os estabelecer quais exig ˆencias um sistema false ´avel deve apresentar, Popper nos d ´a a
seguinte definic¸ ˜ao:
Uma teoria ´e chamada de ‘emp´ırica’ ou ‘false ´avel’ se divide a classe de todas proposic¸ ˜oes b ´asicas poss´ıveis nas duas seguintes subclasses n ˜ao vazias. Primeiro, a classe de todas aquelas proposic¸ ˜oes b ´asicas com as quais a teo-ria ´e inconsistente: chamamo-na de classe dospotenciais falseadores; e em segundo lugar, a classe daquelas proposic¸ ˜oes b ´asicas que n ˜ao contraditam a teoria” (LScD, § 21, pp. 65-6, grifo do autor, par ˆenteses suprimidos).
Duas observac¸ ˜oes s ˜ao necess ´arias. Um teoria consistente obrigatoriamente tem
elementos na classe de sentenc¸as compat´ıveis; contudo, caso seja emp´ırica, tamb ´em obri-gatoriamente deve ter elementos na classe dos potenciais falseadores26. Caso a classe dos
falseadores seja vazia, a teoria n ˜ao ´e emp´ırica (teorias metaf´ısicas tem a classe vazia, por
isso n ˜ao s ˜ao emp´ıricas). Al ´em disso, ´e importante lembrar que uma teoria s ´o informa acerca
daquilo que a falseia, n ˜ao sobre o que permite27, j ´a que a classe das sentenc¸as que ela
per-mite contem diversas sentenc¸as incompat´ıveis. Por tal motivo, ´e mais correto ver uma teoria
24Sentenc¸as singulares tamb ´em s ˜ao chamadas por Popper de “sentenc¸as b ´asicas”: “[. . . ] when I speak of
‘basic statements’, I am not referring to a system of accepted statements. The system of basic statements, as I use the term, is to include, rather, all self-consistent singular statements of a certain logical form [...] Thus the system of all basic statements will contain many statements which are mutually incompatible” (LScD, § 21, p. 64).
25E importante lembrar que todo sistema cient´ıfico ainda possui trac¸os metaf´ısicos. Grandes ideias que vieram´
a se tornar cient´ıficas (o atomismo de Dem ´ocrito, ou mesmo a filosofia natural de Newton, por exemplo), em sua formulac¸ ˜ao inicial eram inteira (ou parcialmente) metaf´ısicas. N ˜ao ´e de se espantar que possam haver deduc¸ ˜oes desse tipo; o objetivo de todo cientista, por ´em, ´e excluir completamente esses vest´ıgios metaf´ısicos de seu sistema.
26Essa exig ˆencia tamb ´em n ˜ao ´e suficiente. Pode-se contorn ´a-la com duas manobras que devem ser proibidas:
1) a modificac¸ ˜ao dos elementos da classe dos falseadores. Por meio dessa modificac¸ ˜ao, facilmente podemos salvar uma teoria que foi falseada. E 2) a inclus ˜ao de sentenc¸as existenciais na classe dos falseadores. ´E exigido apenas que existam elementos na classe, mas n ˜ao s ˜ao especificados quais elementos s ˜ao permitidos. Caso sentenc¸as existenciais (que na maior parte dos casos nem mesmo falam sobre o mundo) sejam inclu´ıdas, nenhum teoria poderia ser falseada. Popper parece n ˜ao ter percebido ambos os pontos, o que pode vir a causar problemas. Para mais informac¸ ˜oes, Cf. GARCIA, 2006, p. 78, n. 29.
27Nem mesmo se tais sentenc¸as s ˜ao verdadeiras, mas apenas se uma determinada sentenc¸a ´e compat´ıvel
cient´ıfica como uma proibic¸ ˜ao: ela pro´ıbe algo de acontecer (por isso tamb ´em s ˜ao chamadas
deleis). Logo, teorias s ´o dizem algo sobre seus potenciais falseadores.
A definic¸ ˜ao do car ´ater de um sistema false ´avel foi dada. Importante lembrar,
por ´em, que classificar um sistema emp´ırico n ˜ao significa assumir que esse sistema j ´a te-nha sido efetivamente falseado. Ent ˜ao pode-se partir o conceito de falseabilidade em dois:
a propriedade l ´ogica e o ato epistemol ´ogico. Como propriedade l ´ogica n ˜ao s ˜ao necess ´arias
novas explicac¸ ˜oes, visto que j ´a foi definido como uma teoria deve ser constru´ıda de modo
a ser considerada uma teoria emp´ırica. Tendo isso em conta, precisa-se de certas regras
para regular como a falsificac¸ ˜ao (o ato epistemol ´ogico) efetiva acontece. A falsificac¸ ˜ao ´e um
ato que envolve operac¸ ˜oes metodol ´ogicas e pressup ˜oe observac¸ ˜oes e a tomada de uma
de-cis ˜ao por parte daquele que pretende falsear um sistema. “A falsificac¸ ˜ao ocorreu se tivermos
aceitado sentenc¸as b ´asicas observacionais que contraditam a teoria” (GARCIA, 2006, p. 46).
Contudo, uma ´unica observac¸ ˜ao n ˜ao ´e suficiente: precisamos descobrir um efeito capaz de ser reproduzido que falseie a teoria, um efeito por sua vez tamb ´em emp´ırico (e, portanto,
ca-paz de ser posteriormente falseado). Essa sentenc¸a b ´asica tem um duplo papel num caso
de falsificac¸ ˜ao. Pode-se dizer que em cada caso de falsificac¸ ˜ao ocorre tamb ´em um caso
de corroborac¸ ˜ao, embora com relac¸ ˜ao a conjuntos de sentenc¸as diferentes. Quando uma
hip ´otese ´e falseada por uma sentenc¸a, dizemos que essa sentenc¸a falseou o sistema te ´orico
em quest ˜ao; contudo, essa mesma sentenc¸a falseadora foi corroborada, mas com relac¸ ˜ao ao
conjunto de todas as sentenc¸as b ´asicas cient´ıficas.
At ´e agora ainda n ˜ao foi claramente definido o qu ˆe uma teoria cient´ıfica pro´ıbe.
Por isso, Popper prop ˜oe a inserc¸ ˜ao de dois novos termos na discuss ˜ao: ocorr ˆencia e evento.
Alguns buscaram eliminar tais termos do assunto pois os consideravam termos psicol ´ogicos,
preferindo em seu lugar falar de sentenc¸as. Contudo, ´e mais claramente percebido qual a
relac¸ ˜ao entre uma hip ´otese falseadora e uma teoria se utilizamos tais termos.
Uma sentenc¸a b ´asica descreve uma ocorr ˆencia, que pode ou n ˜ao ser proibida por
uma teoria. Logo, duas sentenc¸as que descrevem a mesma ocorr ˆencia s ˜ao logicamente
equi-valentes. “Digamos quepk ´e uma proposic¸ ˜ao singular. Ent ˜ao chamamos a classe de todas as
proposic¸ ˜oes equivalente apk de ocorr ˆenciaPk” (LScD, § 23, p. 69, par ˆenteses suprimidos).
Imaginemos uma sentenc¸a “em Fortaleza faz 30°C”. Podemos dizer “em Fortaleza, `as 16:50
do dia 13 de agosto de 2010, faz 30°C”, e essa sentenc¸a equivale `a classe de sentenc¸asPk
e a todas as sentenc¸as que pertencem a ela. Generalizando mais, podemos excluir todas
a refer ˆencias a nomes individuais e/ou coordenadas e obteremos um evento que “denota o
que ´et´ıpico ou universala respeito de uma ocorr ˆencia, ou o qu ˆe numa ocorr ˆencia pode ser descrito sem o aux´ılio de nomes universais” (LScD, § 23, p. 69, grifo do autor) Portanto, todas
as ocorr ˆenciasPa,Pb,Pc... pertencem ao evento P (no caso, fazer 30°C). Uma teoria, ent ˜ao,
caso seja false ´avel, deve proibir n ˜ao apenas uma ocorr ˆencia, mas um evento28. Existe uma
2.2 A Falseabilidade como Crit ´erio Demarcat ´orio 24
relac¸ ˜ao aqui entre sentenc¸as que descrevem uma ocorr ˆencia e as sentenc¸as que descrevem
um evento. Enquanto as sentenc¸as que descrevem uma ocorr ˆencia s ˜ao equivalentes,
pode-mos chamar as sentenc¸as que descrevem um evento homot´ıpicas29. Pode-se perceber que
uma teoria, caso seja false ´avel, possui um n ´umero ilimitado de sentenc¸as b ´asicas em sua
classe de potenciais falseadores, j ´a que, ao proibir um evento, pro´ıbe todas as ocorr ˆencias
desse evento com relac¸ ˜ao a quaisquer coordenadas testadas (incluindo as que foram ou as
que podem ser).
Popper considera que uma teoria fala apenas sobre seus potencias falseadores,
nunca sobre o que ela permite. O exame da noc¸ ˜ao de falseabilidade nos permitiu
compreen-der melhor esse ponto, pois vimos que uma teoriaT2, com um maior grau de falseabilidade
que uma teoria T1, fala mais sobre o mundo por proibir mais eventos (ela tem um maior
conte ´udo emp´ırico). Contudo, ´e imposs´ıvel estimar com precis ˜ao um valor para o grau de
fal-seabilidade. Poderia ser feita uma tentativa apenas se duas teorias fossem rivais, ou falassem sobre o mesmo aspecto da realidade. Como geralmente isso n ˜ao acontece, ficamos sem um
modo preciso de fazer o c ´alculo. Pode-se, contudo, imaginar um diagrama que nos permite
comparar teorias de acordo com seu grau de falseabilidade. Antes de explanar como essa
comparac¸ ˜ao pode ser feita, precisamos de algumas definic¸ ˜oes:
1. Se duas sentenc¸as inclu´ıdas em teorias concorrentes, onde uma tem um grau de
false-abilidade maior que a outra (fala mais sobre o mundo que a outra, ou ´e melhor test ´avel
que a outra), dizemos que: Fsb(x)> Fsb(y). Caso uma delas esteja inteiramente inclu´ıda
na outra (Y⊂X), dizemos que Y ´e umasubclassede X.
2. Caso duas sentenc¸as tenham o mesmo grau de falseabilidade s ˜ao id ˆenticas; desse
modoFsb(x)=Fsb(y)
3. No caso de sentenc¸as que n ˜ao sejam rivais, ou seja, expliquem parcelas diferentes do
mundo emp´ırico, representa-mo-nas como (Fsb(x)||Fsb(y))30.
Algumas conclus ˜oes podem ser tiradas a partir dessas definic¸ ˜oes. Caso (1)
acon-tec¸a, ´e obrigat ´orio que exista uma classe complementar com algum elemento. Se isso ocorrer e uma das sentenc¸as for uma sentenc¸a universal, essa classe complementar ´e infinita. Teorias
tautol ´ogicas e metaf´ısicas s ˜ao id ˆenticas, pois ambas n ˜ao tem potenciais falseadores. Como
as duas s ˜ao vazias, ambas podem ser tratadas como id ˆenticas (e, portanto, sendo um caso
espec´ıfico de (2)). Podemos dizer, ent ˜ao, queFsb(t) =Fsb(m) = 0, diferentemente de qualquer
teoria emp´ırica, que obedece `a f ´ormulaFsb(e) >0. J ´a com sentenc¸as contradit ´orias ocorre
levantadas pelos convencionalistas, que j ´a que exclui qualquer trac¸o subjetivo que poderia surgir no processo de falseamento de uma teoria.
29Ou seja, sentenc¸as logicamente equivalentes que descrevem o mesmo evento (em relac¸ ˜ao `as mesmas
coordenadas).
o oposto das metaf´ısicas e tautol ´ogicas. Pode-se dizer que uma teoria desse tipo tem todos
as sentenc¸as poss´ıveis em sua classe de potenciais falseadores. Ou seja, qualquer evento a
falsearia. Se arbitrariamente definimos uma teoria contradit ´oria pelo n ´umero 1, ent ˜ao
pode-mos representar o grau de falseabilidade de uma teoria emp´ırica por 1> Fsb(e)>0, onde 1
representa as teorias contradit ´orias, Fs(e) as teorias emp´ıricas e 0 as teorias metaf´ısicas e
tautol ´ogicas31.
A figura abaixo mostra como essas relac¸ ˜oes entre graus de falseabilidade podem
ser exemplificadas.
Figura 2.1.: Comparac¸ ˜ao entre graus de falseabilidade
T1 T2
T3
T4 T5
T1 ´e uma subclasse deT2. SeT1 ´e falseada,T2automaticamente o ser ´a; contudo,
caso T2 seja falseada, T1 ainda pode continuar v ´alida. O segundo caso ´e o mais comum,
j ´a que T2, por proibir mais que T1, tem um maior n ´umero de enunciados que podem ser
falseados. O mesmo acontece comT3,T4, eT5. O falseamento deT3ouT4automaticamente
falseariaT5, poisT3,T4 s ˜ao suas subclasses . Por ´em, casoT5 seja falseada,T3 eT4podem
continuar v ´alidas. Da´ı n ˜ao podermos afirmar que em todos os casos de falseamento de
uma classe todas as suas subclasses sejam imediatamente falseadas, j ´a que isso n ˜ao ocorre necessariamente. Poder´ıamos dizer, ent ˜ao, queT2 > T132, queT5 > T4 e queT5 > T333.
31Embora Popper clarifique consideravelmente em escritos posteriores o que deve ser considerado quando
se compara graus de falseabilidade de teorias, continua a sustentar que teorias contradit ´orias tem o grau de falseabilidade m ´aximo. Duas s ˜ao as formas de conte ´udo poss´ıvel de uma sentenc¸a: oconte ´udo l ´ogico(o que Tarski chama de classe consequente) e oconte ´udo informativo(ouemp´ırico). Apesar de ser dito que teorias contradit ´orias pro´ıbem todos os eventos, por isso seriam falseadas em qualquer ocasi ˜ao, elasn ˜ao podemser falseadas: sua classe consequente ´e infinita, j ´a que ´e poss´ıvel deduzir qualquer sentenc¸a, mas seu conte ´udo emp´ırico ´e vazio, pois n ˜ao pro´ıbem nada (o que seria exigido para uma teoria ser considerada emp´ırica). Cf. LScD, § 35; UQ, cap. 7 e notas 15 e 16; Tarski (1995), cap. 4.
32Dizer queT
2> T1significa que o conte ´udo emp´ırico deT2 ´e maior que o deT1.
33Apesar de ´uteis, essas comparac¸ ˜oes necessariamente precisam conter um elemento extra-l ´ogico.
func-2.3 A Corroborac¸ ˜ao de Teorias 26
EntreT3eT4ocorreria algo diferente. Pode-se dizer que uma determinada porc¸ ˜ao
do conte ´udo de ambas ´e comum, mas o falseamento de uma delas, embora falseasse uma
certa ´area da outra, n ˜ao a falsearia completamente.
T2 e T5 s ˜ao independentes. O falseamento de uma delas n ˜ao forc¸aria nenhuma
modificac¸ ˜ao na outra. No caso, ou ambas s ˜ao rivais (teorias concorrentes que procuram
explicar os mesmos fen ˆomenos) ou falam sobre ´areas distintas do mundo. A comparac¸ ˜ao
entre ambas seria dificultada por esse fato.
A comparac¸ ˜ao entre graus de falseabilidade serve como uma ponte para o
desen-volvimento de ideias posteriores por Popper. Entre as principais, podemos citar suas noc¸ ˜oes
de probabilidade e corroborac¸ ˜ao. Segundo Popper, quanto mais false ´avel uma teoria, menos prov ´avel ela ´e, pois “a probabilidade l ´ogica de uma sentenc¸a ´e complementar34 ao seu grau
de falseabilidade: aumenta com um grau decrescente de falseabilidade” (LScD, § 34, p. 102,
grifo do autor). O que Popper procura mostrar ´e que quanto maior o conte ´udo emp´ırico de
uma teoria (quanto mais ela fala do mundo), menor ser ´a sua probabilidade por ela ser mais
facilmente false ´avel (deve-se lembrar que uma teoria fala apenas sobre o quepro´ıbe). J ´a a
noc¸ ˜ao de corroborac¸ ˜ao surge como um ponto de conflu ˆencia entre ambos os conceitos.
Sa-bemos que a ci ˆencia procura falsear teorias, e quanto mais prov ´avel isso ´e, mais facilmente
um teoria ser ´a falseada. Mas e quando isso n ˜ao acontece? Dizemos que ela foi corroborada,
ou seja, que a tentativa de falseamento falhou. Vamos examinar mais detalhadamente esse conceito t ˜ao importante no pensamento popperiano.
2.3
A Corroborac¸ ˜ao de Teorias
“Nenhum teste de qualquer proposic¸ ˜ao te ´orica ´e final ou conclusivo”, j ´a dissera Popper, e “a atitude emp´ırica ou cr´ıtica envolve a ades ˜ao a certas ‘regras metodol ´ogicas’ que
nos mandam aceitar refutac¸ ˜oes e n ˜ao evadir cr´ıticas” (UQ, pp. 112-3). Contudo, nem sempre
a refutac¸ ˜ao de uma teoria ocorre. Ent ˜ao, o que deve ser feito no caso de uma teoria n ˜ao ser
refutada? Aceit ´a-la como final n ˜ao ´e poss´ıvel, mas podemos trat ´a-la como corroborada, ou
seja, devemos consider ´a-la a melhor teoria, ou a que explica mais, no presente momento35.
Popper optou por n ˜ao discutir o problema da veracidade de teorias naL ´ogica, e o conceito
de corroborac¸ ˜ao surge para tentar suprir esse vazio. Mas uma corroborac¸ ˜ao n ˜ao significa
tion of the metric of the predicate; and the latter must always contain an arbitrary, or at any rate an extra-logical element”(LScD, § 34, pp. 101-2, nota *1).
34O conceito de “complementaridade” ´e baseado na f´ısica qu ˆantica e na descoberta da impossibilidade da
medic¸ ˜ao exata da posic¸ ˜ao e do momentum de uma part´ıcula ao mesmo tempo. Se aumentarmos a severidade da medic¸ ˜ao de um desses fatores, negligenciamos o outro. Cf. LScD, Ap ˆendices *xi e *xii.
35Cumpre lembrar que quando uma teoria ´e falseada ela n ˜ao ´e declarada falsa; ela continua a valer nos
considerar uma teoria como verdadeira, j ´a que sabemos que ela sempre pode ser falseada
posteriormente. Tal conceito a ser tratado agora, ent ˜ao, mostra-se essencial `a metodologia
popperiana.
Alguns indutivistas36, ao perceber que sua meta de estabelecer sentenc¸as univer-sais com certeza37n ˜ao poderia ser atingida, buscaram meios para contorn ´a-la. Eles
argumen-taram que seria poss´ıvel atribuir probabilidades ahip ´oteses, e estas seriam n ˜ao mais que um
caso especial da probabilidade de umevento. J ´a que um evento ´e definido como uma classe
de sentenc¸as singulares, poder-se-ia falar em probabilidade desentenc¸as. Desse modo, seria
poss´ıvel dar um tratamento puramente matem ´atico ao problema, pois a probabilidade de uma
sentenc¸a qualquer que representa um evento (digamos, quais as chances de chover amanh ˜a) ´e facilmente calcul ´avel. Por meio da definic¸ ˜ao dessa probabilidade (com uma margem de erro
toler ´avel), dois objetivos poderiam ser atingidos: 1) fazer uma escolha de hip ´oteses baseado
em seus diversos graus de certeza; e 2) dar uma interpretac¸ ˜ao quantitativa para esses graus. Se a probabilidade de um evento for expressa na forma:
p(x) = f
o
(ondex ´e um evento,fos resultados observados favor ´aveis, eotodos os resultados
observa-dos), a probabilidade de uma hip ´otese poderia ser definida como:
p(h) = c
t
(ondeh ´e uma hip ´otese,cas inst ˆancias confirmadoras, ettodas as inst ˆancias relacionadas `a
hip ´otese espec´ıfica). Duas s ˜ao as preocupac¸ ˜oes de Popper quanto a essa l ´ogica indutiva. Em
primeiro lugar, novamente aconteceria uma confus ˜ao entre quest ˜oes l ´ogicas e psicol ´ogicas.
O meu grau de certeza acerca da veracidade de uma hip ´otese ou a confianc¸a de que ela
novamente passar ´a em um teste n ˜ao servem como garantias da capacidade de resistir ao
falseamento. Em seguida, devemos nos perguntar: a identificac¸ ˜ao da probabilidade de uma
hip ´otese com a probabilidade de uma sentenc¸a ´e um movimento correto? Examinaremos
agora essas duas cr´ıticas mais detalhadamente.
Anteriormente, definimos um evento como uma classe de ocorr ˆencias
singula-res38. Segundo os indutivistas, falar em “eventos” ou “sentenc¸as” seria apenas uma quest ˜ao
de escolha terminol ´ogica. Imaginemos uma hip ´otese qualquerha qual atribu´ımos uma
pro-babilidade de acordo com a f ´ormula acima, e uma sequ ˆencia de sentenc¸as ka. . .kx usada
para determinar a frequ ˆencia-verdade (truth-frequency). Agora digamos queh ´e refutada, em
36E importante sempre lembrar que, na sua cr´ıtica da l ´ogica indutiva, Popper tem como alvo principal Reichen-´
bach.
37E o mesmo n ˜ao pode ser dito a respeito do falseamento? Pode-se dizer que uma teoria foi anteriormente
falseada pelo desconhecimento de uma vari ´avel, por exemplo.